Nada no mundo, nenhum objecto ou acontecimento, seria verdadeiro ou falso se não existissem criaturas com pensamento. John Dewey, em cuja honra e memória foram proferidas as conferências que constituíram este ensaio, retirou duas conclusões: que o acesso à verdade não podia ser uma prerrogativa especial da filosofia, e que a verdade tem de ter conexões essenciais com os interesses humanos. Dewey desprezava a tradição filosófica que encarava a verdade como uma correspondência entre o pensamento e uma realidade inacessível à investigação experimental e à prática comum. Pensava que esta perspectiva da verdade tinha sido concebida para sustentar a tese segundo a qual os filósofos possuem uma técnica privilegiada para alcançar uma forma de conhecimento diferente da ciência e superior a esta. Dewey1 escreveu que
[…] as abundantes demonstrações de uma suprema devoção à verdade por parte da filosofia levanta suspeitas. Pois tem sido habitualmente um preliminar à afirmação de que a filosofia é um órgão peculiar para aceder à verdade mais elevada e última. Mas não é. […] A verdade é uma colecção de verdades; e estas verdades que a constituem estão à guarda dos melhores métodos de investigação e teste à nossa disposição no que respeita às questões de facto; métodos que, quando agrupados sob um único nome, constituem a ciência. Assim, quanto à verdade, a filosofia não tem um estatuto preeminente […] (ibid., p. 410).
O objectivo de Dewey era trazer a verdade, e com ela as pretensões dos filósofos, para a Terra. Podemos, em justiça, achar que Dewey confundiu a questão de saber que tipo de conceito é a verdade com a questão de saber que tipos de verdade existem. Mas é claro que as duas questões se relacionam, uma vez que o que cai sob o conceito depende obviamente do que é o conceito. E não foi só Dewey a ter a ideia de assegurar que o domínio da verdade pode ser convincentemente colocado sob o alcance das faculdades humanas restringindo o conceito; Dewey considerava que partilhava as ideias de C. S. Peirce e William James a este respeito e, de uma maneira ou de outra, o tema básico reaparece hoje nos escritos de Hilary Putnam, Michael Dummett, Richard Rorty e muitos outros.
Os que desejam tirar do pedestal ou esvaziar o conceito de verdade começam muitas vezes por rejeitar qualquer traço da teoria da correspondência, mas Dewey2 não via mal algum na ideia de correspondência, desde que esta fosse adequadamente compreendida. “Verdade quer dizer, na realidade, concordância, correspondência, entre ideia e facto”, afirmou Dewey, acrescentando imediatamente: “mas que quer dizer concordância e correspondência?” (ibid., p. 304). Dewey respondeu, dizendo que “a ideia verdadeira é a que funciona ao conduzir-nos ao que ela afirma” (ibid.), citando James3 aprovadoramente:
[…] qualquer ideia que nos conduza de forma propícia de uma parte da experiência para qualquer outra, ligando as coisas satisfatoriamente, trabalhando com segurança, simplificando, poupando trabalho, é verdadeira precisamente nessa medida, verdadeira até esse ponto (ibid., p. 58).
Provavelmente, poucos filósofos se sentem hoje em dia tentados por estas formulações oscilantes e gerais. Mas o problema que os pragmatistas enfrentavam — o problema de como relacionar a verdade com os desejos, convicções e intenções humanos e com o uso da linguagem — parece-me o problema certo para nos concentrarmos ao pensar sobre a verdade. Parece-me também que este problema não está muito mais próximo de uma solução hoje em dia do que o estava no tempo de Dewey.
Ver esta questão como o principal problema acerca da verdade — ou, na realidade, como um problema de todo em todo — é presumir que o conceito de verdade se relaciona de facto, de um modo importante, com as atitudes humanas; algo de que não é raro duvidar. Não é raro, de facto, duvidar da questão de saber se o conceito de verdade tem realmente alguma importância filosófica séria.
Rorty capta a intenção de Dewey de remover a verdade de um domínio tão exaltado que só os filósofos poderiam ter a esperança de a obter ao apresentar o seu livro Consequences of Pragmatism4 com as palavras seguintes:
Os ensaios neste livro são tentativas de retirar consequências de uma teoria pragmatista da verdade. Esta teoria afirma que a verdade não é o tipo de coisa acerca da qual devamos estar à espera de ter uma teoria filosófica interessante […] não há qualquer trabalho interessante a fazer nesta área (ibid., pp. XIII-XIV).
Mas parece-me que Rorty não apanha metade do aspecto central da atitude de Dewey relativamente à verdade: Dewey diz que as verdades não são, em geral, o terreno exclusivo da filosofia; mas insiste também na ideia de que a verdade é o que funciona. Isto não é o mesmo do que a tese de que nada há de interessante a dizer acerca da verdade. Dewey encontrou muitas coisas interessantes para dizer sobre o que funciona.
Rorty5 comparou as minhas ideias sobre a natureza da verdade com as de Dewey. Acho que muito do que ele tem para dizer sobre este tema é aprazível e penetrante, e penso que Rorty tem razão ao dizer que, em geral, partilho as atitudes de Dewey em relação à verdade. Todavia, há um aspecto, o aspecto que acabei de referir, em relação ao qual Rorty nos entendeu mal a ambos; tal como o leio, Dewey pensava que se trouxermos a verdade para a Terra, haverá coisas importantes e instrutivas para dizer sobre as suas conexões com as atitudes humanas, conexões parcialmente constitutivas do conceito de verdade. Esta é também a minha perspectiva, apesar de eu não pensar que Dewey tenha apanhado as conexões correctamente.
Rorty observa correctamente o papel fundamental que atribuo ao trabalho de Alfred Tarski para fornecer um modo de discutir a compreensão da linguagem, e ele vê claramente que para mim isto se relaciona com a rejeição de uma imagem representativa da linguagem e a rejeição da ideia de que a verdade consiste em espelhar fielmente os factos. Estas são questões às quais voltarei nestas páginas. Neste ensaio, começo por discutir a noção, muitas vezes associada à abordagem de Tarski, segundo a qual o discurso sobre a verdade é essencialmente redundante, não tendo propriedades importantes além das especificadas nas definições de verdade de Tarski. A primeira secção termina com uma defesa da afirmação de que as definições de Tarski podem ser legitimamente tratadas como algo que comunica verdades substanciais sobre a linguagem, mas que neste caso tem de haver mais no conceito de verdade do que Tarski especificou. Na segunda secção do ensaio volto-me para várias tentativas de dizer o que mais está envolvido: discuto teorias da correspondência, da coerência e teorias que, de uma maneira ou de outra, fazem da verdade um conceito epistémico. Rejeito todos estes tipos de teorias. Na terceira secção, proponho uma abordagem que difere das outras, e que torna o conceito de verdade uma parte essencial do esquema que todos usamos necessariamente para compreender, criticar, explicar e prever o pensamento e a acção.
A teoria da redundância adequa-se melhor a expressões como “É verdade que” ou “É um facto que”, quando estas se prefixam a uma frase. Tais expressões podem ser encaradas como conectivas verofuncionais de frases que, quando prefixadas a uma frase verdadeira, resultam numa frase verdadeira, e, quando prefixadas a uma frase falsa, resultam numa frase falsa. Estas conectivas funcionariam então exactamente como a negação dupla (quando a negação é concebida em termos clássicos). Pelo menos no que respeita ao conteúdo cognitivo e às condições de verdade, tais prefixos são redundantes.
Frank Ramsey6 parece ter pensado que todos os usos do conceito de verdade são como estes. Diz Ramsey: ““É verdadeiro que César foi assassinado” não quer dizer mais do que a afirmação de que César foi assassinado” (ibid., p. 143). Ramsey considera então casos como “Tudo o que ele diz é verdadeiro”, nos quais, ao contrário dos outros casos, não é fácil eliminar a referência à verdade, e sugere que, se nos restringirmos a proposições da forma aRb, podemos interpretar “Tudo o que ele diz é verdadeiro” como “Para todo o a, R, b, se ele diz aRb, então aRb”. Ramsey acrescenta que, se todas as formas proposicionais forem incluídas, as coisas se tornam mais complicadas, “mas não essencialmente diferentes” (ibid.). Apesar de Ramsey nem sempre distinguir claramente entre proposições e frases, ou o uso de frases e a sua menção, fica-se com a impressão de que, se Ramsey tivesse levado a cabo a análise “mais complicada”, poderia ter acabado por chegar a algo muito parecido a uma das definições de verdade de Tarski. Em qualquer caso, Ramsey achava que tinha dito o suficiente para mostrar que “na realidade não há um problema autónomo da verdade mas apenas um lamaçal linguístico” (ibid., p. 142).7
Ramsey estava enganado se pensava que a análise do uso do termo “verdade” em termos de conectivas verofuncionais podia ser directamente aplicada a frases como “Tudo o que ele diz é verdade”, pois no primeiro caso a expressão “verdade” é vista como uma conectiva, ao passo que no segundo tem de ser tratada como um predicado e, se seguirmos Tarski, terá de pertencer a uma linguagem diferente da linguagem das frases das quais essa expressão é predicada. Poderia ser possível tratar expressões como “É verdade que” como predicados de proposições, em vez de conectivas proposicionais, mas uma vez mais a redundância seria muitíssimo menos manifesta do que Ramsey defendia.
Muitos filósofos têm, no entanto, encarado o trabalho de Tarski como algo que, fundamentalmente, trata de corrigir a ideia de Ramsey. W. V. Quine,8 por exemplo, escreve: “Dizer que a frase “Bruto matou César” é verdadeira […] não é mais, com efeito, do que dizer que Bruto matou César" — e diz-nos, numa nota, para consultar Tarski para ver o “desenvolvimento clássico” deste tema (ibid., p. 24). Putnam defende que Rorty e Quine partilham esta perspectiva da verdade. De acordo com Putnam,9 Rorty e Quine pensam que “chamar “verdadeira” a uma frase não é atribuir uma propriedade, a verdade, a uma frase; é apenas outra maneira de asserir a frase" (ibid., p. 62). (Putnam acrescenta que se chama a isto a “perspectiva descitacional” — “na gíria dos filósofos davidsonianos da linguagem” (ibid.). Talvez seja; mas nesse caso eu não sou um davidsoniano, pois não tenho a tentação de referir as definições da verdade de Tarski como “descitacionais”.) Em qualquer caso, Putnam não está a sancionar esta tese; está a atacá-la por ser “puramente formal” e “vazia”.
Não é para mim claro se Putnam pensa que o trabalho de Tarski sobre a verdade não passa de um aperfeiçoamento técnico de algo que basicamente é uma teoria da redundância, mas esta perspectiva foi sem dúvida adoptada por outras pessoas. Stephen Leeds10 sugeriu que a “utilidade” ou a importância do conceito de verdade poderia consistir apenas no facto de este conceito nos dar uma maneira de dizer coisas como “A maior parte das nossas convicções são verdadeiras”, onde queremos falar de, ou talvez asserir, um conjunto de frases infinito ou insusceptível, por outros motivos, de ser especificado. Ramsey não explicou como fazer isto; Tarski fê-lo. Paul Horwich,11 à semelhança de Leeds, considera que Tarski defende uma teoria da redundância; Horwich está convencido de que, apesar da nossa intuição de que a verdade é um conceito central e importante, “a noção de verdade foi completamente captada por Tarski” (ibid., p. 192). A esta ideia, a ideia de que Tarski fez tudo o que poderia ter sido feito pelo conceito de verdade, chama Horwich a teoria deflacionista da verdade.
Apesar de Scott Soames12 não concordar com Horwich em que a verdade tal como Tarski a definiu especifica condições de verdade adequadas para uma elucidação do que sabe quem usa uma linguagem, chama também deflacionista à abordagem de Tarski da verdade e, como Horwich, pensa que no que respeita a explanar o conceito de verdade, não devemos pedir mais nada a não ser a aplicação da verdade a proposições, etc.
Hartry Field,13 num útil artigo, explora o que há a favor de um conceito deflacionista da verdade, mostrando como seria difícil ir além dele. Field explica aproximadamente como Horwich o que quer dizer ao chamar deflacionista a uma teoria da verdade: a verdade é descitacional e nada mais; mas tem mais dúvidas que Horwich quanto à questão de saber se Tarski deve (ou tenha) de ser visto como um descitacionista, apesar de pensar que o trabalho de Tarski pode ser apropriado pelo descitacionista. Michael Williams14 caracterizou da seguinte maneira a perspectiva dos deflacionistas: eles
[…] pensam que ao apontarmos certas características formais do predicado de verdade (sobretudo a sua característica “descitacional”) e ao explicarmos a razão pela qual é útil ter um predicado como este (por exemplo, como dispositivo para asserir conjunções infinitas), dissemos praticamente tudo o que há para dizer acerca da verdade (ibid., p. 424).
Williams aceita explicitamente uma atitude deflacionista em relação à verdade.15
Quão plausíveis são estas teorias deflacionistas da verdade? Se restringirmos a teoria da redundância a ocorrências de “verdade” como parte de uma conectiva verofuncional de frases (como em “É verdade que a neve é branca”), então é claro que tais usos desempenham apenas um pequeno papel no nosso discurso sobre a verdade; isto não pode ser a história toda. Será que as teorias descitacionais podem fazer melhor do que isto? As definições de verdade de Tarski são descitacionais neste sentido: dada a definição (e a teoria dos conjuntos e a sintaxe formal), e dada uma frase da forma “”A neve é branca” é verdadeira”, podemos demonstrar que a frase “A neve é branca” lhe é equivalente. Assim, a frase na qual “A neve é branca” é apenas mencionada é provavelmente equivalente à própria frase “A neve é branca”; as aspas desapareceram da original “A neve é branca”; remover as aspas cancela, por assim dizer, o predicado de verdade. E mesmo quando não podemos remover as aspas por não haver aspas para remover (como no caso “Tudo o que ele disse é verdade” ou “Uma regra de inferência válida garante que de premissas verdadeiras só se seguem conclusões verdadeiras”), Tarski mostrou como nos podemos livrar do predicado de verdade, dado que este foi explicitamente definido.16 Isto mostra que as definições de verdade de Tarski não são estritamente descitacionais, uma vez que não dependem da eliminação das aspas de frases individuais para poder eliminar os predicados de verdade. E, para se fazer a eliminação, as definições de Tarski não precisam de modo algum de usar as próprias frases que se dizem verdadeiras; isto é óbvio quando a definição de verdade para uma linguagem é dada noutra linguagem. Não se pode encontrar um equivalente português da frase portuguesa ““Schnee ist weiss” é verdade (em alemão)” removendo unicamente as aspas de “Schnee ist weiss”.
Ainda assim, o facto é que o método de Tarski nos permite substituir os predicados de verdade que ele define em qualquer contexto, não deixando a substituição em seu lugar quaisquer predicados semânticos explícitos; neste aspecto, os seus predicados de verdade são como a conectiva de frases “é verdade que”, que se pode remover apagando-a, simplesmente. O que é surpreendente, claro, não é que a expressão “é verdade” possa ser substituída, pois esse pode ser o objectivo da definição; o que é surpreendente é que não seja substituída por coisa alguma, semântica ou não. Presumivelmente, é esta característica que leva Putnam a dizer que de acordo com tais teorias a verdade não é uma propriedade. (Contudo, isto não pode ser inteiramente correcto no que respeita às definições de verdade de Tarski. Os predicados de verdade de Tarski são predicados legítimos, com uma extensão que nenhum predicado na linguagem-objecto tem. Mas compreende-se o que está em causa na observação de Putnam.) Putnam conclui que os predicados de verdade de Tarski nada têm a ver com a semântica nem com a concepção comum de verdade: “Como uma elucidação filosófica da verdade, a teoria de Tarski falha tão completamente quanto é possível uma elucidação falhar” (op. cit., p. 64).
O que é claro é que Tarski não definiu o conceito de verdade, nem mesmo enquanto predicado que se aplica a frases. Tarski mostrou como se define um predicado de verdade para cada uma de várias linguagens bem comportadas, mas as suas definições não nos dizem, claro, o que têm esses predicados em comum. Em termos ligeiramente diferentes: Tarski definiu vários predicados da forma “f é verdadeiraL”, cada um aplicável a uma única linguagem, mas não conseguiu definir um predicado da forma “f é verdadeira em L” para a variável “L”. Esta observação foi feita por Max Black17 e depois por Dummett18 ; mas claro que Tarski tinha tornado isto atroadoramente claro desde o início ao demonstrar que nenhum predicado desses pode ser definido numa linguagem consistente, dadas os seus pressupostos no que respeita aos predicados de verdade. Dados esses constrangimentos, nunca houve qualquer hipótese de Tarski dar uma definição geral do conceito de verdade, mesmo no que respeita a frases. Se considerarmos a aplicação do conceito de verdade a crenças e a fenómenos relacionados, como afirmações e asserções, é óbvio ainda num outro aspecto que Tarski não procurou uma definição verdadeiramente geral. Considerando que é evidente que Tarski não ofereceu uma definição geral de verdade, e o facto de que o seu resultado mais importante talvez tenha sido o de que tal coisa não poderia ser feita em termos que o satisfizessem, é notável que tantos críticos se tenham esforçado tanto para tentar persuadir-nos de que Tarski não conseguiu fornecer tal definição.
Dummett afirma no “Prefácio” a Truth and Other Enigmas19 que o “ponto fundamental” do seu velho artigo “Truth” era o de que qualquer forma da teoria da redundância (e ele inclui as definições de verdade de Tarski nesta categoria) têm de ser falsas porque nenhuma teoria dessas pode captar a razão pela qual se introduz um predicado de verdade. Isto pode ver-se, argumenta Dummett, pelo facto de que, se tivermos uma definição tarskiana de verdade para uma linguagem que não compreendemos,
não teremos ideia de qual é a razão de ser de introduzir o predicado […] a não ser que […] já saibamos à partida qual é, supostamente, a razão de ser do predicado definido dessa forma. Mas se soubermos à partida a razão de ser de introduzir o predicado “verdadeiro”, saberemos algo acerca do conceito de verdade expresso por esse predicado, algo que não está presente nessa […] definição de verdade (ibid., pp. XX-XXI).
