Suzanne Bobzien, professora de Yale, especializada em filosofia da lógica, filosofia da linguagem e filosofia antiga, nos oferece, em “Stoic Logic” (The Cambridge Companion to the Stoics, org. Brad Inwood, Cambridge: Cambridge University Press, 2003, pp. 85–123), uma profunda análise da lógica estóica. Os estóicos, sabe-se hoje, foram os primeiros a estabelecer uma teoria do cálculo proposicional, que tem um método de provas argumentativas distinto do da lógica contemporânea. Durante muito tempo não se soube disso, devido ao estado fragmentário das fontes. Hoje, graças às pesquisas de vários lógicos e historiadores da filosofia ao longo do século XX, tem-se uma idéia melhor sobre esta lógica estóica, criada por Crisipo e desenvolvida por outros lógicos estóicos até ao fim da antigüidade. Apresento abaixo uma síntese da exposição de Bobzien sobre a lógica estóica, destacando as proximidades e as dessemelhanças da mesma com a lógica contemporânea. Omiti no texto as referências a autores da antigüidade, obviamente remetendo os que quiserem aprofundar o tema ao texto de Suzanne Bobzien.
A autora começa por notar (p. 85) que a lógica estóica é uma lógica proposicional, cujas inferências tratam das relações entre entidades que têm a estrutura de proposições, os axiômata, que são os portadores primários de valor de verdade. A lógica estóica se divide em duas partes: uma teoria dos axiômata e uma teoria dos argumentos.
Um axiôma é definido como um lekton completo em si mesmo que pode ser afirmado por si, pertencendo ao gênero dos lekta completos em si, sendo os lekta entidades intermediárias entre o mundo e os sons vocais: “os lekta são os sentidos subjacentes a tudo que pensamos ou dizemos; subjazem a toda representação racional que tenhamos, e subsistem mesmo quando ninguém pensa neles ou os pronuncia”, diz-nos Bobzien (p. 86).
Os lekta completos incluem axiômata, perguntas, imperativos, juramentos, invocações, maldições e hipóteses. E o que distingue os axiômata dos demais lekta é que podem, em si, ser afirmados. Embora possam ser afirmados, não são proposições, mas as proposições ocorrem quando se diz um axiôma. Segundo Bobzien (p. 87), a noção estóica de axiôma parece-se de certa forma com a proposição fregiana, diferenciando-se desta por ter o valor de verdade associado à temporalidade: para os estóicos, por exemplo, a proposição expressa por “É dia” é verdadeira quando é dia e ela mesma é falsa quando é noite, ao passo que Frege consideraria tratar-se de diferentes proposições expressas pela mesma frase.
A distinção fundamental entre os axiômata é a que se faz entre axiôma simples e axiôma não simples, classificação análoga à das proposições contemporâneas divididas entre atômicas e moleculares. Bobzien observa que entre os axiômata simples os estóicos colocam a negação (apophatikon), que é formada pela adição da partícula “'não” como prefixo de uma frase. Por exemplo: “Não: Díon caminha” (p. 90). Isto se distingue de “Díon não caminha”, pois esta, para os estóicos, é uma afirmação que, ao contrário da primeira, pressupõe a existência de Díon para ser verdadeira. A negação estóica é verofuncional: adicionando a partícula negativa a um axiôma verdadeiro se obtém um falso, e vice-versa. Um axiôma e a sua negação compõem um par de contraditórias.
Para os estóicos, diferentemente da concepção lógica contemporânea, para a qual a negação de uma proposição simples é uma proposição complexa, a negação de um axiôma simples é um axiôma simples. E a dupla negação é também um axiôma simples. Os estóicos não compreendem a negação como uma conectiva (sundesmos), pois na sua concepção uma conectiva tem de unir diferentes axiômata. Para diferenciarmos a negação contemporânea da estóica, representamos esta última como “Não: p”.
Os axiômata não simples são compostos por axiômata simples ou pela repetição de um mesmo axiôma. Tais axiômata são combinados por conectivas, que são compreendidas como partes indeclináveis da linguagem que unem outras partes da linguagem. Além disso, um axiôma não simples pode ser composto por dois ou mais axiômata simples. Os axiômata não simples podem também ser constituídos por axiômata não simples, sendo, é claro, em última análise compostos por axiômata simples. Por exemplo: “Se é dia e o Sol está sobre a Terra, há luz”. Também as conjunções e disjunções podem ter três ou mais elementos; por exemplo: “Ou a saúde é boa ou é má ou é indiferente”.
Segundo Bobzien (p. 93), os estóicos não tentaram abranger todas as conotações das conectivas da linguagem comum, mas antes tentaram selecionar as características essenciais formais das conectivas.
Por Crisipo, conhecemos três tipos de axiômata não simples: condicionais, conjunções e disjunções exclusivas. Os estóicos posteriores adicionaram a estas o axiôma pseudocondicional (condicional modificada ou inferencial), com a conectiva “já que” (epei); o axiôma causal, com a conectiva “por causa de” (dioti); dois tipos de pseudodisjunções; e dois tipos de axiômata comparativos, com as conectivas “ao invés de” (mallon), e “a menos que” (hêtton... ê).
A conjunção estóica é verofuncional, sendo verdadeira quando todas as suas constituintes também o são e falsa quando uma ou mais não o são.
A condicional (sunêmmenon) é definida pelos estóicos como um axiôma formado com a conectiva “se”, na forma “se p, q”. No tempo de Crisipo prosseguia o debate sobre as condicionais iniciado pelos megáricos Philo e Diodoro de Crono. Quanto a isso, Bobzien observa: “concordava-se, porém, que a condicional “anuncia” uma relação de conseqüência [...] que a sua conseqüente se segue da sua antecedente” (p. 94). Havia também acordo sobre o seguinte: “se a antecedente é verdadeira, a conseqüente também o é”, se a condicional for verdadeira. Assim, de acordo com o princípio da bivalência, isso significa que não é o caso que a antecedente seja verdadeira e a conseqüente falsa, o que equivale ao critério de Philo.
O critério de verdade das condicionais de Crisipo difere do de Philo e do de Diodoro, pois supõe uma certa conexão entre a conseqüente e a antecedente. Partindo da noção de conflito, Crisipo afirma que uma condicional é verdadeira se a contraditória da conseqüente não entra em conflito com a antecedente. Assim, por exemplo, “Se a Terra voa, Axiothea filosofa”, é uma condicional verdadeira para Philo e Diodoro, mas não o é para Crisipo. Segundo Bobzien, é historicamente inapropriado indagar se Crisipo se refere a um conflito empírico, analítico ou formal, pois não há aparato conceitual para acomodar tais noções na lógica helenística (p. 95). Porém, Bobzien crê que o que se chama hoje de “incompatibilidade formal” é o que contaria como conflito para Crisipo, pois axiômata como “se há luz, há luz” são considerados verdadeiros pelos estóicos, provavelmente porque a contradição é para eles o mais forte conflito possível entre axiômata. A incompatibilidade analítica parece abrangida pelo critério de Crisipo em alguns casos. Por exemplo: “Se Platão caminha, Platão se move” era considerada verdadeira. Também alguns casos de incompatibilidade empírica eram aceitos por alguns estóicos. Por exemplo: “Se Teognis tem um ferimento no coração, Teognis morrerá”. Exceção seriam os teoremas divinatórios, como: “Se nasceste sob a Canícula, não morrerás no mar”:
“Crisipo negava que tais teoremas constituíssem condicionais verdadeiras, mas sustentava que poderiam constituir negações (indefinidas) verdadeiras de conjunções com uma segunda conjunta negada”. (p. 95)
Ou seja, “Não é o caso que nasceste sob a Canícula e não morrerás no mar”.
Quanto à disjunção, os primeiros estóicos concentraram a sua atenção na disjunção exclusiva e exaustiva (diezeugmenon), podendo haver disjunções com mais de duas disjuntas. As condições de verdade da disjunção estóica são as seguintes: 1) as disjuntas devem estar em conflito uma com a outra; 2) as suas contraditórias devem ser contrárias uma à outra; 3) das disjuntas, apenas uma deve ser verdadeira, e as outras devem ser falsas. Apenas o critério 3 é verofuncional.