Dummett acrescenta que “apesar de este ponto ser tão óbvio depois de formulado, penso que na altura valeu a pena apresentá-lo” (ibid.). Dummett tem razão: o ponto era óbvio, e valia a pena formulá-lo, pelo menos para mim.20 A aplicação a teorias do significado é importante; mas a questão é mais geral: Tarski sabia que não podia dar uma definição geral de verdade, de modo que não havia maneira formal de captar “a razão de ser” de se introduzir predicados de verdade, quer essa razão de ser se relacionasse com a conexão entre verdade e significado quer com a conexão entre verdade e qualquer outro conceito ou conceitos.
Dummett e outros filósofos tentaram de vários modos fazer compreender aos espíritos obtusos nos quais me incluo que os predicados de verdade de Tarski não captam completamente o conceito de verdade. A dificuldade central, como vimos, deve-se simplesmente ao facto de que as definições de Tarski não nos dão ideia alguma de como aplicar o conceito a um caso novo, quer o novo caso seja uma nova linguagem ou uma nova palavra acrescentada a uma linguagem [apesar de na realidade a questão ser a mesma, formulando-a Dummett (op. cit.) das duas maneiras e Hartry Field21 da segunda]. Percebe-se facilmente que esta característica das definições de Tarski resulta de elas dependerem da possibilidade de se estabelecer a extensão ou referência dos predicados básicos ou dos nomes enumerando casos: uma definição dada desta maneira não pode dar-nos qualquer pista para o caso seguinte nem para o caso geral.
Várias críticas ou comentários ao tratamento da verdade de Tarski dependem do aspecto enumerativo das suas definições. Uma dessas críticas defende que as definições de Tarski não podem explicar por que razão, caso a palavra “neve” tivesse significado “carvão”, a frase “A neve é branca” teria sido verdadeira se, e só se, a neve tivesse sido preta. Tanto Putnam como Soames fizeram esta observação, mas para Putnam trata-se de uma crítica, enquanto para Soames ilustra o disparate de esperar muito de uma teoria ou definição de verdade. Outra acusação é a de que as definições de Tarski não estabelecem a conexão entre verdade e significado, conexão que muitos filósofos consideram essencial. (Uma vez mais, para Putnam isto mostra que há algo de basicamente errado na concepção da verdade de Tarski; para Soames é mais um exemplo do louvável aspecto deflacionista das definições de Tarski.) Um comentário intimamente relacionado com este é que Tarski não relaciona a verdade com o uso nem com quem usa uma linguagem (Field, Putnam, Soames, Dummett). Seja qual for o valor destes comentários, vale a pena ter em mente que todos resultam da mesma característica simples do trabalho de Tarski: ao empregar uma lista finita e exaustiva de casos básicos quando se define a satisfação (em termos da qual se define a verdade), Tarski está necessariamente impedido de especificar como prosseguir para outros casos.
Apesar das limitações que foram identificadas ou que se imaginaram no trabalho de Tarski sobre a verdade, vários filósofos, como vimos, sancionaram esse trabalho como algo que abrange todas as características essenciais da verdade. Estes filósofos incluem Rorty, Leeds, Michael Williams, Horwich, Soames e, de acordo com Putnam, Quine; e também, de acordo com Rorty, eu.22
Contudo, eu não pertenço a esta lista. O argumento básico, que pretendia revelar que Tarski era um deflacionista, pode ser entendido de duas maneiras: como algo que mostra que Tarski não captou aspectos essenciais do conceito de verdade, ou como algo que mostra que o conceito de verdade não é tão profundo e interessante como muitas pessoas pensaram.23 Como Dummett e Putnam, penso que temos de entender o argumento do primeiro modo. A razão é clara. Nada há nas definições de verdade de Tarski que aponte para o que estas definições têm em comum. A não ser que estejamos preparados para dizer que não há um só conceito de verdade (mesmo enquanto algo que se aplica a frases), mas tão-só vários conceitos diferentes para os quais usamos a mesma palavra, temos de concluir que há algo no conceito de verdade — algo absolutamente básico, de facto — em que as definições de Tarski não tocam. O que é moderadamente estranho é que alguns filósofos que apelam a uma versão do argumento básico para mostrar que os predicados de verdade de Tarski são deflacionistas aceitem ao mesmo tempo uma teoria deflacionista. Mas se o argumento básico for sólido, mostra que definições como as de Tarski, ou teorias que sigam as mesmas linhas, não podem captar o conceito de verdade.
Há outra afirmação ou pressuposto sobre o trabalho de Tarski que, apesar de ser muitas vezes apresentado ao mesmo tempo com alguns dos aspectos que acabámos de ensaiar, merece uma discussão separada. A questão é a seguinte: se aceitarmos uma das definições de verdade de Tarski, então há afirmações que seriam empíricas, se a verdade fosse apropriadamente caracterizada, mas que se tornam verdades lógicas. Assim, de acordo com Putnam, uma frase como ““Schnee ist weiss” é verdadeira (em alemão) se, e só se, a neve é branca” deveria ser uma verdade substancial sobre o alemão; mas se substituirmos o predicado “f é verdadeira (em alemão)” por um predicado definido ao estilo de Tarski, a verdade aparentemente substancial transforma-se numa verdade lógica.24 É fácil ver que o valor deste argumento se baseia na mesma característica do método de Tarski que temos vindo a discutir: se a extensão de um predicado for definida fazendo uma lista das coisas às quais ele se aplica, aplicar o predicado a um item da lista dará origem a uma afirmação equivalente a uma verdade lógica. (Por razões técnicas esta é uma explicação excessivamente simplificada deste aspecto do método de Tarski nos casos em que a linguagem-objecto inclui quantificadores, etc. A força da observação fica intacta.25 ) Esta parece ser a razão principal de Putnam para dizer que Tarski falhou “tão completamente quanto é possível” na tentativa de elucidar filosoficamente a verdade. Soames talvez esteja a pensar o mesmo quando defende que a única maneira de defender a interpretação filosófica do trabalho de Tarski é rejeitar a exigência de que as aplicações dos seus predicados de verdade e de satisfação tenham conteúdo empírico. Satisfazer esta exigência seria, afirma Soames, “incompatível” com o trabalho de Tarski (op. cit., p. 425).
O argumento é formulado algo pormenorizadamente por John Etchemendy (op. cit.). De acordo com Etchemendy, o objectivo de Tarski era formular predicados com duas propriedades: primeiro, deviam relacionar-se de uma forma específica com o conceito intuitivo de verdade; segundo, deviam estar, tanto quanto possível, ao abrigo do paradoxo e da inconsistência. A primeira condição era respeitada forjando um conceito que facilmente se poderia mostrar que se aplicava a todas as frases verdadeiras de uma linguagem, e apenas a essas. É a convenção V que torna manifesta a relação com o conceito intuitivo de verdade. A convenção V exige que o predicado de verdade “f é verdadeiraL” para uma linguagem L seja caracterizado de modo a implicar, para todas as frases f de L, um teorema da forma “f é verdadeiraL se, e só se, p”, quando “f” é substituída por uma descrição sistemática de f e p é substituída por uma tradução de f na linguagem da teoria. Chamemos “frases V” a estes teoremas. O predicado nas frases V, “f é verdadeiraL”, é um predicado monádico; o subscrito não é uma variável mas sim o nome ou descrição de uma linguagem particular e é uma parte integrante do predicado. A relação com o conceito comum de verdade é evidente pelo facto de as frases V continuarem a ser verdadeiras se substituirmos o predicado de verdade ao estilo de Tarski pelo predicado português “f é verdadeira em L”. (Este é um predicado diádico: podemos inserir nomes ou descrições de outras linguagens em lugar de “L”.) A exigência de que o predicado de verdade não possa introduzir inconsistências na teoria ou na linguagem é respeitada dando uma definição explícita do predicado sem usar conceitos semânticos; evita-se assim qualquer desafio à consistência que tais conceitos possam representar. Se a metalinguagem for consistente antes da introdução do predicado de verdade, temos a garantia de que permanecerá consistente depois da introdução.
As frases V que contêm os predicados de verdade de Tarski parecem transmitir factos substanciais sobre a linguagem-objecto, nomeadamente, que as suas frases são verdadeiras sob as condições especificadas pela frase V (“Schnee ist weiss” é verdadeira em alemão se, e só se, a neve é branca), mas de facto, afirma Etchemendy, “não transmitem qualquer informação sobre as propriedades semânticas da linguagem, nem mesmo sobre as condições de verdade das suas frases” (itálico do autor, op. cit., p. 57). Isto porque as frases V são verdades da lógica, não podendo portanto dizer-nos seja o que for que a lógica só por si não possa dizer-nos. As frases V são verdades da lógica, por sua vez, porque se seguem das definições de Tarski, e estas são meras estipulações; enganamo-nos porque é “fácil ler conteúdos substanciais no que se pretende que seja uma definição estipulativa, é fácil substituir o “se, e só se” da definição pelo “se, e só se” dos axiomas ou dos teoremas" (op. cit., p. 58). Se queremos formular factos substanciais sobre uma linguagem, temos de inserir nas frases V e noutros casos um predicado que transmita algo como o conceito intuitivo de verdade. Se fizermos isto, “as afirmações que fizermos parecer-se-ão por vezes surpreendentemente com cláusulas” das definições de Tarski e (se forem correctas) transmitirão um conhecimento genuíno sobre as propriedades semânticas de uma linguagem.
Mas, e esta é a mensagem central de Etchemendy, as duas tarefas — definir a verdade de acordo com os objectivos de Tarski e fornecer uma elucidação semântica formal mas substancial de uma linguagem — não só são completamente diferentes, como “se opõem de forma bastante directa entre si […]. Pois sem pôr de lado o objectivo principal de Tarski, há um sentido segundo o qual não se pode, pura e simplesmente, fazer semântica” (op. cit., pp. 52–53). A diferença entre as duas tarefas é que a primeira exige um predicado que possa ser totalmente eliminado em todos os contextos, ao passo que a segunda exige uma noção de verdade “fixa, metateórica”. Usar o segundo conceito derrotaria directamente o objectivo do projecto de Tarski. Assim, a relação entre os resultados pretendidos e alcançados por Tarski, por um lado, e o projecto de fornecer uma maneira de descrever a semântica de linguagens interpretadas, por outro, é “pouco mais do que um acidente fortuito” (op. cit., pp. 52–53).
Putnam, Soames e Etchemendy concordam que as frases V de Tarski só aparentemente afirmam verdades empíricas sobre uma linguagem; de facto, são “tautologias” (Putnam). Mas discordam quanto à avaliação da tese com a qual todos concordam: Putnam26 pensa que o que Tarski definiu “não é, de todo em todo, a verdade”; Soames e Etchemendy afirmam que Tarski conseguiu fazer o que se propôs fazer. Soames sustenta que Tarski tinha razão, ao apresentar uma elucidação deflacionista da verdade, ao passo que Etchemendy pensa que a semântica empírica é um estudo legítimo com o qual Tarski não se ocupou.
Que devemos pensar destas afirmações? Uma coisa é certa: Tarski não concordou com estas apreciações dos seus resultados. Em “The Semantic Conception of Truth”27 há uma secção intitulada “Conformity of the Semantic Conception of Truth with Philosophical and Common-Sense Usage”. Seja-me permitido citar o seguinte dessa secção:
No que respeita à minha própria opinião, não tenho quaisquer dúvidas de que a nossa formulação se conforma com o conteúdo intuitivo da de Aristóteles […] houve quem exprimisse dúvidas sobre a questão de saber se a concepção semântica reflecte realmente a noção de verdade no seu uso quotidiano e no senso comum. Compreendo claramente […] que o significado comum da palavra “verdadeiro” — como acontece com qualquer outra palavra da linguagem quotidiana — é em certa medida vago […]. Logo, […] todas as soluções deste problema implicam necessariamente um certo desvio da prática da linguagem quotidiana.
Apesar de tudo isto, acontece que penso que a concepção semântica se conforma em larga medida com o uso do senso comum […] (ibid., p. 360).
Ao formular o seu problema, Tarski não se distancia do projecto de caracterizar conceitos que podem ser usados do mesmo modo que os conceitos semânticos comuns; conceitos que exprimem, como Tarski afirma, “conexões entre as expressões de uma linguagem e os objectos e estados de coisas que essas expressões referem”.28 Tarski não pretende, afirma, atribuir um novo significado a uma velha palavra, mas antes “captar o significado efectivo de uma velha noção”.29 Por outras palavras, Tarski afirma explicitamente que não pretendia, ao contrário do que Etchemendy sustenta, que as suas definições fossem puramente estipulativas.
Tarski descreve o seu projecto como “A Fundação de uma Semântica Científica” e afirma que “os conceitos semânticos exprimem certas relações entre objectos (e estados de coisas) referidos pela linguagem em discussão e expressões da linguagem que refere estes objectos”.30 Tarski encara a verdade de uma frase como a sua “correspondência com a realidade” (ibid.), e pensa que estas caracterizações dos conceitos semânticos são “vagas”, mas é claro que seriam completamente erróneas se os conceitos semânticos não tivessem qualquer aplicação. Quando Tarski exige que as suas definições sejam “materialmente adequadas e de acordo com o uso corrente”, defende que a convenção V é precisamente o que nos assegura que essa condição é satisfeita. O argumento é o seguinte: dada uma linguagem que compreendamos, uma linguagem interpretada como o português, reconhecemos que todas as frases da forma ““A neve é branca” é verdadeira se, e só se, a neve é branca” são verdadeiras. Tarski chama “definições parciais da verdade” a estas frases. É óbvio que uma definição que implique todas essas frases terá a mesma extensão que o conceito intuitivo de verdade com o qual começámos. Admitir isto é admitir que as frases V têm conteúdo empírico; de outro modo, a convenção V não teria sentido, nem teria sentido a insistência de Tarski no seu interesse em definir a verdade apenas em linguagens interpretadas.
Penso que temos de concluir que se Etchemendy, Soames e Putnam têm razão, Tarski se enganou completamente quanto ao objectivo que tinha em mente e quanto à natureza do que conseguiu alcançar. Contudo, surpreendentemente, não é preciso muito para reconciliar Tarski com Etchemendy. Este último concede, claro, que “Tarski introduziu de forma precisa as técnicas matemáticas necessárias para uma esclarecedora elucidação das propriedades semânticas de certas linguagens simples”, e “passar de uma definição tarskiana da verdade a uma elucidação substancial das propriedades semânticas da linguagem-objecto pode exigir apenas a reintrodução de uma noção primitiva de verdade” (op. cit., pp. 59-60). O truque consiste em acrescentar à definição de Tarski de um predicado de verdade de uma linguagem L (“f é verdadeiraL”, digamos) a observação de que o predicado de Tarski se aplica a todas as frases verdadeiras de L, e apenas a essas. Neste caso, claro, a palavra “verdadeiras” exprime o conceito da vida real, substancial e não definido que precisamos na semântica séria. Chamemos a esta observação o axioma de verdade.
A primeira coisa a ter em atenção é que se a linguagem era consistente antes de lhe acrescentarmos o axioma de verdade, este axioma não pode tornar a linguagem inconsistente desde que não dotemos formalmente o nosso predicado com quaisquer novas propriedades. Pode ter todo o tipo de propriedades interessantes e não resultar daí nenhum problema formal se as propriedades não forem explicitamente introduzidas na teoria; e não teremos qualquer problema informal se as propriedades adicionais não levarem à contradição.
Acrescentar o axioma de verdade é, do ponto de vista formal, inofensivo; e é também inútil. Pois podemos igualmente encarar o predicado de verdade de Tarski, “f é verdadeiraL”, como algo que tem as propriedades do nosso predicado da vida real, “f é verdadeira em L”, desde que essas propriedades não criem inconsistências. A objecção a esta ideia é que já não podemos ter a garantia de que poderiam resultar inconsistências, se especificássemos todas as propriedades do predicado da vida real; não sabemos exactamente o que quer dizer o nosso predicado de verdade. A “definição” de verdade já não é puramente estipulativa.
Considere-se uma linguagem-objecto formalizada e uma metalinguagem exactamente como as que Tarski descreve nas secções 2 e 3 de “The Concept of Truth in Formalized Languages”.31 Acrescente-se agora à metalinguagem as definições de Tarski até à, e incluindo a, definição de verdade; mas não lhes chamemos definições e pensemos nelas como algo que usa expressões empiricamente significativas apropriadas para descrever a semântica de uma linguagem-objecto (que Tarski interpretou como sendo acerca do cálculo de classes). De acordo com Etchemendy, a diferença entre este novo sistema e o sistema original de Tarski é extrema: o novo sistema descreve correctamente a semântica da linguagem-objecto, ao passo que o sistema de Tarski se limita a definir um predicado que não pode ser usado para asserir coisa alguma, verdadeira ou falsa, sobre qualquer linguagem interpretada particular. As definições de Tarski transformam as frases V implicadas em verdades lógicas; o novo sistema dá-lhes observações instrutivas sobre as condições de verdade das frases. Mas esta profunda mudança não perturba de modo algum o sistema formal; é uma mudança no modo como descrevemos o sistema, e não no próprio sistema. Se o sistema de Tarski é consistente, também este novo sistema o será.
Toda a questão se transforma assim na questão de saber como encarar as definições. A intenção de algumas definições é claramente introduzir novas palavras; outras definições procuram exprimir verdades substanciais de um género qualquer. Como vimos, Tarski não queria que as suas definições dessem sub-repticiamente um novo significado a um velho termo, mas antes que captassem “o significado efectivo de uma velha noção”.32
Devemos agora olhar de novo para a ideia, que encontramos não apenas em Etchemendy mas também em Putnam e Soames, segundo a qual as definições de verdade de Tarski não podem ter qualquer relação com a semântica ou a interpretação de linguagens efectivas porque, dadas as suas definições, os teoremas relevantes (por exemplo, as frases V) são verdades lógicas. De facto, os teoremas só são verdades lógicas sob a suposição de que as definições de verdade de Tarski são puramente estipulativas, que nos dizem tudo o que há para saber sobre os predicados que Tarski define. Não há qualquer razão para aceitar este pressuposto. Uma analogia simples tornará isto claro. Suponhamos que oferecemos o seguinte como definição do predicado “x é um planeta do sistema solar”: x é um planeta do sistema solar se, e só se, x é apenas um planeta dos seguintes: Mercúrio, Vénus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Neptuno, Plutão. Isto implica a frase V “Neptuno é um planeta do sistema solar”. É esta última uma verdade lógica? Podemos muito bem dizer que sim, se a nossa definição for meramente estipulativa; de outro modo, não. Não pode responder-se à questão de saber se é meramente estipulativa estudando o sistema formal; pois é algo que diz respeito às intenções de quem fez a definição. Se formos pura e simplesmente confrontados com a frase da definição, dificilmente poderemos deixar de notar que, se interpretarmos as palavras da maneira mais ou menos corrente, ela expressa uma verdade substancial. Ao apelar para a convenção V Tarski convida-nos a reparar numa característica análoga das suas definições de verdade.
O que devemos concluir sobre o modo como Tarski queria que encarássemos as suas definições? As indicações podem ser ambíguas. Por um lado, temos a sua afirmação reiterada e explícita de que ele desejava e pensava ter “captado o significado efectivo” do conceito intuitivo de verdade, tanto quanto possível; por outro lado, Tarski apoiava-se claramente do facto de as suas definições permitirem a eliminação de todo o vocabulário explicitamente semântico para garantir que o seu conceito não introduziria inconsistências numa linguagem que de outro modo seria consistente. Mas será que isto mostra que Tarski estava confundido? Penso que não. Eis uma maneira de ver a questão.
As definições de Tarski dão aos seus predicados de verdade propriedades que asseguram que eles definem a classe de frases verdadeiras numa linguagem. Se os predicados não tiverem mais propriedades, sabemos que não darão origem a inconsistências. Isto torna os predicados úteis para certos propósitos. Se pensarmos que os predicados de verdade têm mais propriedades não especificadas, não podemos ter a certeza de que essas propriedades não irão provocar problemas se as tornarmos explícitas. Mas nada há que nos impeça de trabalhar no seio dos sistemas de Tarski, apesar de reconhecermos que os predicados de verdade podem ter outras propriedades essenciais, desde que não usemos as propriedades não especificadas. Deste modo, podemos ter todas as vantagens da façanha técnica de Tarski, apesar de não tratarmos os conteúdos das suas teorias como “vazios” ou “meramente” formais.
Ver o trabalho de Tarski deste modo é admitir que num certo sentido ele não definiu o conceito de verdade, nem mesmo para linguagens particulares. Tarski definiu a classe de frases verdadeiras apresentando a extensão do predicado de verdade, mas não deu o significado. Isto segue-se a partir do momento em que decidimos que as frases V têm conteúdo empírico, pois implica que a definição de Tarski não nos diz tudo o que há a dizer sobre o conceito de verdade. O que eu mantenho não é que Tarski pode afinal ter captado um conceito substancial de verdade, mas que não estamos necessariamente confundidos quando interpretamos os seus sistemas formais como teorias empíricas sobre as linguagens. Ao fazê-lo, evitamos duas teses sobre a verdade potencialmente cerceadores — teses que, como vimos, são hoje em dia muito comuns. Uma das teses é a ideia de que o trabalho de Tarski não tem em grande parte qualquer relação com o conceito de verdade tal como normalmente o entendemos, de modo que, se queremos estudar a semântica de linguagens interpretadas, temos de virar de bordo. A Caríbdis é a tese de que apesar de a versão de Tarski da verdade ser meramente descitacional, ela diz tudo o que há a dizer sobre o conceito de verdade.
A minha própria perspectiva é que Tarski nos disse muito do que queremos saber sobre o conceito de verdade e que tem de haver ainda mais coisas. Tem de haver mais coisas porque não há qualquer indicação no trabalho formal de Tarski do que há de comum nos seus vários predicados de verdade, e isto tem de ser parte do conteúdo do conceito. Não é suficiente apelar para a convenção V como uma indicação, pois esta convenção não responde à questão de saber como sabemos que uma teoria da verdade para uma linguagem é correcta. O conceito de verdade tem conexões essenciais com os conceitos de crença e significado, mas o trabalho de Tarski não toca nestas conexões. É aqui que devemos esperar pôr a descoberto o que falta na caracterização que Tarski oferece dos predicados de verdade.
O que Tarski fez foi mostrar pormenorizadamente como se descreve o tipo de padrão que a verdade tem de ter, seja na linguagem seja no pensamento. O que precisamos agora de fazer é dizer como se identifica a presença desse padrão ou estrutura no comportamento das pessoas.
Se nada mais houvesse para saber sobre o conceito de verdade do que o que podemos aprender com as definições de Tarski dos predicados de verdade, não teríamos uma aplicação clara para o conceito de verdade além do facto de a sua função de descitação ser ligeiramente conveniente, uma vez que Tarski mostrou como se elimina tais predicados sem deixar qualquer resíduo semântico. Qualquer conexão entre verdade e significado ou crença seria discutível. Se encararmos as definições de Tarski como puramente estipulativas, os teoremas que tais predicados nos permitem demonstrar, em particular as frases V, são equivalentes a verdades da lógica; a não ser que possamos ver mais qualquer coisa nos predicados de verdade do que as definições nos dizem, estes teoremas não podem, portanto, produzir verdades empíricas sobre as frases de qualquer linguagem, e não podemos pensar que fornecem as condições de verdade das frases.
Tarski nunca afirmou que os seus predicados de verdade faziam mais do que identificar a classe de frases verdadeiras de linguagens particulares. Sem dúvida que ele não pensava que tinha definido um predicado de verdade geral, nem procurou exceder os limites da extensionalidade. Captar o significado, ao invés da extensão, não fazia parte do seu projecto. Nem era para ele relevante que pudesse haver outras formas de caracterizar a mesma classe de frases — formas que podem ser mais esclarecedoras para outros propósitos que não os seus.
Os dois aspectos estão relacionados, uma vez que não há uma forma óbvia de apresentar uma caracterização geral da verdade sem introduzir critérios de tipo muito diferente dos que Tarski usou. Os defensores de uma perspectiva deflacionista da verdade sugerem por vezes que a convenção V fornece uma resposta adequada à questão de saber que têm em comum os vários predicados de verdade de Tarski. Mas não devemos ficar satisfeitos com esta ideia. Pois nos casos em que a linguagem-objecto está contida na metalinguagem, a exigência é meramente sintáctica: diz-nos algo sobre os predicados, mas não nos diz muito sobre o conceito. Noutros casos, a sua aplicação depende da nossa compreensão prévia da noção de tradução, um conceito muito mais obscuro do que o de verdade. A questão central é a seguinte: à parte a nossa compreensão do conceito de tradução, a convenção V não nos dá qualquer ideia sobre como saber em geral quando um dos predicados de verdade de Tarski se aplica a uma linguagem particular. Tarski não define o conceito de tradução.33
Falta-nos ainda, pois, uma elucidação satisfatória da característica geral, ou das características gerais, do conceito de verdade que encontramos em Tarski. Todavia, há muito para aprender com Tarski. As suas construções evidenciam, por exemplo, que caso uma linguagem tenha o poder expressivo de uma linguagem natural, a classe das frases verdadeiras não pode ser caracterizada sem introduzir uma relação como a satisfação, que conecta palavras (termos singulares, predicados) com objectos. Se pensarmos na satisfação como uma forma generalizada de referência, Tarski mostrou de que modo a verdade das frases depende das características semânticas (isto é, da referência) de certas partes próprias das frases. (Claro que, tal como Tarski não definiu o conceito geral de verdade, também não definiu o conceito geral de referência.) Assim, mesmo sem termos resposta para a questão de saber como sabemos quando uma definição de verdade se aplica a uma dada linguagem, Tarski mostrou de que modo se pode usar o conceito de verdade para descrever claramente uma linguagem. Claro que para apresentar tal descrição temos de compreender primeiro o conceito de verdade; mas podemos ter essa compreensão sem que sejamos capazes de formular uma descrição sistemática de uma linguagem. A convenção V conecta a nossa compreensão natural do conceito com a engenhosa maquinaria de Tarski; convence-nos de que o funcionamento da maquinaria está de acordo com o conceito tal como o conhecíamos.
O que podemos aprender com Tarski sobre o conceito de verdade é então o seguinte: uma vez que é óbvio que ele não definiu o conceito geral de verdade, podemos ignorar a sugestão de que as suas definições estipulativas captam tudo o que há para captar nesse conceito. Mas não há razão para não usar a estrutura que entrou nas definições de Tarski. Para o fazer, não precisamos mudar coisa alguma nos sistemas formais de Tarski; quando nos damos conta de que esses sistemas não reflectem aspectos importantes dos conceitos de verdade e referência, podemos tomar os predicados de verdade e de referência (satisfação) como primitivos nas cláusulas que entram nas caracterizações recursivas que Tarski oferece de referência e verdade. Se descobrimos que a palavra “definição” não se coaduna com a ideia de que os predicados são primitivos, podemos abandonar a palavra; isto não irá alterar o sistema. Mas para honrar o reconhecimento de que os predicados semânticos são primitivos podemos abandonar o passo final que para Tarski transforma caracterizações recursivas em definições explícitas, e encarar os resultados como teorias da verdade axiomatizadas.34
Podemos comparar uma teoria axiomatizada da verdade com, digamos, a axiomatização da probabilidade levada a cabo por Kolmogorov, que coloca restrições claras ao conceito de probabilidade, mas deixa em aberto questões como a de saber se a probabilidade deve complementarmente ser caracterizada como frequência relativa, grau de crença, ou outra coisa qualquer. O tratamento axiomático da preferência face à incerteza, oferecido por Ramsey, quando aplicado a um agente particular, é análogo a uma teoria axiomática da verdade noutro aspecto: origina uma teoria para cada agente, tal como as teorias da verdade de Tarski pertencem a uma linguagem ou, como proponho de seguida, a um indivíduo.
Tal como uma teoria tarskiana não nos diz como determinar que a teoria se aplica a uma linguagem ou a um falante particular, também nas teorias de Ramsey nada nos diz quando uma dada teoria se aplica a um agente particular. O que está em causa no caso da teoria da decisão é, em parte, a tarefa de especificar as condições que um agente tem de satisfazer para podermos dizer que prefere um objecto ou curso de acção a outro. No caso de uma teoria da verdade, o que queremos é saber quando as frases V (e portanto a teoria como um todo) descrevem a linguagem de um grupo ou de um indivíduo. Isto exige obviamente que especifiquemos pelo menos parte do conteúdo do conceito de verdade que os predicados de verdade de Tarski não captam.
O que acrescentamos então às propriedades da verdade que Tarski delineou quando aplicamos o conceito intuitivo de verdade? À parte a perspectiva segundo a qual Tarski disse tudo o que pode ou deve dizer-se sobre a verdade, uma perspectiva que discuti e rejeitei na primeira secção deste ensaio, penso que a maior parte das propostas contemporâneas se dividem em duas grandes categorias: os que humanizam a verdade tornando-a basicamente epistémica, e os que promovem uma forma qualquer da teoria da correspondência.
Muitos filósofos, sobretudo recentemente, defenderam que a verdade é um conceito epistémico; mesmo quando não sustentaram explicitamente esta tese, ela é muitas vezes implicada pelas suas ideias. O motor das teorias da verdade como coerência é habitualmente epistémico, tal como acontece nas caracterizações pragmáticas da verdade. O anti-realismo de Dummett e Crispin Wright, a ideia de Peirce de que a verdade é onde a ciência irá dar se for suficientemente longe, a afirmação de Richard Boyd de que a verdade explica a convergência de teorias científicas, e o realismo interno de Putnam, incluem ou implicam uma perspectiva epistémica da verdade. Também Quine, pelo menos por vezes, sustentou que a verdade é interna a uma teoria do mundo e que nessa medida depende da nossa postura epistemológica. O relativismo quanto à verdade é talvez sempre um sintoma de infecção pelo vírus epistemológico; de qualquer modo, isto parece ser verdade no caso de Quine, Nelson Goodman e Putnam.
A ideia intuitiva de que a verdade, excepto em poucos casos especiais, é inteiramente independente das nossas crenças opõe-se aparentemente a estas ideias; como por vezes se diz, as nossas crenças poderiam ser precisamente como são e no entanto a realidade — e portanto a verdade acerca da realidade — poderia ser muito diferente. De acordo com esta intuição, a verdade é “radicalmente não epistémica” (é assim que Putnam caracteriza o “realismo transcendental”) ou “transcende a justificação” (para usar a expressão de Dummett para o realismo). (Tanto Putnam como Dummett se opõem, claro, a estas ideias.) Se precisarmos de etiquetas para estas duas perspectivas da verdade, podemos ficar com os adjectivos “epistémico” e “realista”; a afirmação de uma ligação essencial à epistemologia introduz uma dependência da verdade relativamente ao que pode de algum modo ser verificado por criaturas racionais finitas, ao passo que a negação de qualquer dependência da verdade em relação à crença ou a outras atitudes humanas define um uso filosófico da palavra “realismo”.
Na próxima secção deste ensaio, que é também a última, irei esboçar uma abordagem do conceito de verdade que rejeita estas duas perspectivas. Não pretendo conciliar as duas posições. Acho que as perspectivas epistémicas são insustentáveis e que as realistas são em última análise incompreensíveis. Que as duas perspectivas estão fundamentalmente erradas, apesar de responderem sem dúvida a fortes intuições, é pelo menos sugerido pelo facto de ambas serem um convite ao cepticismo. As teorias epistémicas são cépticas no sentido em que o idealismo e o fenomenismo são cépticas; são cépticas não por fazerem a realidade incognoscível mas por reduzirem a realidade a muito menos do que pensamos que ela é. As teorias realistas, por outro lado, parecem lançar na dúvida não apenas o nosso conhecimento do que “transcende a justificação” mas tudo o resto que pensamos saber, pois tais teorias negam que o que é verdade esteja conceptualmente conectado, de uma maneira ou de outra, com o que pensamos.
Consideremos o projecto de dar um conteúdo a uma teoria da verdade. Normalmente, chega-se às definições de Tarski em vários passos. Primeiro, há uma definição do que é ser uma frase na linguagem-objecto; depois, uma caracterização recursiva de uma relação de satisfação (a satisfação é uma versão altamente generalizada de referência); a caracterização recursiva de satisfação é transformada numa definição explícita à maneira de Gottlob Frege e Dedekind; depois define-se a verdade com base nos conceitos de frase e satisfação. Saltámos o passo que torna a caracterização recursiva de satisfação numa definição, tornando assim explícito o facto de estarmos a tratar os predicados de verdade e satisfação como primitivos.
Qual dos dois conceitos semânticos, satisfação ou verdade, tomamos como básicos é algo que, do ponto de vista formal, está aberto à escolha. A verdade, como Tarski mostrou, define-se facilmente com base na satisfação; mas, alternativamente, a satisfação pode ser entendida como aquela relação, seja ela qual for, que permita uma elucidação correcta da verdade. Pode parecer que o trabalho de Tarski nos dá pistas incertas. O facto de a verdade das frases se definir apelando para as propriedades semânticas das palavras sugere que, se pudéssemos elucidar satisfatoriamente as propriedades semânticas das palavras (a referência e a satisfação, essencialmente), compreenderíamos o conceito de verdade. Por outro lado, o papel central da convenção V, determinando que a verdade, tal como caracterizada pela teoria, tem a mesma extensão que o conceito intuitivo de verdade, dá ideia que é a verdade e não a referência que é o primitivo básico. A perspectiva correcta é, penso, a segunda. Ao apelar à convenção V Tarski presume, como vimos, uma compreensão prévia do conceito de verdade; e ele mostra então pormenorizadamente como se pode dar seguimento a esta intuição no caso de linguagens particulares. Isso exige a introdução de um conceito referencial, uma relação entre palavras e coisas — uma relação qualquer como a satisfação. A história sobre a verdade gera um padrão na linguagem, o padrão das formas lógicas, ou da gramática propriamente dita, e a rede de dependências semânticas. Não há maneira de contar esta história — que, sendo sobre a verdade, é sobre frases ou sobre as ocasiões em que estas são usadas — sem atribuir papéis semânticos às partes das frases. Mas não se apela a uma compreensão prévia do conceito de referência.
Esta maneira de ver uma teoria da verdade é contrária à tradição. De acordo com a tradição nunca poderíamos compreender as frases, que são numerosas ou em número infinito, a menos que compreendêssemos as palavras que as compõem, palavras estas retiradas de um vocabulário finito; logo, as propriedades semânticas das palavras tinham de ser aprendidas antes de compreendermos as frases, e as propriedades semânticas das palavras tinham prioridade conceptual porque eram elas que explicavam as propriedades semânticas — sobretudo, as condições de verdade — das frases. Penso que esta linha de argumentação, que começa com um truísmo, acaba numa conclusão falsa; logo, algo tem de estar errado. O erro consiste em confundir a ordem da explicação apropriada depois de formulada a teoria com a explicação da razão pela qual a teoria é correcta. A teoria é correcta porque dá origem a frases V correctas; a sua correcção testa-se recorrendo à nossa compreensão do conceito de verdade, tal como este se aplica a frases. Uma vez que as frases V nada dizem em absoluto sobre a referência, a satisfação ou sobre expressões que não sejam frases, o teste da correcção da teoria é independente das intuições acerca desses conceitos. Todavia, mal temos a teoria, podemos explicar a verdade das frases com base na sua estrutura e nas propriedades semânticas das duas partes. A analogia com as teorias da ciência é completa: para organizar e explicar o que observamos directamente, postulamos objectos e forças inobservados ou indirectamente observados; testa-se a teoria com o que é directamente observado.
A perspectiva sobre a linguagem e a verdade que conquistamos é esta: o que está aberto à observação é o uso de frases num contexto, e a verdade é o conceito semântico que melhor compreendemos. A referência e outras noções semânticas relacionadas como a satisfação são, comparativamente, conceitos teóricos (como as noções de termo singular, predicado, conectiva de frases, etc.). Não se pode levantar questões acerca da correcção destes conceitos teóricos independentemente da questão de saber se eles dão origem a uma elucidação satisfatória do uso das frases.
Um efeito destas reflexões é concentrarmos a nossa atenção na centralidade do conceito de verdade na compreensão de uma linguagem; é a nossa compreensão deste conceito que nos permite dar sentido à questão de saber se uma teoria da verdade para uma linguagem é correcta. Não há razão para tentar encontrar uma elucidação anterior, ou independente, de uma relação referencial qualquer. A outra consequência principal da presente postura é fornecer uma oportunidade para dizer de forma razoavelmente penetrante o que falta, em termos de elucidação da verdade, numa teoria da verdade ao estilo de Tarski.