Segundo Bozien (p. 98), embora haja muitas similaridades entre a lógica proposicional estóica e o cálculo proposicional contemporâneo, há muitas diferenças também. Apesar de reconhecerem certos princípios lógicos, a lógica estóica é uma lógica da validade de argumentos, e não um sistema de teoremas de verdade lógica. Entretanto, os estóicos destacam certos princípios relativos aos axiômata, como o princípio da bivalência. Em relação às verdades lógicas, os estóicos mencionam os seguintes princípios: o princípio da dupla negação (“Não: não: p” equivale a “p”); o princípio segundo o qual as condicionais compostas pelo mesmo axiôma são sempre verdadeiras (“Se p, p”); e o princípio de que toda disjunção formada por um axiôma e a sua contradição (“Ou p ou não p”) é logicamente verdadeira.
Alguns estóicos lidaram com relações de comutatividade e contraposição através dos conceitos de inversão (anastrophê) e conversão (antistrophê) de axiômata. Segundo Bobzien (p. 99), “os estóicos parecem ter reconhecido que a conversão se aplica às condicionais; quer dizer, parecem aceitar o princípio da contraposição” ((p → q) ↔ (¬q → ¬p)). Entretanto, os estóicos parecem não ter tentado reduzir as conectivas entre si, nem tentado estabelecer equivalências lógicas entre elas.
Os estóicos também analisaram as propriedades modais dos axiômata, como necessidade e a não necessidade, a possibilidade e a impossibilidade, além da plausibilidade e da probabilidade. Como observa Bobzien (p. 100), a lógica modal estóica não é uma lógica de proposições modais formadas com operadores modais; é antes uma lógica sobre proposições não modalizadas enquanto possíveis, necessárias, etc. A modalidade era considerada uma propriedade temporal do axiôma, como a verdade e a falsidade.
Os argumentos (logoi) formam uma subclassse de lekta completos. Os argumentos, para os estóicos, são entidades incorpóreas e não expressões lingüísticas. Não são axiômata, mas são compostos por axiômata.
Um argumento é definido como um composto ou sistema de premissas e uma conclusão, sendo que as premissas e a conclusão são axiômata. Por exemplo: “P1) Se é dia, há luz; P2) Mas é dia; C) Por esta razão, há luz”, onde P1 é um axiôma não simples e P2 um axiôma simples. A premissa não simples era comumente posta em primeiro lugar, sendo denominada hêgemonikon lemma (premissa diretriz); a outra era denominada co-suposição (proslêpsis). A co-suposição contém menos elementos que a premissa diretriz. Segundo a ortodoxia estóica, contrariamente ao que se entende hoje, os argumentos têm de ter mais de uma premissa.
Os argumentos são divididos entre válidos e não válidos. Um argumento é válido se a condicional correspondente formada pela conjunção das premissas como antecedente e a conclusão como conseqüente é verdadeira. Esta condicional parece seguir o critério de Crisipo das condicionais.
Surpreendentemente, os argumentos têm também propriedades de verdade e falsidade, o que hoje é rejeitado por constituir uma confusão categorial. Mas os estóicos consideravam que um argumento é verdadeiro se, além de ser válido, tem premissas verdadeiras; e é falso se é inválido ou tem premissas falsas. Os argumentos, como os axiômata, podem mudar de valor de verdade e podem ter modalidade num sentido derivado dos axiômata.
Os argumentos válidos dividem-se primariamente entre 1) silogísticos e válidos em sentido específico e 2) os que são concludentes, mas não silogisticamente. Os silogismos dividem-se em demonstráveis e indemonstráveis (anapodeiktoi). Estes últimos não necessitam de prova ou demonstração porque a sua validade é considerada evidente. Os cinco indemonstráveis referem-se a classes de argumentos caracterizados por uma forma de argumento básico particular, pela qual a classe é vista como válida. Segundo Crisipo, os cinco indemonstráveis seriam os seguintes:
Como observa Bobzien (p. 105), as descrições dos indemonstráveis englobam muito mais argumentos do que os exemplos sugerem, e isso por três razões.
Primeiro, no caso do terceiro, quarto e quinto indemonstráveis, as descrições da forma do argumento provêm por comutatividade, pois se deixa em aberto que premissa, ou contraditória de premissa, é tomada como co-suposição.