O que falta é a conexão com quem usa a linguagem. Nada poderia contar como frase, nem o conceito de verdade teria portanto qualquer aplicação, se não existissem criaturas que usam frases proferindo ou inscrevendo exemplares de frases. Qualquer elucidação completa do conceito de verdade tem de relacioná-lo com os intercâmbios linguísticos efectivos. Em termos mais precisos, a questão de saber se uma teoria da verdade é verdadeira em relação a uma dada linguagem (isto é, em relação a um falante ou grupo de falantes) só faz sentido se as frases dessa linguagem tiverem um significado que seja independente da teoria (de outro modo a teoria não é uma teoria no sentido normal, mas uma descrição de uma linguagem possível). Ou, para regressar à forma definicional que Tarski favorecia, se podemos levantar a questão de saber se uma definição de verdade define realmente a verdade em relação a uma dada linguagem, a linguagem tem de ter uma vida independente da definição (de outro modo, a definição é meramente estipulativa: especifica uma linguagem, mas não é verdadeira em relação a essa linguagem).
Se soubéssemos em geral o que faz uma teoria da verdade aplicar-se correctamente a um falante ou grupo de falantes, seria plausível dizer que compreendíamos o conceito de verdade; e se pudéssemos dizer exactamente o que faz essa teoria ser verdadeira, poderíamos explicitamente elucidar — talvez definir — a verdade. Os indícios últimos, em vez de um critério, para a correcção de uma teoria da verdade têm de repousar em factos disponíveis sobre o modo como os falantes usam a linguagem. Quando digo “disponíveis”, quero dizer “publicamente disponíveis” — disponíveis não apenas em princípio, mas disponíveis na prática a qualquer pessoa que seja capaz de compreender o falante ou falantes da linguagem. Dado que todos nós compreendemos realmente alguns falantes de algumas linguagens, todos nós temos de ter indícios adequados para atribuir condições de verdade às elocuções de alguns falantes; logo, todos compreendemos competentemente o conceito de verdade em aplicação ao comportamento verbal alheio.
Teremos nós resolvido assim a questão de saber se a verdade é radicalmente não epistémica, como os realistas proclamam, ou basicamente epistémica, como outros defendem? Pode parecer que a questão se resolve a favor da perspectiva epistémica ou subjectiva, uma vez que seguimos uma argumentação que conduz à conclusão segundo a qual é o modo como a linguagem é usada que decide a questão de saber se uma teoria da verdade para essa linguagem é verdadeira. Mas na verdade a questão não está resolvida, pois os realistas podem sustentar que o problema de saber se a teoria é verdadeira relativamente a uma linguagem dada ou a um grupo de falantes é de facto empírica, mas só porque o problema de saber o que as palavras querem dizer é empírico; pode-se sustentar que a questão da verdade ainda não foi respondida, nem pela própria teoria nem de outra maneira qualquer.
Será que a teoria já contém a resposta? Conterá se a afirmação de que uma teoria do tipo da de Tarski é uma teoria da correspondência tiver alguma razão de ser, pois nesse caso a teoria tem efectivamente de definir a verdade como correspondência com a realidade — a forma clássica de realismo com respeito à verdade. O próprio Tarski afirmou que queria que as suas definições de verdade fizessem “justiça às intuições que subjazem à concepção clássica da verdade”; Tarski cita então a Metafísica de Aristóteles (“dizer do que é, que é, ou do que não é, que não é, é verdadeiro”), e oferece, como formulação alternativa, o seguinte:
A verdade de uma frase consiste na sua concordância (ou correspondência) com a realidade.
(Tarski35 acrescenta que o termo “teoria da correspondência” foi sugerido para designar este modo de pôr as coisas.) Eu próprio defendi no passado que as teorias do tipo que Tarski mostrou como produzir eram uma espécie de teorias da correspondência.36 Afirmei-o com base no facto de não haver maneira de apresentar uma tal teoria sem empregar um conceito como referência ou satisfação, que relaciona expressões com objectos no mundo.
Parece-me agora ter sido um erro ter chamado “teorias da correspondência” a tais teorias. Eis a razão pela qual penso que foi um erro: a acusação que habitualmente se faz às teorias da correspondência é que não faz sentido sugerir que é de algum modo possível comparar as nossas palavras ou crenças com o mundo, visto que a tentativa terá de acabar sempre na aquisição de mais crenças. Otto Neurath,37 por exemplo, deu voz a esta acusação, e por isso adoptou uma perspectiva coerentista da verdade; Carl Hempel38 exprimiu a mesma objecção, falando da “confrontação fatal de afirmações e factos” (ibid., p. 51). Rorty39 insistiu repetidamente, proclamando simpatia com os pontos de vista de Dewey, na ideia de que uma perspectiva da verdade como correspondência torna o conceito de verdade inútil. Eu próprio afirmei mais ou menos o mesmo.40
Esta acusação contra as teorias da correspondência não é sólida. Uma das razões é depender do pressuposto de que a teoria epistémica, numa qualquer versão, é correcta; logo, só seria uma acusação legítima se a verdade fosse um conceito epistémico. Se esta fosse a única razão para rejeitar as teorias da correspondência, o realista poderia limitar-se a responder que a sua posição fica incólume; pois ele sempre defendeu que a verdade é independente das nossas crenças ou da nossa capacidade para descobrir a verdade.
A verdadeira objecção às teorias da correspondência é mais simples; é a ideia de que nada há de interessante ou instrutivo às quais as frases verdadeiras possam corresponder. Esta ideia foi apresentada há algum tempo por C. I. Lewis;41 ele desafiou os defensores da teoria da correspondência a localizar o facto ou parte da realidade, ou do mundo, à qual corresponde uma frase verdadeira. Podemos localizar objectos individuais, se por acaso a frase os nomear ou descrever, mas mesmo este tipo de localização só faz sentido relativamente a um quadro de referência, e portanto, presumivelmente, o quadro de referência tem de ser incluído naquilo a que uma frase verdadeira corresponde, seja isso o que for. Ao seguir esta linha de ideias, Lewis foi conduzido à conclusão de que se as frases verdadeiras correspondem a algo, tem de ser ao universo como um todo; assim, todas as frases verdadeiras correspondem à mesma coisa. Frege, como sabemos, chegou à mesma conclusão através de um raciocínio algo parecido. O argumento de Frege, se Alonzo Church42 tiver razão, pode ser formalizado: partindo dos pressupostos de que não podemos fazer uma frase verdadeira corresponder a algo diferente inserindo termos singulares co-referenciais, ou inserindo frases logicamente equivalentes, é fácil mostrar que se as frases verdadeiras correspondem a algo, correspondem todas à mesma coisa. Mas isto trivializa completamente o conceito de correspondência; não há interesse na relação de correspondência se há apenas uma coisa a que correspondem todas as frases verdadeiras visto que, como em qualquer outro caso do mesmo género, podemos muito bem reduzir a relação a uma propriedade simples: assim, “f corresponde ao universo”, como “f corresponde (ou nomeia) o Verdadeiro” ou “f corresponde aos factos”, pode ser lida, com menos riscos de nos enganarmos, como “f é verdadeira”. Peter Strawson43 observou que as partes de uma frase podem corresponder a partes do mundo (isto é, podem referir partes do mundo), mas acrescentou o seguinte:
É evidente que nada mais há no mundo com o qual a própria afirmação possa estar relacionada. […] E é evidente que a exigência de que devia haver um tal relatum é logicamente absurda. […] Mas exigir algo no mundo que torne a afirmação verdadeira […], ou à qual a afirmação corresponda quando é verdadeira, não é senão a mesma exigência absurda (ibid., pp. 194–195).
Strawson afirma de seguida, correctamente, que “apesar de dizermos, sem dúvida, que uma afirmação corresponde aos factos (ou encaixa, ou tem origem em, ou concorda com)” isto não é senão “uma variante da afirmação de que ela é verdadeira” (ibid.).
A objecção correcta às teorias da correspondência não é, pois, a de que tornam a verdade algo a que os seres humanos não podem jamais legitimamente aspirar; a verdadeira objecção é antes a de que tais teorias não conseguem fornecer entidades às quais possamos dizer que os veículos de verdade (quer sejam afirmações, frases ou elocuções) correspondem. Se isto for verdade, estou convencido de que devemos também pôr em causa o pressuposto popular de que as frases, ou os seus exemplares falados, ou as entidades do género das frases ou as configurações nos nossos cérebros, se possam apropriadamente chamar “representações”, visto que nada há que elas possam representar. Se desistirmos dos factos enquanto entidades que tornam as frases verdadeiras, devemos desistir ao mesmo tempo de representações, pois a legitimidade de uma depende da legitimidade da outra.
Há pois uma razão séria para lamentar ter dito que uma teoria da verdade ao estilo de Tarski era uma forma de teoria da correspondência. A minha razão básica para o dizer não foi ter cometido o erro de supor que as frases ou elocuções de frases correspondem a algo de um modo interessante. Mas ainda estava sob a influência da ideia de que há algo importante na concepção realista da verdade; a ideia de que a verdade, e portanto a realidade, são (excepto em casos especiais) independentes do que qualquer pessoa pensa ou pode saber. Assim, publicitei a minha perspectiva como uma forma de realismo, realismo com respeito ao “mundo exterior”, com respeito ao significado e com respeito à verdade.44
Os termos “realismo” e “correspondência” foram mal escolhidos porque sugerem o aval positivo de uma posição, ou um pressuposto de que há uma tese positiva e clara a ser adoptada, ao passo que tudo o que eu estava autorizado a sustentar, e tudo o que a minha posição implicava realmente no que respeita ao realismo e à verdade, era a perspectiva negativa de que as perspectivas epistémicas são falsas. A perspectiva realista da verdade, se tem qualquer conteúdo, tem de ser baseada na ideia de correspondência, correspondência aplicada a frases ou crenças ou elocuções — entidades que têm um carácter proposicional; e não se pode tornar inteligível tal correspondência. Cometi simplesmente o erro de presumir que as teorias realistas e epistémicas eram as únicas posições possíveis. A única razão legítima que eu tinha para dizer que a minha posição era uma forma de realismo era querer rejeitar posições como o anti-realismo de Dummett; eu queria rejeitar a doutrina de que a realidade ou a verdade dependiam directamente das nossas capacidades epistémicas. Esta rejeição faz sentido. Mas tanto é fútil rejeitar como aceitar a divisa de que o real e o verdadeiro são “independentes do que pensamos”. O único sentido positivo evidente que podemos dar a esta expressão, o único uso em harmonia com as intenções dos que a valorizam, deriva da ideia de correspondência, e esta é uma ideia sem conteúdo.45
Rejeitar a doutrina de que o real e o verdadeiro são independentes do que pensamos não é, claro, rejeitar o lugar-comum que erradamente se pode pensar que exprime: pensar em algo não torna isso em que pensamos, em geral, verdadeiro. Pois permitir que o lugar-comum seja verdadeiro não nos compromete com a afirmação de que não há qualquer conexão entre o que pensamos e a verdade; tem de haver alguma conexão para que possamos relacionar a verdade das elocuções com o seu uso. A questão é saber o que poderá ser essa conexão.
Há várias formas de subjectivismo — isto é, perspectivas que tornam a verdade um conceito epistémico — que conectam os pensamentos, desejos e intenções humanos com a verdade de formas muito diferentes, e eu não posso fazer aqui justiça a todas essas perspectivas. O melhor que posso fazer é indicar por que razão, apesar das diferenças entre as várias posições, faz sentido estar insatisfeito com todas elas.
Classifiquei como epistémicas as teorias da verdade como coerência, e isto carece de uma explicação. Uma teoria pura da verdade como coerência sustentaria, suponho, que todas as frases de um conjunto consistente de frases são verdadeiras. Talvez ninguém tenha jamais sustentado tal teoria, pois é uma loucura. Quem propôs teorias da coerência, Neurath e Rudolf Carnap (num dado momento), por exemplo, tornou habitualmente claro que eram conjuntos de crenças, ou de frases tidas como verdadeiras, cuja consistência era suficiente para as tornar verdadeiras; é por isso que agrupo as teorias da coerência juntamente com as perspectivas epistémicas: conectam directamente a verdade com aquilo que se pensa. Mas a não ser que se acrescente mais qualquer coisa, esta perspectiva parece tão errada quanto Moritz Schlick46 pensava (ele chamava-lhe um “erro desconcertante”); a objecção óbvia é que são possíveis diferentes conjuntos consistentes de crenças que não são consistentes entre si.47
Há teorias, de certo modo análogas às teorias da coerência, que têm em grande parte o mesmo problema. Quine sustenta que a verdade de algumas frases, a que ele chama “frases de observação”, está directamente ligada à experiência (mais precisamente, a padrões de excitação nervosa); outras frases derivam o seu conteúdo empírico das suas conexões com frases de observação e das relações lógicas entre elas. A verdade da teoria que daqui resulta depende unicamente da questão de saber se serve para explicar ou prever frases de observação verdadeiras. Quine sustenta, o que é plausível, que poderiam existir duas teorias igualmente capazes de dar conta de todas as frases de observação verdadeiras, sem que, no entanto, qualquer delas possa ser reduzida à outra (cada teoria contêm pelo menos um predicado que não pode ser definido usando os recursos da outra teoria). Em diferentes momentos, Quine abraçou diferentes modos de conceber esta situação. De acordo com um desses modos, ambas as teorias são verdadeiras. Não vejo razão para objectar que teorias empiricamente equivalentes (seja como for que se caracterize o conteúdo empírico) são conjuntamente verdadeiras ou falsas. De acordo com a outra perspectiva de Quine, um falante ou um pensador opera, num dado momento, com uma teoria e, para ele e nesse momento, a teoria que ele está a usar é verdadeira e a outra é falsa. Se ele mudar para a teoria alternativa, essa teoria torna-se então verdadeira, e ele aceitava previamente uma teoria falsa. Esta posição pode ilustrar o que Quine quer dizer quando afirma que a verdade é “imanente”.48 Esta concepção da imanência da relatividade da verdade não deve confundir-se com o sentido prosaico segundo o qual a verdade das frases é relativa à linguagem à qual as frases pertencem. As duas teorias de Quine podem pertencer à mesma linguagem, e ser formuladas na mesma linguagem; na verdade, têm de o ser, para que compreendamos a afirmação de que as teorias estão em conflito. Não é fácil ver como a mesma frase (sem elementos indexicais), sem mudarmos a interpretação, pode ser verdadeira para uma pessoa e não para outra, ou para uma pessoa num dado momento e não noutro. A dificuldade parece dever-se à tentativa de importar considerações epistemológicas para o conceito de verdade.
O “realismo interno” de Putnam torna também a verdade imanente, apesar de não ser relativa a uma teoria, como para Quine, mas à totalidade da linguagem e do esquema conceptual que uma pessoa aceita. Claro que se tudo o que isto quer dizer é que a verdade das frases ou das elocuções é relativa a uma linguagem, isto é familiar e é trivialmente correcto. Mas Putnam parece ter algo mais em mente — por exemplo, que uma frase de uma pessoa pode contradizer a de outra e no entanto cada uma delas ser “verdadeira para o falante”. É difícil pensar em que linguagem se poderá exprimir coerentemente — quanto mais persuasivamente — esta posição. O problema resulta de se sentir a necessidade de tornar a verdade acessível. Putnam é claro: o que o preocupa é esta consideração. Putnam identifica explicitamente a verdade com assertibilidade justificada idealizada, e diz que isto é um tipo de realismo porque há “uma questão de facto quanto ao problema de saber qual seria o veredicto se as condições fossem suficientemente boas, um veredicto em direcção ao qual a opinião “convergiria” se fôssemos razoáveis”.49 Putnam acrescenta que a sua perspectiva é “um tipo humano de realismo, uma convicção de que há uma questão de facto quanto ao que é correctamente asserível para nós, ao invés do que é correctamente asserível do ponto de vista do olhar de Deus, perspectiva tão querida ao metafísico realista clássico” (ibid.). Suspeita-se que se as condições sob as quais alguém está idealmente justificado fossem formuladas, seria evidente que ou essas condições permitem a possibilidade do erro ou que são tão ideais que não atribuem qualquer papel à desejada conexão com as capacidades humanas. É também significativo que Putnam pareça não ter qualquer argumento a favor da sua posição, excepto que a alternativa (“o realismo metafísico” — isto é, a teoria da correspondência) é inaceitável. Putnam não defende que não pode haver outra posição.
Ao descrever a sua posição, Putnam afirma que esta está próxima de Dummett quanto ao aspecto principal — o estatuto epistemológico da verdade. Uma diferença é que Putnam não está tão convencido como Dummett de que a verdade se limita ao que é asserível, e portanto tem menos certezas do que Dummett de que o princípio da bivalência tenha de ser abandonado; isto explica talvez por que razão Putnam diz que a sua perspectiva é uma forma de realismo, ao passo que Dummett diz que a sua posição é anti-realista. Putnam pensa também que difere de Dummett ao ligar a verdade à assertibilidade idealizada justificada, em vez de à assertibilidade justificada; mas, neste caso, penso que uma leitura cuidada de Dummett irá mostrar que ele tem em grande medida a mesma ideia. Se Dummett não insiste em algo análogo às condições ideais de Putnam, então penso que se lhe aplica uma crítica que Putnam formulou uma vez: se a verdade depende unicamente da assertibilidade justificada, pode-se “perder” uma verdade, isto é, uma frase pode ser verdadeira para uma pessoa num dado momento e tornar-se falsa porque as condições de justificação mudaram. Isto tem de estar errado.50 Dummett diz que concorda que a verdade não se pode perder, mas não consegue dar uma ideia clara de como a assertibilidade garantida pode ser simultaneamente uma propriedade fixa e uma propriedade que depende da capacidade efectiva dos falantes humanos para reconhecer que certas condições são satisfeitas. As capacidades efectivas mudam e diferem de pessoa para pessoa; a verdade, não.
Por que razão sanciona Dummett esta perspectiva da verdade? Há várias razões, mas uma delas parece ser a seguinte: vimos que uma teoria da verdade ao estilo de Tarski nem define nem caracteriza completamente a verdade; não há maneira de dizer se a teoria se aplica a um falante ou grupo de falantes a menos que se acrescente algo que relacione a teoria aos usos humanos da linguagem. Dummett pensa que a única maneira de fazer isto é tornar a verdade humanamente reconhecível. O uso humano da linguagem tem de ser uma função de como as pessoas compreendem a linguagem, e assim, para que a verdade tenha um papel a desempenhar na explicação do que é compreender uma linguagem, tem de haver algo, pensa Dummett, que constitua aquilo que faz uma pessoa ter “indícios conclusivos” de que uma afirmação é verdadeira. Podemos dar valor à força desta ideia ao mesmo tempo que achamos difícil aceitá-la. Já apresentei a razão principal pela qual penso que devemos rejeitá-la: ou é uma ideia vazia ou faz da verdade uma propriedade que se pode perder. Mas é importante reparar que há outras intuições fortes que teriam também de ser sacrificadas se Dummett tivesse razão. Uma delas é a conexão entre verdade e significado: do ponto de vista de Dummett, podemos compreender uma frase como “Nunca se irá construir uma cidade neste sítio” sem termos qualquer ideia do que seria esta frase ser verdadeira (uma vez que a frase, ou qualquer elocução da frase, não tem valor de verdade para Dummett). Outra é a conexão entre verdade e pensamento: do ponto de vista de Dummett, consigo compreender e pensar que nunca se vai construir uma cidade neste sítio, mas o meu pensamento não terá valor de verdade. Parece que, para Dummett, pensar algo que exprimimos por meio de uma dada frase não é, necessariamente, pensar que essa frase é verdadeira.
Eu poderia ter a tentação de alinhar com Dummett se pensasse que temos de escolher entre o que Putnam chama “realismo transcendental”, isto é, a perspectiva de que a verdade é “radicalmente não epistémica”, que todas as nossas mais investigadas e melhor estabelecidas crenças e teorias podem ser falsas, e a identificação de Dummett entre verdade e assertibilidade garantida, uma vez que acho que a primeira perspectiva — que é essencialmente a perspectiva da correspondência — é incompreensível, ao passo que acho que a perspectiva de Dummett é apenas falsa. Mas não vejo qualquer razão para supor que o realismo e o anti-realismo, explicados em termos do carácter radicalmente não epistémico ou radicalmente epistémico da verdade, sejam as únicas maneiras de dar substância a uma teoria da verdade ou do significado.
Façamos um breve inventário. Na primeira secção deste ensaio rejeitei as perspectivas deflacionistas da verdade, aquelas perspectivas que afirmam que nada mais há no conceito de verdade do que Tarski mostrou como definir no caso de linguagens particulares. Nesta secção, defendi que certas tentativas conhecidas de caracterizar a verdade que fazem mais do que dar conteúdo empírico a uma estrutura do tipo que Tarski nos ensinou a descrever são vazias, falsas ou estão confundidas. Não devemos dizer que a verdade é correspondência, coerência, assertibilidade garantida, assertibilidade idealmente justificada, o que é aceite na conversa das pessoas certas, o que a ciência acabará por sustentar, o que explica a convergência de teorias isoladas na ciência, ou o sucesso das nossas crenças correntes. Na medida em que o realismo e o anti-realismo dependem de uma ou outra destas perspectivas da verdade, devemos recusar-nos a sancionar qualquer deles. O realismo, com a sua insistência na correspondência radicalmente não epistémica, pede mais à verdade do que podemos compreender; o anti-realismo, ao limitar a verdade ao que pode ser asserido, priva a verdade do seu papel como um padrão intersubjectivo. Temos de encontrar outra maneira de ver a questão.
Uma teoria da verdade, ao contrário de uma definição estipulativa da verdade, é uma teoria empírica sobre as condições de verdade de todas as frases num dado corpo de frases. Mas é claro que as frases são objectos abstractos, configurações, digamos, e não têm condições de verdade excepto quanto ganham corpo em sons e rabiscos produzidos por falantes e rabiscadores. Em última análise, é com as elocuções e escritos de quem usa uma linguagem que uma teoria da verdade tem de lidar; o papel das frases numa teoria é meramente o de dar a possibilidade de lidar com tipos de elocuções e inscrições, quer os tipos particulares estejam realizados quer não. A introdução de frases serve assim dois propósitos: permite falar de todas as elocuções e inscrições efectivas do mesmo tipo de uma só vez; e permite-nos estipular quais seriam as condições de verdade de uma elocução ou de uma inscrição de um dado tipo se essa elocução ou inscrição fossem produzidas. (Por motivos de brevidade, passarei daqui para a frente a referir-me a actos de escrita como se fossem elocuções, juntamente com as suas contrapartes audíveis.)
Apesar de podermos por vezes dizer que um grupo fala com uma única voz, as elocuções são essencialmente pessoais; cada elocução tem o seu agente e o seu momento. Uma elocução é um acontecimento de um tipo especial, uma acção intencional. As teorias da verdade ocupam-se primariamente com elocuções de frases, elocuções que, seja qual for a sua gramática de superfície, têm de ser tratadas como elocuções de frases. A primazia das frases ou das elocuções de frases é ditada pelo facto de que é às frases, proferidas em ocasiões particulares por falantes particulares, que a teoria fornece condições de verdade e é dessas mesmas frases que a verdade é predicada. À parte a felicidade verbal, não há razão para não chamar à elocução de uma frase, sob condições que tornam a frase verdadeira, uma elocução verdadeira.
Uma teoria da verdade faz mais do que descrever um aspecto do comportamento discursivo de um agente, pois não nos dá apenas as condições de verdade das elocuções efectivas; especifica também as condições debaixo das quais a elocução de uma frase seria verdadeira se fosse proferida. Isto aplica-se tanto a frases efectivamente proferidas, dizendo-nos o que teria sido o caso se essas frases tivessem sido proferidas noutros momentos ou noutras circunstâncias, como a frases que nunca foram proferidas. A teoria descreve assim uma certa capacidade complexa.
Uma elocução só tem certas condições de verdade se o falante tiver a intenção de ser interpretado de modo a que a sua elocução tenha essas condições de verdade. Algumas considerações morais, sociais ou legais podem por vezes convidar-nos a negar isto, mas não penso que as razões para tais excepções revelem algo de importante sobre o que é básico na comunicação. Uma pessoa pode dizer algo que seria normalmente ofensivo ou insultuoso numa linguagem que essa pessoa pensa que a sua audiência não compreende; mas, nesse caso, a sua audiência para fins interpretativos é obviamente apenas o próprio falante. Se um malapropismob ou lapso linguístico quer dizer alguma coisa, quer dizer o que a pessoa que o disseminou tinha em mente. Há quem goste de sustentar que o significado das palavras é magicamente independente das intenções dos falantes; por exemplo, que o significado depende da maneira como fala a maioria, ou as pessoas mais bem informadas, ou os bem-nascidos da comunidade na qual o falante vive, ou talvez como falariam se fossem suficientemente cuidadosos.51 Esta doutrina implica que um falante pode ser perfeitamente inteligível para a sua audiência, pode ser interpretado exactamente como ele quer ser interpretado, não sabendo no entanto o que quer dizer com o que diz. Penso que esta perspectiva, apesar de ter sido engenhosa e elaboradamente defendida, não revela qualquer interesse filosófico sério sobre a natureza da verdade ou do significado (apesar de tanto a verdade como o significado poderem ter muito a ver com práticas correctas ou aceitáveis e de poderem representar uma intenção, ou mesmo um tipo qualquer de responsabilidade social, da parte de alguns falantes).52 Para os fins da tarefa em curso, que consiste em compreender a verdade e o significado, penso que devemos limitar-nos tanto quanto possível ao que um falante disponibiliza directamente ao auditório, e este é o estado mental relevante do falante. O que interessa na comunicação linguística bem-sucedida é a intenção que o falante tem de ser interpretado de certa maneira, por um lado, e a efectiva interpretação das palavras do falante em termos do que ele tem em mente por um intérprete que reconheça as suas intenções, por outro.53
A abordagem que adopto não atribui um peso primário ao conceito de uma linguagem enquanto algo partilhado por falante e intérprete, ou por um falante e uma comunidade discursiva, excepto no seguinte sentido: apesar de a comunicação por meio do discurso não exigir, tanto quanto consigo ver, que quaisquer dois falantes falem da mesma maneira, exige, claro, uma harmonia entre a maneira como os falantes querem ser interpretados e a maneira como os seus intérpretes os entendem. Esta exigência tem sem dúvida tendência para encorajar a convergência no comportamento discursivo entre quem troca palavras, dependendo o grau de convergência de factores como o estatuto social e económico partilhado, o pano de fundo educativo e étnico, etc. A questão de saber que convergência existe é de tal importância prática que tanto podemos exagerar o seu grau como o seu significado filosófico. Mas penso que, ao construir teorias do significado, da verdade e da comunicação linguística, é uma boa ideia ignorar esta questão prática.54 Irei por isso tratar as teorias da verdade como aplicáveis antes de mais a falantes individuais em vários períodos e mesmo momentos das suas vidas.
Uma teoria da verdade conecta o falante com o intérprete: descreve desde logo as capacidades e práticas linguísticas do falante e dá a substância do que um intérprete com conhecimento de causa sabe que lhe permite compreender o significado das elocuções do falante. Isto não é dizer que o falante ou o intérprete tem consciência ou um conhecimento proposicional dos conteúdos de tal teoria. A teoria descreve as condições debaixo das quais uma elocução de um falante é verdadeira, e portanto nada diz directamente sobre o que o falante sabe. Contudo, a teoria implica algo sobre o conteúdo proposicional de certas intenções do falante, nomeadamente, as suas intenções de que as suas elocuções sejam interpretadas de certa maneira. E apesar de o intérprete não precisar sem dúvida de ter um conhecimento explícito da teoria, a teoria fornece de facto a única maneira de especificar a infinidade de coisas que o intérprete sabe sobre o falante, nomeadamente, as condições debaixo das quais cada frase de um número indefinidamente extenso de frases do falante seria verdadeira se fosse proferida.
Tem obviamente de haver um sentido segundo o qual tanto o falante como o intérprete interiorizaram uma teoria; mas isto não é mais do que o facto de o falante poder falar como se pensasse que o intérprete o interpretaria do modo que a teoria descreve, e o facto de o intérprete estar preparado para o interpretar desse modo. Tudo o que devemos exigir de uma teoria da verdade para um falante é que seja tal que se um intérprete tivesse conhecimento proposicional explícito da teoria, ele saberia as condições de verdade das elocuções do falante.55
Uma teoria da verdade para um falante é uma teoria do significado neste sentido: o conhecimento explícito da teoria seria suficiente para compreender as elocuções desse falante. A teoria alcança este fim descrevendo o núcleo crítico do comportamento linguístico potencial ou efectivo do falante do modo como, com efeito, o falante quer que as suas elocuções sejam interpretadas. O tipo de compreensão envolvida restringe-se ao que podemos também chamar “significado literal das palavras”, querendo eu com isto dizer, aproximadamente, o significado que o falante quer que o intérprete compreenda, seja qual for a força ou alcance que o falante queira que o intérprete descubra.56
É claro que a tese segundo a qual uma teoria das condições de verdade fornece uma elucidação adequada do que é necessário para compreender os significados literais das elocuções é muito disputada, mas dado que argumentei detidamente a seu favor noutro lado, neste ensaio irei encarar esta tese, em grande medida, como um pressuposto. Se o pressuposto estiver errado, a maior parte dos pormenores do que passarei a dizer sobre a aplicação do conceito de verdade estará ameaçada, mas penso que a abordagem geral permanecerá válida.
Uma teoria da verdade, encarada como teoria empírica, testa-se pelas suas consequências relevantes, e estas consequências são as frases V que a teoria implica. Uma frase V diz, a respeito de um falante particular, que sempre que ele profere uma dada frase, a elocução será verdadeira se, e só se, certas condições forem satisfeitas. As frases V têm assim a forma e a função das leis da natureza; são bicondicionais universalmente quantificadas e, como tal, pensamos que têm aplicação contrafactual e que se confirmam pelos seus casos.57 Assim, uma teoria da verdade é uma teoria para descrever, explicar, compreender e prever um aspecto básico do comportamento verbal. Uma vez que o conceito de verdade é central para a teoria, temos justificação para dizer que a verdade é um conceito explicativo crucialmente importante.
A questão que subsiste é esta: como confirmamos a verdade de uma frase V? Este tipo de questão levanta-se a respeito de muitas teorias, tanto na física como na psicologia. Uma teoria fundamental do peso, por exemplo, declara em termos axiomáticos as propriedades da relação entre x e y que obtêm quando x é pelo menos tão pesado como y; esta relação tem, entre outras coisas, de ser transitiva, reflexiva e não-simétrica. Uma teoria da preferência pode estipular que a relação de preferência fraca tem as mesmas propriedades formais. Mas em nenhum dos casos os axiomas definem a relação central (x é pelo menos tão pesado como y, x é fracamente preferível a y), nem nos dizem como determinar quando a relação obtém. Antes de a teoria poder ser testada ou usada, tem de se dizer algo sobre a interpretação dos conceitos não definidos. O mesmo se aplica ao conceito de verdade.58
É um erro procurar uma definição em termos de comportamento, ou na verdade qualquer outro tipo de definição explícita ou redução directa do conceito de verdade. A verdade é um dos conceitos mais claros e básicos que temos, de modo que é inútil sonhar com a sua eliminação a favor de algo mais simples ou mais fundamental. O nosso modo de proceder é antes o seguinte: perguntámos quais são as propriedades formais do conceito quando este se aplica a estruturas relativamente bem compreendidas, nomeadamente a linguagens. É neste ponto que nos inspiramos no trabalho de Tarski. Falta indicar como uma teoria da verdade se pode aplicar a falantes particulares ou a grupos de falantes. Dada a complexidade das estruturas que o conceito de verdade ajuda a caracterizar, pedaços comparativamente anémicos de indícios, aplicados a uma infinidade potencial de pontos, podem dar origem a resultados ricos e instrutivos. Mas não se deve esperar a completa formalização da relação entre indícios a favor da teoria e a própria teoria.
O que devemos exigir, contudo, é que os indícios a favor da teoria sejam em princípio publicamente acessíveis, e que não presumam à partida os conceitos a esclarecer. A exigência de que os indícios sejam publicamente acessíveis não se deve a uma saudade atávica por fundamentos behavioristas ou verificacionistas, mas porque o que queremos explicar é um fenómeno social. Os fenómenos mentais em geral podem ser privados ou não, mas a interpretação correcta do discurso de uma pessoa por outra tem de ser possível em princípio. A intenção de um falante de que as suas palavras sejam compreendidas de certo modo podem, é claro, ser opacas para o ouvinte mais hábil e com maiores conhecimentos, mas o que tem a ver com interpretação correcta, significado e condições de verdade baseia-se necessariamente nos indícios disponíveis. Como Ludwig Wittgenstein defendeu insistentemente, para não falar de Dewey, G. H. Mead, Quine e muitos outros filósofos, a linguagem é intrinsecamente social. Isto não implica que a verdade e o significado possam ser definidos em termos de comportamento observável, nem que “nada é senão” comportamento observável; mas implica que o significado é inteiramente determinado pelo comportamento observável, até mesmo pelo comportamento prontamente observável. Não é uma questão de sorte que os significados sejam decifráveis; a acessibilidade pública é um aspecto constitutivo da linguagem.
Os conceitos usados para exprimir os indícios não podem constituir uma petição de princípio; devem ser suficientemente remotos em relação ao que a teoria, em última análise, produz. Esta condição final não é mais do que o que pedimos a qualquer análise reveladora, mas é difícil, pelo menos neste caso, satisfazê-la. Qualquer tentativa de compreender a comunicação verbal terá de ver a comunicação no seu cenário natural como parte integrante de uma actividade mais lata. À primeira vista parece que isto não deve ser difícil, uma vez que nada mais há numa linguagem do que transacções públicas entre falantes e intérpretes, e a disposição para tais transacções. Todavia, a tarefa escapa-nos. Pois o facto de os fenómenos linguísticos nada serem senão fenómenos comportamentais, biológicos ou físicos descritos num vocabulário exótico de significado, referência, verdade, asserção, etc. — mera sobreveniência deste género de um tipo de facto ou descrição sobre outro — não garante, nem mesmo promete, a possibilidade de redução conceptual.
Eis o nosso problema. Vou agora esboçar o que penso ser pelo menos o género correcto de solução. O ambiente psicológico imediato das disposições e feitos linguísticos encontra-se nas atitudes, estados e acontecimentos que são descritos no idioma intensional: acção intencional, desejos, convicções e os seus familiares mais chegados como esperanças, receios, desejos e tentativas. Não só as várias atitudes proposicionais e os seus lacaios conceptuais formam o cenário no qual o discurso ocorre, mas não há hipótese de se chegar a uma compreensão profunda de factos linguísticos excepto na medida em que essa compreensão for acompanhada por uma elucidação entrelaçada das atitudes cognitivas e volitivas centrais.
É pedir de mais que estas noções intensionais básicas se reduzam a outra coisa — algo mais behaviorista, neurológico ou fisiológico, por exemplo. Nem podemos analisar qualquer uma das três — crença, desejo e significado — em termos de uma ou duas das outras; pelo menos, é o que penso, e o que defendi noutro lado.59 Mas mesmo que pudéssemos reduzir este trio básico, os resultados deixariam muito a desejar porque o destino final — a interpretação, digamos, do discurso — estaria, pura e simplesmente, demasiado próximo do ponto de partida (com crença e desejo, ou com intenção, que é o produto de crença e desejo). Uma elucidação básica de qualquer destes conceitos tem de começar para além ou por baixo de todos eles, ou num ponto equidistante em relação a todos.