Segundo, as descrições são dadas em termos de axiômata e contraditórias, e não em termos de axiômata afirmativos ou negativos. Em todos os casos, a primeira premissa pode ter qualquer uma das quatro combinações de axiômata afirmativos ou negativos. Por exemplo, no ponendo ponens: se p, então q; se não: p, então q; Se p, então não: q; se não: p, então não: q. E temos assim quatro casos sob o primeiro e o segundo indemonstrável, e oito sob o terceiro, o quarto e o quinto, perfazendo trinta e dois casos ao todo.
Em terceiro lugar, a premissa diretriz pode ser não simples (por exemplo, se p e q, então r; não: r; logo, não: p e q).
Segundo Bobzien (p. 107), para os estóicos a evidência da validade dos indemonstráveis se baseia em sua forma. Além disso, Crisipo jamais pretende reduzir conectivos entre si, nem pretende reduzir o número de indemonstráveis.
Todos os silogismos são ou indemonstráveis ou redutíveis aos indemonstráveis. Os estóicos chamam a essa redução “análise em indemonstráveis”. Segundo Bobzien, essa análise “é um método de provar que certos argumentos são formalmente válidos mostrando que têm relação com os indemonstráveis” (p. 110) por serem uma combinação deles ou conversão de um deles ou ambas as coisas. Essa análise é realizada com auxílio dos themata, que são regras de corte, só aplicáveis a argumentos, reduzindo argumentos a argumentos, e não axiômata a axiômata. São os seguintes os themata estóicos, incluindo aqui a reconstituição proposta por Bobzien de dois (themata T2 e T4) que se perderam (“CONT” significa “contraditória”, “X” significa “p1” ou “p2” ou “p1 e p2”, e “E” é uma premissa externa, dedutível das premissas do argumento):
T1: Se (p1, p2; logo, P3) então (p1, CONT p3; logo, CONT P2;
T2: Se (p1, p2; logo, p3) e (X, p3; logo, C) então (p1, p2; logo, C);
T3: Se (p1, p2; logo, P3) e (P3, E1...En; logo, C), então (p1, p2, E1...En; logo, C);
T4: Se (p1, p2; logo, P3) e (p3, X, E1...En; logo, C) então (p1, p2, E1...En; logo, C).
Vejamos um exemplo de análise. A seguinte forma argumentativa não é um indemonstrável:
(p ∧ q) → r;
não: r;
p;
logo, não: q.
Para reduzir esta forma argumentativa a um indemonstrável começamos por notar que as suas premissas 1 e 2, juntamente com “Não: p e q”, é um caso do indemonstrável 2 (modus tollens). Mas “Não: p e q”, juntamente com a premissa 3 do argumento, forma o indemonstrável 3, cuja conclusão é igual à do argumento acima. Extraímos assim dois indemonstráveis do argumento original:
P1: (p ∧ q) → r;
P2: não: r;
P3: não: p e q.
P3: não: p e q;
E: p;
C: não: q.
Aplicando agora o thema 3, chegamos ao argumento original: P1, P2, E; logo, C.
Assim, a silogística estóica é um sistema consistindo de cinco tipos básicos de silogismos e quatro regras de corte pelas quais todos os outros silogismos podem ser reduzidos àqueles tipos básicos. Embora não afirmem explicitamente a completude do seu sistema, a afirmação de que todos os silogismos válidos podem ser reduzidos equivale a tal asserção de completude.
O sistema estóico partilha, segundo Bobzien (p. 120), a seguinte condição de validade com a semântica moderna: é necessário para a validade de um argumento que não seja o caso que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão seja falsa. Além dessa condição, há mais duas que não se aplicam à lógica contemporânea, o que, como diz Bobzien (p. 120–121), indica que os silogismos estóicos perfazem no máximo uma subclasse de argumentos válidos no sentido atual:
O texto de Bobzien é extremamente erudito e toma por base as suas pesquisas prévias sobre o tema, que resultaram numa série de artigos publicados nas mais importantes revistas internacionais de filosofia. Para uma lista detalhada dessas contribuições, remeto o leitor à página pessoal de Suzanne no sítio da Yale.
Aldo Dinucci