Se isto for assim, uma análise do significado linguístico que assuma a identificação prévia com propósitos ou intenções não linguísticos será radicalmente incompleta. Nem valerá a pena apelar para regras ou convenções explícitas ou implícitas, mais que não seja porque estas têm de ser compreendidas em termos de intenções e crenças. As convenções e as regras não explicam a linguagem; é a linguagem que as explica. Não se pode duvidar, claro, da importância de mostrar como os significados e as intenções se conectam entre si. Tais conexões dão estrutura às atitudes proposicionais e tornam-nas susceptíveis de serem sistematicamente tratadas. Mas a interdependência das atitudes intencionais básicas é de tal modo completa que é escusado ter a esperança de compreender uma independentemente da compreensão das outras. Assim, o que se quer é uma abordagem que dê origem a uma interpretação das palavras de um falante ao mesmo tempo que forneça uma base para lhe atribuir crenças e desejos. Tal abordagem tem o objectivo de fornecer uma base para a individuação das atitudes proposicionais, em vez de a pressupor.
A teoria bayesiana da decisão, tal como foi desenvolvida por Ramsey,60 lida com dois ou três aspectos intencionais da racionalidade que parecem dos mais fundamentais: crença e desejo. A escolha de um curso de acção em detrimento de outro, ou a preferência de que um estado de coisas obtenha e não outro, é o produto de duas considerações: o valor dado às várias consequências possíveis, e a probabilidade atribuída a essas consequências, dado que a acção seja desempenhada ou que o estado de coisas venha a obter. Logo, ao escolher uma acção ou estados de coisas, um agente racional irá seleccionar uma ou um, cujo valor relativo das suas consequências possíveis, depois de qualificado pela probabilidade que o agente atribui a essas consequências, é maior. Agir é sempre um risco, dado que um agente nunca pode saber como as coisas irão resultar. Assim, na medida em que um agente é racional, ele irá escolher o que ele pensa ser a melhor aposta à sua disposição (ele “maximiza a utilidade prevista”).
Uma característica de uma teoria assim é esta: o que ela foi concebida para explicar — as preferências ou as escolhas ordinais entre opções — está relativamente aberto à observação, ao passo que o mecanismo explicativo, que envolve graus de crenças e valores cardinais, não é encarado como observável. Levanta-se assim a questão de saber quando uma pessoa tem um certo grau de crença numa dada proposição, ou qual é a força relativa das suas preferências. O problema óbvio é que o que se sabe (a preferência ordinal ou simples) é o resultado de duas incógnitas: o grau de crença e a força relativa da preferência. Se fossem desconhecidas as preferências cardinais de uma pessoa em relação a certos resultados, então as suas escolhas entre cursos de acção revelariam o seu grau de crença; e se o seu grau de crença fosse conhecido, as suas crenças desvendariam os valores comparativos que ele atribui aos resultados. Mas como poderemos determinar as duas incógnitas a partir unicamente de simples escolhas ou preferências? Ramsey resolveu este problema mostrando que, com base unicamente em escolhas simples, é possível encontrar uma proposição que seja encarada como tão provável de ser verdadeira como a sua negação. Esta proposição única pode depois ser usada para construir uma série sem fim de apostas, e as escolhas entre as diferentes apostas permitem medir o valor de todas as opções e eventualidades possíveis. Calcular os graus de crença em todas as proposições é então uma rotina.
Ramsey conseguiu este truque especificando constrangimentos nos padrões permissíveis de preferências ou escolhas simples. Estes constrangimentos não são arbitrários, constituindo parte de uma elucidação satisfatória das razões do comportamento de uma pessoa no que respeita a preferências e escolhas. Os constrangimentos apresentam em pormenor a exigência de racionalidade por parte do agente, não em termos dos seus valores particulares e últimos, mas do padrão que estes formam entre si e em combinação com as suas crenças. A teoria tem assim um forte conteúdo normativo, mas um elemento que é essencial para que os conceitos de preferência, crença, razão e acção intencional tenham aplicação.
Apresentar um padrão no que se observa é algo central para a inteligibilidade do comportamento de escolha de um agente — determina a nossa capacidade para compreender acções desempenhadas por uma razão. O mesmo padrão é central para o poder que a teoria tem para extrair, de factos que tomados isoladamente estão relativamente conectados directamente com o que se pode observar, factos de um tipo mais sofisticado (grau de crença, comparações de diferenças de valor). Do ponto de vista da teoria, os factos sofisticados explicam os factos simples, mais observáveis, ao passo que os observáveis constituem a base indiciária para testar ou aplicar a teoria.
A teoria bayesiana da decisão não fornece uma definição dos conceitos de crença e preferência com base em noções não intensionais. Ao invés, usa uma noção intensional, a preferência ordinal entre jogadas ou resultados, de modo a dar conteúdo a duas outras noções: grau de crença e comparações de diferenças de valor. Assim, seria um erro pensar que a teoria fornece uma redução de conceitos intensionais a outra coisa. No entanto, é um passo importante na direcção da redução de conceitos complexos e relativamente teóricos e intensionais a conceitos intensionais que na sua aplicação estão mais próximos do comportamento publicamente observável. Acima de tudo, a teoria mostra como é possível atribuir um conteúdo a duas atitudes proposicionais básicas e interligadas sem pressupor que qualquer delas está à partida compreendida.
Enquanto teoria para explicar acções humanas, uma teoria bayesiana da decisão do género que tenho vindo a descrever está aberta à seguinte crítica: essa teoria pressupõe que possamos identificar e individuar as proposições às quais se dirigem as atitudes como crenças e desejos (ou preferências). Mas como insistimos há umas páginas, não se deve separar a nossa capacidade para identificar e diferenciar as proposições que um agente tem em mente da nossa capacidade para compreender o que ele diz. Em geral, descobrimos exactamente o que uma pessoa quer, prefere ou pensa recorrendo unicamente à interpretação do seu discurso. Isto é particularmente óbvio no caso da teoria da decisão, em que os objectos escolhidos ou preferidos têm muitas vezes de ser apostas complexas, com resultados descritos como contingentes relativamente à ocorrência de acontecimentos específicos. É claro que uma teoria que procure extrair as atitudes e crenças que explicam as preferências ou escolhas terá de incluir uma teoria da interpretação verbal, se não quiser ter pressupostos que a cerceiem.
O que temos de acrescentar incorporar na teoria da decisão é uma teoria da interpretação verbal, um modo de dizer o que um agente quer dizer com as suas palavras. Todavia, esta ampliação tem de ser feita na ausência de informação pormenorizada sobre os conteúdos proposicionais das crenças, desejos ou intenções.
Em alguns aspectos importantes, a abordagem de Quine ao significado é espantosamente análoga à abordagem de Ramsey à tomada de decisão. Observando que, apesar de não haver uma maneira directa de observar o que os falantes querem dizer, todos os indícios necessários para haver comunicação têm de estar publicamente disponíveis, Quine faz um levantamento dos indícios relevantes disponíveis, e pergunta como poderiam eles ser usados para descobrir significados. O que se pode observar, claro, é o comportamento verbal em relação ao ambiente, e a partir disto podemos inferir de forma razoavelmente directa certas atitudes relativamente a frases, tal como podemos inferir preferências a partir das escolhas. Para Quine, os observáveis fundamentais são actos de assentimento e dissentimento, causados por acontecimentos no âmbito do falante. A partir de tais actos é possível inferir que certos tipos de acontecimentos causam o falante a tomar uma frase como verdadeira.61
É precisamente aqui que se levanta um desafio básico. Um falante pensa que uma frase é verdadeira em resultado de duas considerações: o que ele pensa que a frase quer dizer, e o que ele pensa que é o caso. O problema é que o que é directamente observável por um intérprete é o produto de duas atitudes inobserváveis: crença e significado. Como podemos distinguir e extrair a partir dos indícios os papéis destes dois factores explicativos? O problema é curiosamente semelhante ao problema de desenlear os papéis da crença e da preferência na determinação das escolhas e das preferências.
A solução de Quine assemelha-se à de Ramsey nos seus princípios, ainda que não nos seus pormenores. O passo crucial em ambos os casos é encontrar uma maneira de fixar um factor em certas situações enquanto se determina o outro. A ideia central de Quine é que não é inteligível que a interpretação correcta de um agente por outro possa admitir certos tipos de graus de diferença entre o intérprete e o interpretado com respeito à crença. Em resultado disto, um intérprete tem justificação para admitir certos pressupostos sobre as crenças de um agente antes de a interpretação começar. Trata-se de um constrangimento sobre a interpretação, a que muitas vezes se dá o nome que Neil Wilson62 lhe deu: o princípio da caridade. Enquanto dispositivo para separar o significado da crença, sem pressupor nem um nem outra, é uma alternativa brilhante a qualquer abordagem do significado que tome os significados como garantidos ou que pressuponha a distinção analítico-sintético.
Usarei, nas páginas seguintes, o inspirado método de Quine de uma forma que se desvia, por vezes substancialmente, da forma como Quine o usa. Uma diferença relevante para o nosso tema é a seguinte: ao passo que Quine se ocupa das condições de tradução bem-sucedida de uma linguagem de um falante para a do intérprete, eu dou ênfase ao que o intérprete tem de conhecer da semântica da linguagem do falante, isto é, o que as frases V, implicadas por uma teoria da verdade, transmitem. A relação entre os dois projectos, o de Quine e o meu, é óbvia; dada uma teoria da verdade para uma linguagem L de um falante que seja expressa na linguagem M do intérprete, é razoavelmente claro como se produz um manual que traduz (pelo menos aproximadamente) de L para M.63 Mas a conversa é falsa; há muitas frases que podemos traduzir sem que tenhamos ideia de como as incorporar numa teoria da verdade. Exigir que uma teoria da interpretação satisfaça os constrangimentos de uma teoria da verdade significa que temos de tornar manifesta mais estrutura do que a necessária para a tradução.
Se supusermos, como o princípio da caridade afirma que temos inevitavelmente de fazer, que o padrão das frases às quais um falante dá o seu assentimento reflecte a semântica das constantes lógicas, é possível detectar e interpretar essas constantes. Os princípios que nos guiarão aqui, como na teoria da decisão, derivam de considerações normativas. As relações entre crenças desempenham um papel constitutivo decisivo; um intérprete não pode aceitar desvios grandes ou óbvios dos seus próprios padrões de racionalidade sem destruir o fundamento da inteligibilidade sobre a qual toda a interpretação repousa. A possibilidade de compreender o discurso ou as acções de um agente depende da existência de um padrão fundamentalmente racional, um padrão que tem, em termos gerais, de ser partilhado por todas as criaturas racionais. Não temos escolha, pois, senão projectar a nossa própria lógica na linguagem e crenças alheias. Isto significa que um constrangimento quanto às interpretações possíveis de frases tomadas como verdadeiras é elas serem (dentro de limites razoáveis) logicamente consistentes entre si.
Contudo, a consistência lógica não dá origem a mais do que a interpretação das constantes lógicas (sejam quais forem os limites da lógica e a lista de constantes lógicas que tenhamos em mente). Mais interpretação exige mais formas de concordância entre o falante e o intérprete. Presumindo que se conseguiu a identificação das constantes lógicas exigida por uma estrutura quantificacional de primeira ordem, é possível identificar os termos singulares e os predicados. Isto levanta a questão de saber como os interpretar. Neste caso, o progresso depende de dar atenção não apenas à questão de saber que frases o agente toma como verdadeiras, mas também aos acontecimentos e aos objectos no mundo que são a causa da sua ideia de que as frases são verdadeiras. As circunstâncias, igualmente observáveis pelo falante e pelo intérprete, no contexto das quais um agente reage causalmente aceitando que frases como “Está a chover”, “Aquilo é um cavalo” ou “Dói-me o pé” são verdadeiras, fornecem os indícios mais óbvios para a interpretação destas frases e dos predicados que elas contêm. O intérprete, ao reparar que o agente aceita ou rejeita regularmente a frase “O café está pronto” quando o café está ou não pronto irá (por muito que dependa de outros resultados relacionados) tentar formular uma teoria da verdade que declare que uma afirmação proferida pelo agente da frase “O café está pronto” é verdadeira se, e só se, o agente pode observar que o café está pronto no momento da elocução.
A interpretação de predicados e nomes comuns depende fortemente de elementos indexicais do discurso, tais como demonstrativos e o tempo verbal, dado que são estes que mais directamente permitem que os predicados e os termos singulares estejam conectados com objectos e acontecimentos do mundo. (Para acomodar elementos indexicais, as teorias da verdade do género proposto por Tarski têm de ser ampliadas; a natureza destas modificações foi discutida noutro lado.64 ) O método que proponho para interpretar as frases e predicados mais observacionais é semelhante em alguns aspectos ao método de Word and Object (§§7–10) de Quine, mas difere noutros. A diferença mais importante diz respeito aos objectos e acontecimentos que determinam o conteúdo comunicável. Para Quine, são os padrões nervosos que dão origem ao assentimento a uma frase; uma frase de observação de um falante é “estímulo-sinónima” com uma frase de observação de um intérprete se o falante e o intérprete fossem levados a aceitar ou rejeitar as suas frases respectivas pelos mesmos padrões de simulação proximal. A ideia de Quine é captar de uma forma científica respeitável a ideia empírica de que o significado depende dos indícios directamente disponíveis a cada falante. A minha abordagem, ao invés, é externista: sugiro que a interpretação depende (nas situações mais simples e mais básicas) dos objectos e acontecimentos externos patentes tanto ao falante como ao intérprete, os mesmíssimos objectos e acontecimentos que o intérprete pensa que constitui o tema das palavras do falante. É o estímulo distal que é relevante para a interpretação.65 A importância deste aspecto será avaliada já de seguida.
A dificuldade com o que podemos chamar a teoria distal da referência é tornar difícil explicar o erro, o hiato crucial entre o que pensamos ser verdade e o que é verdade; dado que a teoria distal baseia a verdade na crença, o problema é crucial. A solução depende de dois dispositivos interpretativos intimamente relacionados entre si. Um intérprete decidido a descobrir os significados de um falante repara em mais do que o que causa assentimentos e dissentimentos; repara quão bem colocado e equipado está o falante para observar alguns aspectos do seu ambiente, dando consequentemente mais peso a algumas reacções verbais do que a outras. Isto dá-lhe os rudimentos de uma explicação de casos desviantes em que o falante chama “cabra” a um carneiro por se enganar quanto ao animal e não quanto à palavra. O dispositivo mais subtil e mais importante depende do estímulo recíproco das frases. Com isto quero dizer até que ponto um falante pensa que a verdade de uma frase sustenta a verdade de outras. Vimos um exemplo de como os indícios de tais dependências conduzem à interpretação das constantes lógicas. Mas as questões de sustentação indiciária podem igualmente ajudar na interpretação dos chamados “termos de observação”, ao ajudar a explicar o erro.
A interpretação de termos menos directamente relacionados com a observação natural tem também de depender em grande medida das probabilidades condicionais, que mostram o que o agente toma como indícios a favor da aplicação dos seus predicados mais teóricos. Se queremos identificar e portanto interpretar o papel de um conceito teórico ou a sua expressão linguística, temos de saber como se relaciona ele com outros conceitos e palavras. Estas relações são em geral holistas e probabilísticas. Só podemos portanto detectá-las se podermos detectar o grau com que um agente pensa que uma frase é verdadeira: as suas probabilidades subjectivas. O assentimento e o dissentimento simples são os casos extremos e opostos de uma escala; precisamos de ser capazes de localizar atitudes intermédias. O grau de crença, contudo, não pode ser directamente diagnosticado por um intérprete; como vimos ao discutir a teoria da decisão, o grau de crença é uma construção baseada em atitudes mais elementares.
A teoria da interpretação verbal e a teoria bayesiana da decisão foram feitas uma para a outra. A teoria da decisão tem de se libertar do pressuposto do acesso independente aos significados; a teoria do significado precisa de uma teoria do grau de crença para poder dar um uso sério às relações de sustentação indiciária. Mas não basta afirmar estas dependências mútuas, pois não se pode desenvolver primeiro qualquer das duas teorias como base para a outra. Não há maneira de acrescentar simplesmente uma à outra uma vez que, para arrancar, cada uma delas exige um elemento da outra. O que precisamos é de uma teoria unificada que nos dê graus de crença, graus de desejabilidade, numa escala, e uma interpretação do discurso, uma teoria que não pressuponha que os desejos ou as crenças foram individuados à partida, e ainda menos quantificados.
Uma tal teoria tem de se basear numa atitude simples qualquer que um intérprete possa reconhecer num agente antes de o intérprete ter um conhecimento pormenorizado de qualquer das atitudes proposicionais do agente. A seguinte atitude serve: a atitude de um agente frente a duas das suas frases quando prefere a verdade de uma à da outra. O falante tem de atribuir significado às frases, claro, mas interpretar as frases faz parte da tarefa do intérprete. O que o intérprete tem, pois, é informação sobre quais os episódios e situações no mundo que fazem causalmente o agente preferir que uma frase seja verdadeira e não outra. É claro que um intérprete pode saber isto sem saber o que as frases querem dizer, que estados de coisas o agente valoriza, ou o que ele pensa. Mas a preferência de um agente pela verdade de frases é também claramente uma função do que o agente pensa que as frases querem dizer, do valor que ele atribui a vários estados possíveis ou efectivos do mundo, e da probabilidade que ele atribui a esses estados dependendo da verdade das frases relevantes. Assim, não é absurdo pensar que podemos abstrair as três atitudes do agente a partir do padrão de preferências que ele revela relativamente a frases.
Pode objectar-se que uma preferência pela verdade de uma frase em vez de outra é em si um estado intencional, que só podemos saber que ocorre supondo que estão presentes muitos factores psicológicos. Isto é verdade (e aplica-se também ao assentimento perante uma frase ou ao tomar uma frase como verdadeira). Mas o objectivo não era evitar estados intencionais; era evitar estados intencionais individuadores, estados intensionais, estados com um objecto proposicional (como se costuma dizer). Uma preferência pela verdade de uma frase em detrimento de outra é uma relação extensional que relaciona um agente e duas frases (e um momento). Porque isto se pode detectar sem saber o que as frases querem dizer, pode-se ter a esperança de que uma teoria baseada nisto dê o passo crucial do não proposicional para o proposicional.
Eis um esboço de como eu penso que esta esperança pode ser satisfeita. Já vimos (uma vez mais em termos sinópticos) como chegar a uma teoria do significado e da crença com base no conhecimento dos graus com que as frases são tidas como verdadeiras. Logo, se pudermos derivar graus de crença em frases apelando à informação sobre preferências quanto à verdade de frases, teremos uma teoria unificada bem-sucedida.
A versão de Ramsey da teoria bayesiana da decisão depende intrinsecamente da noção de aposta, e isto cria uma dificuldade para o meu projecto. Pois como podemos saber que um agente pensa que uma frase apresenta uma aposta até estarmos bastante adiantados no processo de interpretar a sua linguagem? Afinal de contas, uma aposta especifica uma conexão, presumivelmente causal, entre a ocorrência de um dado acontecimento (uma moeda que sai caras) e um resultado específico (ganhamos um cavalo). Mesmo presumindo que poderíamos saber quando um agente aceita tal conexão, uma aplicação directa da teoria depende também de o acontecimento causal original (a moeda que sai caras) não ter qualquer valor em si, negativo ou positivo. É também necessário presumir que a probabilidade que o agente atribui à moeda que sai caras não está contaminada por pensamentos sobre a probabilidade de ganhar um cavalo. Em testes experimentais da teoria da decisão, tentamos criar ambientes nos quais estes pressupostos têm alguma hipótese de ser verdadeiros; mas a aplicação geral que temos agora em mente não pode ser tão exigente.
Devemos a Richard Jeffrey66 uma versão da teoria bayesiana da decisão que não faz qualquer uso directo das apostas, mas que trata como proposições os objectos das preferências, os objectos às quais se atribuem as probabilidades subjectivas, e os objectos aos quais se atribuem valores relativos. Jeffrey mostrou em pormenor como extrair probabilidades subjectivas e valores das preferências quanto à verdade de proposições.
Resta um problema óbvio. Jeffrey mostrou como obter resultados semelhantes aos de Ramsey substituindo preferências quanto a apostas por preferências quanto a proposições. Mas as proposições são significados, ou frases com significados, e se soubermos quais são as proposições sobre as quais se exerce a escolha de um agente, estamos a supor desde o princípio que o nosso problema original quanto à interpretação da linguagem e à individuação de atitudes proposicionais está resolvido. O que queremos é obter os resultados de Jeffrey, mas começando com preferências quanto a frases não interpretadas, e não com proposições.
Acontece que este problema se pode resolver. O método de Jeffrey para encontrar as probabilidades subjectivas e a desejabilidade relativa das proposições só depende de da estrutura verofuncional das proposições — só depende de como as proposições resultam de proposições simples pela aplicação repetida da conjunção, disjunção, negação e das outras operações definíveis em termos destas. Se partirmos de frases em vez de proposições, a dificuldade crucial estará ultrapassada, desde que possamos identificar as conectivas verofuncionais. Pois uma vez identificadas as conectivas verofuncionais, Jeffrey mostrou como podemos determinar, com o grau de precisão desejado, as desejabilidades e as probabilidades subjectivas de todas as frases; e isto, como defendi, é suficiente para gerar uma teoria para interpretar as frases. Ter conhecimento das atitudes avaliativas e cognitivas de um agente relativamente a frases interpretadas não se deve distinguir (pelo menos no contexto desta abordagem) do conhecimento das crenças e desejos do agente. Os passos essenciais deste processo, em particular o processo que extrai a interpretação das conectivas verofuncionais de factos sobre a preferência, são descritos no apêndice deste ensaio.
A abordagem aos problemas do significado, crença e desejo que esbocei não pretende, como penso que é claro, lançar qualquer luz directa sobre como nos compreendemos entre nós, na vida real, nem como dominamos os nossos primeiros conceitos e a nossa primeira linguagem.67 Ocupei-me de um exercício conceptual cujo objectivo é revelar as dependências respectivas das nossas atitudes proposicionais básicas, a um nível suficientemente fundamental para evitar o pressuposto que podemos compreendê-las — ou atribui-las de forma inteligível aos outros — uma de cada vez. A execução do exercício exigiu mostrar como é em princípio possível chegar a todas elas de uma vez só. Mostrar isto equivale a apresentar uma demonstração informal de que dotamos o pensamento, o desejo e o discurso com uma estrutura que torna a interpretação possível. Claro que sabíamos à partida que era possível. A questão filosófica era saber o que a torna possível.
O que torna a tarefa de todo em todo praticável é a estrutura que o carácter normativo do pensamento, desejo, discurso e acção impõe às atribuições correctas de atitudes a outras pessoas, e portanto às interpretações dos seus discursos e às explicações das suas acções. O que eu disse sobre as normas que regem as nossas teorias da atribuição intensional é grosseiro, vago e incompleto. A maneira de melhorar a nossa compreensão de tal compreensão é entender melhor os padrões de racionalidade implícitos em toda a interpretação do pensamento e da acção.
A ideia de que o conteúdo proposicional das frases de observação é determinado (na maior parte dos casos) pelo que é comum e evidente tanto para o falante como para o intérprete é um correlato directo da perspectiva do senso comum quanto à aprendizagem da linguagem. Tem profundas consequências para a relação entre pensamento e linguagem, e para a nossa perspectiva quanto ao papel da verdade, pois não só assegura a existência de um nível básico no qual os falantes partilham perspectivas, mas também que o que eles partilham é em grande medida uma imagem correcta de um mundo comum. A fonte última tanto da objectividade como da comunicação é o triângulo que, ao relacionar o falante, o intérprete e o mundo, determina o conteúdo do pensamento e do discurso. Dada esta fonte, não há lugar para um conceito relativizado de verdade.
Reconhecemos que a verdade tem de algum modo de se relacionar com as atitudes das criaturas racionais; esta relação surge agora como algo que resulta da natureza da compreensão interpessoal. A comunicação linguística, o instrumento indispensável da compreensão interpessoal subtil, repousa em elocuções mutuamente compreendidas, cujos conteúdos são em última instância determinados pelos padrões e causas das frases tidas como verdadeiras. A base conceptual da interpretação é uma teoria da verdade; a verdade repousa assim, em última análise, na crença e, em termos ainda mais finais, nas atitudes afectivas.
O método de Jeffrey para determinar as probabilidades subjectivas e as desejabilidades relativas das proposições depende apenas da estrutura verofuncional das proposições — do modo como as proposições são formadas a partir de proposições simples pela aplicação repetida da conjunção, disjunção, negação e outras operações definíveis em termos destas. Se partirmos de frases em vez de proposições, o nosso problema ficará resolvido desde que possamos identificar as conectivas verofuncionais. Pois se as conectivas verofuncionais estiverem identificadas, Jeffrey mostrou-nos como determinar, com o grau de precisão pretendido, a desejabilidade e as probabilidades subjectivas de todas as frases; e isto, defendi, é suficiente para dar origem a uma teoria para interpretar as frases.
O primitivo empírico básico no método a descrever é a preferência (fraca) do agente de que uma dada frase, em detrimento de outra, é verdadeira; podemos portanto pensar que os dados são do mesmo género do que os dados habitualmente recolhidos num teste experimental de qualquer teoria bayesiana da decisão, com a condição de que não se presume que o intérprete saiba à partida qual é a interpretação das frases abertas à escolha do agente.
A uniformidade e simplicidade da ontologia empírica do sistema, que compreende apenas elocuções e frases, são essenciais para alcançar o objectivo de combinar a teoria da decisão com a interpretação. Irei seguir, tão de perto quanto possível, a teoria de Jeffrey, que lida apenas com proposições, inserindo frases não interpretadas onde ele adopta proposições. Eis, pois, o análogo do axioma da desejabilidade (D), aplicado a frases e não a proposições:
(D) Se prob(s e t) = 0 e prob(s ou t) ≠ 0 então
`des(s ou t)=(prob(s)des(s)+prob(t)des(t))/(prob(s)+prob(t)`
(Escrevo “prob(s)” para a probabilidade subjectiva de s e “des(s)” para a desejabilidade de s.) Ao relacionar preferência e crença, este axioma faz o género de trabalho habitualmente desempenhado pelas apostas; a relação, contudo, é diferente. Os acontecimentos correlacionam-se com frases que sob interpretação afirmam afinal que o acontecimento ocorre (“A próxima carta será paus”). As acções e os resultados são também representados por frases (“O agente aposta um dólar”, “O agente ganha cinco dólares”). As apostas não têm cabimento directamente, mas o elemento de risco está presente, uma vez que para escolher uma frase como verdadeira é habitualmente necessário assumir um risco quanto ao que será concomitantemente verdadeiro. (Presume-se que não se pode escolher uma frase logicamente falsa.) Por isso podemos ver que, se o agente escolher tomar como verdadeira e não como falsa a frase “O agente aposta um dólar”, está a apostar no resultado que podemos, por exemplo, pensar que depende do facto de a próxima carta ser ou não paus. Então a desejabilidade da (verdade da) frase “O agente aposta um dólar” será a desejabilidade das várias circunstâncias nas quais esta frase é verdadeira, ponderadas da maneira habitual pelas probabilidades dessas circunstâncias. Suponha-se que o agente pensa que vai ganhar cinco dólares se a próxima carta for paus e que nada ganhará se não for paus; o agente terá então um interesse especial na questão de saber se a verdade de “O agente aposta um dólar” estará a par com a verdade ou falsidade de “A próxima carta será paus”. Abreviemos estas duas frases com “s” e “t”. Então
`des(s)=(prob(s e t)des(s e t)+prob(s e ~t)des(s e ~t))/(prob(s))`
É claro que isto é algo semelhante às apostas de Ramsey. Difere, contudo, por não se pressupor que os “estados da natureza”, que se podem conceber como aquilo que determina os resultados, são, para usar o termo de Ramsey, “Moralmente neutros”, isto é, que não têm qualquer efeito na desejabilidade dos resultados. Nem se pressupõe que as probabilidades dos resultados de nada dependem à excepção das probabilidades dos “estados da natureza” (o agente pode pensar que tem hipótese de ganhar cinco dólares mesmo que a próxima carta não seja paus, e que tem hipótese de não ganhar cinco dólares mesmo que a próxima carta seja paus).
O axioma da desejabilidade pode ser usado para mostrar como as probabilidades dependem das desejabilidades no sistema de Jeffrey. Tome-se o caso especial em que t = ~s. Então temos
(1) des(s ou ~s) = des(s)prob(s) + des(~s)prob(~s)
Visto que prob(s) + prob(~s) = 1 podemos resolver a prob(s):
(2) `prob(s)=(des(s ou ~s)-des(~s))/(des(s)-des(~s))`
Assim, a probabilidade de uma proposição depende da desejabilidade dessa proposição e da sua negação. Além disso, é fácil ver que, se uma frase s for mais desejável do que uma verdade lógica arbitrária (como “t ou ~t”), então a sua negação (“~s”) não pode ser também mais desejável do que uma verdade lógica. Suponha-se que atribuímos o número 0 a qualquer verdade lógica. (Isto é intuitivamente razoável porque um agente é indiferente à verdade de uma tautologia.) Então podemos reescrever 2:
(3) `prob(s)=(1)/(1-(des(s))/(des(~s))`
É imediatamente óbvio que des(s) e des(~s) não podem ser ambas mais, nem ambas menos, do que 0, a desejabilidade de qualquer verdade lógica, para que prob(s) se situe no intervalo entre 0 e 1. Se (seguindo Jeffrey) chamarmos “boa” a uma opção se for preferida a uma verdade lógica e “má” se uma verdade lógica for preferida em seu desfavor, então 3 mostra que é impossível que uma opção (uma frase) e a sua negação sejam ambas boas ou ambas más.
Tomando “~(s e ~s)” como o nosso exemplo de uma verdade lógica, podemos formular este princípio puramente em termos de preferências:
(4) Se des(s) > des(~(s e ~s)), então
des(~(s e ~s)) ≥ des(~s), e
se des(~(s e ~s)) > des(s), então
des(~s) ≥ des(~(s e ~s)).
Visto que tanto a negação como a conjunção pode ser definidas em termos do traço de Sheffer, “|” (“não ambos”), 4 pode ser reescrita:
(5) Se des(s) > des((t | u) | ((t | u) | (t | u))), então
des(((t | u) | ((t | u) | (t | u))) ≥ des(s | s), e
se des((t | u) | ((t | u) | (t | u))) > des(s), então
des(s | s) ≥ ((des((t | u) | ((t |u) | (t | u))).
O interesse de 5 para os propósitos em mãos é o seguinte: se presumirmos que “·” é um operador verofuncional arbitrário que forma frases a partir de pares de frases, então segue-se o seguinte; se 5 for verdadeira relativamente a todas as frases s, t e u, e para algumas s e t, des(s s) des(t t), então “·” tem de ser o traço de Sheffer (tem de ter as propriedades lógicas de “não ambos”); nenhuma outra interpretação é possível.68
Assim, dados que envolvem apenas preferências entre frases, cujos significados são desconhecidos do intérprete, conduziram (dados os constrangimentos da teoria) à identificação de uma conectiva de frases. Dado que todas as frases logicamente equivalentes têm a mesma desejabilidade, é agora possível interpretar todas as outras conectivas verofuncionais de frases, dado que são definíveis em termos do traço de Sheffer. Por exemplo, se descobrirmos que, para todas as frases s,
des(s s) = des(~s),
então podemos concluir que o til é o símbolo da negação.
É agora possível quantificar a desejabilidade e a probabilidade subjectiva de todas as frases, pois a aplicação de fórmulas como 2 e 3 exigem a identificação das conectivas verofuncionais de frases, e só delas. Assim, é claro a partir de 3 que, se duas frases forem iguais em termos de desejabilidade (e se forem preferidas em detrimento de uma verdade lógica) e se as suas negações forem também iguais em termos de desejabilidade, então as frases têm de ter a mesma probabilidade. Analogamente, se duas frases forem iguais em termos de desejabilidade (e se forem preferidas em detrimento de uma verdade lógica), mas a negação de uma for preferida à negação de outra, então a probabilidade da primeira é menor do que a da segunda. Isto, em conjunto com axiomas da existência apropriados, é suficiente para estabelecer uma escala de probabilidades. Então é fácil determinar as desejabilidades relativas de todas as frases.69
Neste ponto, as probabilidades e as desejabilidades de todas as frases foram, teoricamente, determinadas. Mas ainda não interpretámos qualquer frase completa, apesar de as conectivas verofuncionais de frases terem sido identificadas, o que significa que podemos reconhecer as frases logicamente verdadeiras ou falsas em virtude da lógica de frases.
Contudo, mostrámos como interpretar as frases mais simples com base na crença (ou em graus de crença) quanto à sua verdade. Dados graus de crença e a força relativa de desejo pela verdade de frases interpretadas, podemos dar um conteúdo proposicional às crenças e desejos de um agente.
Este ensaio foi apresentado sob a forma de três conferências sobre “O Conceito de Verdade” proferidas na Universidade de Colúmbia em Novembro de 1989; a primeira, “A Estrutura da Verdade”, em 9 de Novembro; a segunda, “Verdade e Conhecimento”, em 16 de Novembro; e a terceira, “Os Conteúdos da Verdade”, em 20 de Novembro. Estas conferências, que a Fundação John Dewey torna possíveis, constituem a sexta série das Conferências John Dewey, que foi professor de filosofia em Colúmbia de 1905 a 1930. Agradeço a Akeel Bilgrami, Ernest LePore, Isaac Levi e W. V. Quine as úteis sugestões e o estímulo amigo.
Neologismo português: lapso linguístico baseado na semelhança dos sons (por exemplo, confundir “influência” com “afluência”). A palavra deriva da personagem Mrs. Malaprop da peça The Rivals (1775) do dramaturgo, político e orador irlandês Richard Brinsley Sheridan (1751–1816). (N. do T.)
Experience and Nature (Nova Iorque: Dover, 1958).
Essays in Experimental Logic (Nova Iorque: Dover, 1953).
Pragmatism (Nova Iorque: Longmans & Green, 1907). Noutra passagem [Logic: The theory of Enquiry (Nova Iorque: Holt, 1908)] Dewey diz o seguinte:
A melhor definição de verdade do ponto de vista lógico que conheço é a de Peirce: “A opinião fadada em última análise a ser objecto de concordância por todos os que investigam é o que podemos querer dizer com a verdade” (p. 58).
Mas habitualmente Dewey estava mais próximo de James: as ideias, as teorias, são verdadeiras se são “instrumentais para uma reorganização activa do ambiente dado, para remover um problema ou perplexidade específicos. […] A hipótese que funciona é a verdadeira” — Reconstruction in Philosophy (Nova Iorque: Holt, 1920), p. 156.
Minneapolis: Minnesota UP, 1982.
“Pragmatism, Davidson and Truth”, in LePore, org., Truth and Interpretation (Nova Iorque: Blackwell, 1986), pp. 333-355. Veja-se também o seu ensaio “Representation, Social Practise, and Truth”, Philosophical Studies, XXX (1988): 215-228.
“Facts and Propositions” (1927), reimpresso em The Foundations of Mathematics (Nova Iorque: Humanities, 1931), pp. 138–155.
P. F. Strawson afirma o mesmo no seu famoso debate com J. L. Austin, em “Truth”, Proceedings of the Aristotelian Society, Supp. Vol. XXIV (1950): 129–156.
Word and Object (Cambridge: MIMT, 1960).
“A Comparison of Something with Something Else”, New Literary History, XVII (1985): 61–79.
“Theories of Reference and Truth”, Erkenntnis, XIII (1978): 111–130.
“Three Forms of Realism”, Synthese, LI (1982): 181–201.
“What is a Theory of Truth?”, Journal of Philosophy, LXXXI, 8 (Agosto 1984): 411–429.
“The Deflationary Conception of Truth” in C. Wright e G. McDonald, orgs., Facts, Science and Morality (Nova Iorque: Blackwell, 1987), pp. 55–117.
“Epistemological Realism and the Basis of Skepticism”, Mind, XCVII (1988): 415-439.
Veja-se “Do We (Epistemologists) Need a Theory of Truth?”, Philosophical Topics, XIV (1986): 223-242.
Este aspecto, muitas vezes atribuído a Leeds, foi apresentado por Tarski em “The Semantic Conception of Truth”, Philosophy and Phenomenological Research, IV (1944), p. 359. Tarski observa também que a mera descitação não pode eliminar a palavra “verdade” de frases como “A primeira frase escrita por Platão é verdadeira”. (Mas Tarski também não mostrou como se elimina este uso do predicado de verdade a menos que ele tenha uma definição de verdade para a linguagem que Platão falava.)
Language and Philosophy (Ítaca: Cornell, 1949), p. 104.
“Truth”, in Proceedings of the Aristotelian Society, LIX (1958-59): 141–162.
Londres: Duckworth, 1978.
A minha confusão a este respeito é mais evidente em “Truth and Meaning” in Inquiries into Truth and Interpretation (Nova Iorque: Oxford, 1984). O meu erro foi achar que podíamos simultaneamente pensar que uma definição de verdade de Tarski nos diz tudo o que precisamos de saber sobre a verdade e usar a definição para descrever uma linguagem efectiva. Mas mesmo nesse ensaio discuti como saber se tal definição se aplica a uma linguagem (o que é inconsistente com a perspectiva anterior). Em breve reconheci o erro. (Veja-se a “Introdução”, pp. XIV-XV, e outros ensaios em Inquiries into Truth and Interpretation.)
“Tarski's Theory of Truth”, Journal of Philosophy, LXIX, 13 (13 de Julho de 1972): 347-375.
As perspectivas das pessoas da lista anterior diferem entre si, o que não é surpreendente, quanto ao sentido em que Tarski é um deflacionista. Horwich, por exemplo, introduziu o termo “deflacionista” ao falar de Tarski, mas defende que o “esquema” de Tarski fornece as condições de verdade, e portanto os significados, das expressões de uma linguagem; a sua perspectiva é essencialmente igual à que defendi no ensaio “Truth and Meaning”. A maior parte dos outros filósofos pensa que a abordagem deflacionista de Tarski mostra que a verdade tal como ele a define nada tem a ver com o significado.
A primeira atitude está patente na observação de Putnam de que a propriedade que Tarski definiu não está “nem mesmo duvidosa ou dubiamente “próxima” da propriedade da verdade. Não é, pura e simplesmente, a verdade, de todo em todo” — op. cit., p. 64. Soames representa a segunda perspectiva: “O que parece correcto na abordagem de Tarski é o seu carácter deflacionista”. Mas “a noção de verdade de Tarski nada tem a ver com a interpretação ou a compreensão semânticas” — “What is a Theory of Truth?” pp. 429, 424.
Vejam-se versões deste argumento em Putnam, op. cit., e “On Truth”, in Leigh Cauman et alia, orgs., How Many Questions? (Indianapolis: Hackett, 1983), pp. 35-56.
Veja-se o desenvolvimento deste tema nas obras de Putnam referidas na última nota; veja-se também Soames, op. cit.; e John Etchemendy, “Tarski on Truth and Logical Consequence”, The Journal of Symbolic Logic, LIII (1988): 51–79.
“A Comparison of Something with Something Else”, p. 64.
Philosophy and Phenomenological Research, IV (1944): 341–375.
“The Establishment of Scientific Semantics”, in Logic, Semantics, Metamathematics (Nova Iorque: Oxford, 1956), p. 401.
“The Semantic Conception of Truth”, p. 341.
“The Establishment of Scientific Semantics”, pp. 403-404.
In Logic, Semantics, Metamathematics.
Etchemendy sugere que o “se, e só se” de uma definição não tem o mesmo significado que o “se, e só se” de uma afirmação substancial, mas não penso que esta observação possa ser tomada a sério, uma vez que a diferença não faz diferença alguma no sistema e, mesmo que distinguíssemos a hipotética diferença introduzindo símbolos diferentes, teríamos de alterar as regras de inferência do sistema. Etchemendy afirma que não pretendia que a sua sugestão fosse encarada com seriedade (conversa privada).
Michael Williams, afirma que um deflacionista pensa que “o que é transferido de linguagem para linguagem […] é a vantagem de cada linguagem ter o seu próprio dispositivo de descitação” — “Scepticism and Charity”, Ratio (New Series), I (1988), p. 180. Mas, à parte a dificuldade de atribuir um significado claro à “vantagem” de um dispositivo, há o facto de que numa linguagem podemos falar da verdade de outra linguagem; e neste caso a generalização que Williams sugere não é melhor do que a convenção V, que depende essencialmente da tradução.
Tarski reconhecia a possibilidade de apresentar teorias axiomáticas da verdade, e observou que “nada há de essencialmente errado num tal processo axiomático, e pode revelar-se útil para vários fins” — “The Semantic Conception of Truth”, p. 352. Tarski tinha várias razões para preferir uma definição explícita a um tratamento axiomático do conceito de verdade. Em primeiro lugar, observa que a escolha de axiomas “é bastante acidental, dependendo de factores não essenciais (como, por exemplo, o estado actual do nosso conhecimento)”. Em segundo lugar, só uma definição explícita pode garantir a consistência do sistema daí resultante (dada a consistência do sistema antes de se ter introduzido os novos conceitos primitivos); e, em terceiro lugar, só uma definição explícita pode ultrapassar dúvidas quanto à questão de saber se o conceito se “harmoniza com os postulados da unidade da ciência e do fisicismo” — “The Establishment of Scientific Semantics”, pp. 405-406. O primeiro perigo é evitado se restringirmos os axiomas às cláusulas recursivas de que precisamos para caracterizar a satisfação; fugimos ao segundo (menos conclusivamente) desde que as formas conhecidas de produzir paradoxos não sejam introduzidas; e a ameaça de que a verdade possa acabar por não ser susceptível de ser reduzida a conceitos físicos é algo do qual, em minha opinião, nem podemos nem devemos querer escapar.
“The Semantic Conception of Truth”, pp. 342–343. Tarski fala também de frases que “descrevem” “estados de coisas”, ibid., p. 345. Cf. “The Concept of Truth in Formalized Languages”, p. 153, e “The Establishment of Scientific Semantics”, p. 403.
Em “True to Facts”, in Inquiries into Truth and Interpretation. O argumento é o seguinte: a verdade define-se com base na satisfação: uma frase da linguagem-objecto é verdadeira se, e só se, for satisfeita por todas as sequências de objectos que estão no âmbito das variáveis da quantificação da linguagem-objecto. Tome-se “corresponde a” como “satisfaz” e obtemos uma definição da verdade como correspondência. A estranheza da ideia é evidente dada a natureza contra-intuitiva e forjada das entidades às quais as frases “correspondem” e dado o facto de que todas as frases verdadeiras corresponderiam às mesmas entidades.
“Protokollsätze”, Erkenntnis, III (1932/33): 204-214.
“On the Logical Positivist's Theory of Truth”, Analysis, II (1935): 49-59.
Consequences of Pragmatism, “Introduction”; e também “Pragmatism, Davidson and Truth”, in Ernest LePore, org., Truth and Interpretation: Perspectives on the Philosophy of Donald Davidson (Nova Iorque: Blackwell, 1986).
A posição que adopto neste ensaio sofreu a influência de uma troca de ideias entre Rorty e eu no encontro de 1982 da Divisão do Pacífico da Associação Filosófica Americana. Rorty persuadiu-me a não chamar à minha posição “teoria da correspondência” nem “teoria da coerência”; pelo meu lado, penso tê-lo persuadido a abandonar a teoria pragmatista da verdade. “Pragmatism, Davidson and Truth” é uma versão revista da conferência de Rorty de 1982 no encontro da Divisão do Pacífico.
Veja-se no meu “A Coherence Theory of Truth and Knowledge”, in Truth and Interpretation: Perspectives on the Philosophy of Donald Davidson, um exemplo do uso de “correspondência” que agora deploro.
An Analysis of Knowledge and Valuation (La Salle, IL: Open Court, 1946), pp. 50–55.
O argumento, atribuído a Frege por Church, pode encontrar-se na obra deste último Introduction to Mathematical Logic, Vol. 1 (Princeton: University Press, 1956), pp. 24-25. O argumento de Frege é ensaiado no meu artigo “True to the Facts”.
“Truth”, in Logico-Linguistic Papers (Londres: Methuen, 1971).
“A Coherence Theory of Truth and Knowledge”, p. 307.
Arthur Fine desiste do realismo por algumas das razões pelas quais também eu desisti, acrescentando uma esplêndida refutação da tese de que uma perspectiva realista da verdade explica a prática e o desenvolvimento da ciência — “The Natural Ontological Attitude” in The Shaky Game: Einstein, Realism and the Quantum Theory (Chicago: University Press, 1986).
“Über das Fundament der Erkenntnis”, Erkenntnis, IV (1934): 79-99.
Nem todas as teorias que relacionam a verdade com conjuntos coerentes de crenças estão erradas. O que tem de se acrescentar às teorias da coerência habituais é um reconhecimento não apenas do modo como as crenças se relacionam causal e logicamente entre si, mas de como os conteúdos de uma crença dependem das suas conexões causais com o mundo. Discuto estas questões na próxima secção. Vejam-se também os meus artigos “A Coherence Theory of Truth and Knowledge” e “Empirical Content”, in Truth and Interpretation: Perspectives on the Philosophy of Donald Davidson. Parece-me agora mais um erro terminológico ter chamado “teoria da coerência” à tese de “A Coherence Theory”. Explico mais detidamente por que razão penso isto em “Afterthoughts, 1987”, que foi acrescentado a uma reimpressão de “A Coherence Theory of Truth” in A. Malichowski, org., Reading Rorty (Nova Iorque: Blackwell, 1990), pp. 136–138.
Veja-se Ontological Relativity and Other Essays (Nova Iorque: Columbia, 1969). Relativamente ao problema de Quine quanto às teorias empiricamente equivalentes mas mutuamente irredutíveis, veja-se o seguinte: “On Empirically Equivalent Systems of the World”, Erkenntnis, IX (1975): 313-328; Theories and Things (Cambridge: Harvard, 1981), pp. 29-30; L. E. Hahn e P. A. Schilpp, orgs., The Philosophy of W. V. Quine (La Salle, IL: Open Court, 1986), pp. 156–157.
Realism and Reason: Philosophical Papers, Volume 3 (Nova Iorque: Cambridge, 1983), p. XVIII.
Putnam, “Reference and Understanding” e “Reply to Dummett's Comment”, in A. Margalit, org., Meaning and Use (Dordrecht: Reidel, 1979), pp. 226-228. * Neologismo português: lapso linguístico baseado na semelhança dos sons (por exemplo, confundir “influência” com “afluência”). A palavra deriva da personagem Mrs. Malaprop da peça The Rivals (1775) do dramaturgo, político e orador irlandês Richard Brinsley Sheridan (1751–1816). (N. do T.)
Saul Kripke atribui esta perspectiva a Wittgenstein em Wittgenstein on Rules and Private Language (Nova Iorque: Blackwell, 1982), e sanciona-a provisoriamente. Com respeito a uma versão diferente, vejam-se as inúmeras obras de Tyler Burge sobre o anti-individualismo; por exemplo: “Individualism and the Mental” in P. French, T. Uehling, H. Wettstein, orgs., Midwest Studies in Philosophy, Volume 4 (Minneapolis: Minnesota UP, 1979), pp. 73–121; “Individualism and Psychology”, Philosophical Review, XCV (1986): 3-46; “Wherein is Language Social?” in A. George, org., Reflections on Chomsky (Nova Iorque: Blackwell, 1989), pp. 176–191.
Veja-se o meu artigo “Knowing One's Own Mind”, Proceedings and Addresses of the American Philosophical Association, LX (1987): 441–458.
A influência do artigo “Meaning”, The Philosophical Review, LXVI (1957): 377-388, de H. P. Grice, é aqui evidente.
A minha caracterização da comunicação bem-sucedida deixa em aberto várias possibilidades com respeito à questão de saber o que um falante quer dizer com as suas palavras numa dada ocasião. Dado que o falante tem de ter a intenção de ser interpretado de uma certa maneira, tem de pensar que a sua audiência tem o equipamento necessário para o interpretar desse modo. Mas quão bem justificada tem de ser a sua convicção, e até que ponto tem de ser correcta? Não penso que os nossos padrões para decidir o que significam as palavras de alguém, faladas numa dada ocasião, sejam tão firmes que nos permitam traçar uma linha nítida entre uma intenção malsucedida de que as nossas palavras tenham um dado significado e uma situação na qual somos bem-sucedidos no que respeita ao significado das nossas palavras mas malsucedidos na nossa intenção de sermos interpretados como queremos.
Veja-se o meu artigo “Communication and Convention”, in Inquiries into Truth and Interpretation.
É claro que isto é mais do que é fornecido por qualquer teoria que alguém tenha sido capaz de fornecer para qualquer linguagem natural. Não sabemos, pois, se esta condição pode ser satisfeita. Por outro lado, sabemos como produzir uma teoria desse género para um fragmento poderoso e talvez auto-suficiente da língua inglesa e de outras linguagens naturais, e isto é suficiente para dar substância à ideia de que incorporar o conceito de verdade numa teoria nos dá uma ideia da natureza do conceito. Podemos acabar por ter de nos contentarmos com um sentido muito mais vago de “teoria” do que Tarski tinha em mente.
Estou a saltar uma quantidade de problemas muito trabalhados, tais como os problemas de fornecer condições de verdade para condicionais subjuntivas, imperativas, interrogativas, afirmações éticas, etc. Discuti (mas sem dúvida que não resolvi) a maior parte destes problemas alhures.
Há uma intenção em que uma teoria da verdade não toca e que um falante tem de querer que um intérprete entenda: a força da elocução. Para compreender um falante, um intérprete tem de ser capaz de dizer se uma elocução é uma piada, uma asserção, uma ordem, uma pergunta, e assim por diante. Não penso que haja regras ou convenções que rejam este aspecto essencial da linguagem. É algo que as pessoas que usam uma linguagem podem transmitir aos ouvintes e que os ouvintes podem, quase sempre, detectar; mas isto não mostra que estas capacidades possam ser regimentadas. Acho que há razões sólidas para pensar que a respeito desta dimensão da linguagem uma teoria séria é coisa que não é possível. E é ainda mais remota a hipótese de haver convenções ou regras para criar ou compreender metáforas, ironia, humor, etc. Vejam-se os meus artigos “What Metaphors Mean” e “Convention and Communication” in Inquiries into Truth and Interpretation.
Isto responde em parte a uma crítica frequente às teorias da verdade entendidas como teorias do significado. Por exemplo, dado o caso (raro) de dois predicados não estruturados com a mesma extensão, uma teoria da verdade pode fazer uma distinção se houver circunstâncias que nunca ocorrem mas sob as quais as condições de verdade seriam diferentes.
Expliquei na secção anterior a razão pela qual penso que não precisamos preocupar-nos separadamente quanto à referência ou à satisfação. Numa palavra, a razão é que as frases V não contêm um conceito referencial. Dado que as implicações testáveis da teoria são as frases V aplicadas a casos, qualquer forma de caracterizar a satisfação que dê origem a frases V confirmáveis é tão boa como outra qualquer.
Com respeito a considerações em apoio destas afirmações, veja-se o meu artigo “Belief and the Basis of Meaning”, Synthese, XXVII (1974): 309-323; “Radical Interpretation”, Dialectica, XXVII (1973): 313-328; e “Thought and Talk”, Samuel Guttenplan, org., Mind and Language (Nova Iorque: Oxford, 1975), pp. 7-23.
“Truth and Probability”, in The Foundations of Mathematics (Nova Iorque: Humanities, 1950), pp. 156–198.
O passo dos assentimentos observados para a atitude inferida de tomar uma frase como verdadeira não está, penso, explícito em Quine.
“Substances Without Substrata”, Review of Metaphysics, XII (1959): 521–539.
O processo pode não ser assim tão claro; é fácil imaginar uma linguagem que não contenha qualquer tradução da palavra portuguesa “agora” mas que consiga dar as condições de verdade de frases portuguesas que contenham a palavra “agora”.
O género de modificação exigido é discutido em Inquiries into Truth and Interpretation.
Discuti este aspecto da teoria do significado de Quine em “Meaning, Truth and Evidence”, in R. Gibson, org., Perspectives on Quine (Nova Iorque: Blackwell, 1989). Neste artigo faço notar que Quine parece também por vezes subscrever a teoria “distal”, especialmente em The Roots of Reference (La Salle, IL: Open Court, 1973).
The Logic of Decision (Chicago: University Press, 2.a ed., 1983). A teoria de Jeffrey não determina probabilidades e utilidades até aos mesmos conjuntos de transformações das teorias habituais. Em vez de uma função de utilidade determinada até uma transformação linear, na teoria de Jeffrey a função de utilidade só é única até uma transformação fraccionada linear; e as atribuições de probabilidade, em vez de serem únicas dada a escolha de um número para medir a certeza (sempre Um), só são únicas até uma certa quantização. Estas diminuições na determinação são apropriadas conceptualmente e em termos práticos: significam, entre outras coisas, que permitem mais ou menos o mesmo tipo de indeterminação na teoria da decisão que é de esperar numa teoria da interpretação linguística. Tal como na teoria da decisão podemos dar conta dos mesmos dados usando várias funções de utilidade, fazendo as mudanças necessárias na função de probabilidade, também podemos mudar os significados que atribuímos às palavras de uma pessoa (dentro de certos limites) desde que façamos as mudanças necessárias nas crenças que lhe atribuímos.
Dado o carácter intrincado de qualquer sistema interpretável de pensamento e linguagem, presumo que devem haver muitas abordagens alternativas à interpretação. Esbocei uma; outras poderão muito bem ser menos artificiais ou estar mais próximas das nossas intuições quanto à prática interpretativa. Mas não devemos dar como garantido que o processo que delineei está totalmente afastado do que é praticável. Para começar, observe-se que podemos tomar toda a elocução que possa ser tratada como um pedido sincero ou uma exigência sincera como algo que exprime a preferência do locutor quanto à verdade de uma certa frase em detrimento da sua negação. A maior parte do trabalho experimental na teoria da decisão toma como dados as escolhas que os sujeitos fazem entre alternativas descritas por escrito ou verbalmente. Presume-se normalmente que os sujeitos compreendem estas descrições do mesmo modo que os experimentadores. Abandonar este pressuposto gera dados exactamente do género exigido pela abordagem aqui apresentada.
Estou em dívida para com Stig Kanger por me ter mostrado por que razão uma tentativa anterior para solucionar este problema não funcionava. Kanger acrescentou igualmente algumas subtilezas necessárias à presente proposta.
Quanto a pormenores, veja-se Jeffrey, The Logic of Decision.