Num livro que as salas de aula contribuíram para tornar famoso, podemos encontrar a seguinte passagem:
“Vou contar-te um caso dramático. Já ouviste falar das térmitas, essas formigas brancas que, em África, constroem formigueiros impressionantes, com vários metros de altura e duros como pedras? Uma vez que o corpo das térmitas é mole, por não ter a couraça de quitina que protege outros insectos, o formigueiro serve-lhes de carapaça colectiva contra certas formigas inimigas, mais bem armadas do que elas. Mas por vezes um dos formigueiros é derrubado, por causa de uma cheia ou de um elefante (os elefantes, que havemos nós de fazer, gostam de coçar os flancos nas termiteiras). A seguir, as térmitas-operário começam a trabalhar para reconstruir a fortaleza afectada, e fazem-no com toda a pressa. Entretanto, já as grandes formigas inimigas se lançam ao assalto. As térmitas-soldado saem em defesa da sua tribo e tentam deter as inimigas. Como nem no tamanho nem no armamento podem competir com elas, penduram-se nas assaltantes tentando travar o mais possível o seu avanço, enquanto as ferozes mandíbulas invasoras as vão despedaçando. As operárias trabalham com toda a velocidade e esforçam-se por fechar de novo a termiteira derrubada… mas fecham-na deixando de fora as pobres e heróicas térmitas-soldado, que sacrificam as suas vidas pela segurança das restantes formigas. Não merecerão estas formigas-soldado pelo menos uma medalha? Não será justo dizer que são valentes? Mudo agora de cenário, mas não de assunto. Na Ilíada, Homero conta a história de Heitor, o melhor guerreiro de Tróia, que espera a pé firme fora das muralhas da sua cidade Aquiles, o enfurecido campeão dos Aqueus, embora sabendo que Aquiles é mais forte do que ele e que vai provavelmente matá-lo. Fá-lo para cumprir o seu dever, que consiste em defender a família e os concidadãos do terrível assaltante. Ninguém dúvidas: Heitor é um herói, um homem valente como deve ser. Mas será Heitor heróico e valente da mesma maneira que as térmitas-soldado, cuja gesta milhões de vezes repetida nenhum Homero se deu ao trabalho de contar? Não faz Heitor, afinal de contas, a mesma coisa que qualquer uma das térmitas anónimas? Por que nos parece o seu valor mais autêntico e mais difícil do que o dos insectos? Qual a diferença entre um e outro caso? Muito simplesmente, a diferença assenta no facto de as térmitas-soldado lutarem e morrerem porque têm de o fazer, sem que possam evitá-lo (como a aranha come a mosca). Heitor, pelo seu lado, sai para enfrentar Aquiles porque quer. As térmitas-soldado não podem desertar, nem revoltar-se, nem fazer cera para que outras vão em seu lugar: estão programadas necessariamente pela natureza para cumprir a sua heróica missão. O caso de Heitor é distinto. Poderia dizer que está doente ou que não tem vontade de se bater com alguém mais forte do que ele. Talvez os seus concidadãos lhe chamassem cobarde e o considerassem insensível ou talvez lhe perguntassem que outro plano via ele para deter Aquiles, mas é indubitável que Heitor tem a possibilidade de se recusar a ser herói. Por muita pressão que os restantes exercessem sobre ele, ele teria sempre maneira de escapar daquilo que se supõe que deve fazer: não está programado para ser herói, nem o está seja que homem for. Daí que o seu gesto tenha mérito e que Homero nos conte a sua história com uma emoção épica. Ao contrário das térmitas, dizemos que Heitor é livre, e por isso admiramos a sua coragem”.
Fernando Savater, Ética para um Jovem (Lisboa: Dom Quixote, 2005)
O louvor de Heitor é justificado porque:
Entende-se por curso alternativo de acção qualquer opção que esteja disponível ao agente e que este possa pôr em prática.
As térmitas não merecem louvor porque:
Entende-se por programa genético aquilo para o qual os genes predispõem o organismo. Trata-se do conjunto de instruções bioquímicas que fazem com que um organismo desenvolva características de determinado tipo, como a cor dos olhos, asas em vez de mãos, etc. Estas instruções estão no núcleo das células; os genes são o alfabeto em que estão escritas, são as unidades básicas que as compõem.
As diferenças detectadas entre o comportamento de Heitor e o das térmitas-soldado permitem-nos identificar em que condições uma acção deve ser considerada livre e em que condições o não é.
Isto dá-nos a seguinte definição: um agente pratica livremente uma acção X se e somente se:
Entendida deste modo, a liberdade é sinónimo de autodeterminação. Um agente possui autodeterminação quando é ele próprio (auto) que faz acontecer (determina) a acção. É isto que significa dizer que temos nas mãos o nosso destino ou que somos os autores do que virão a ser as nossas vidas. Supomos ser os autores da pessoa em que nos tornámos porque podíamos ter escolhido outro rumo para a nossa vida (condição 1) e ainda porque nos coube realmente a última palavra na escolha do caminho que seguimos, e a ninguém mais (condição 2).
Exemplos de comportamentos não livres: a cleptomania ou alguém que não consegue sair de uma sala porque está fechado à chave. Em qualquer dos casos o agente não tem o controlo da situação (mesmo que faça o que deseja fazer).
Os cleptomaníacos são pessoas que sofrem de uma tendência doentia e incontrolável para roubar, não conseguindo deixar de o fazer mesmo que isso implique grandes problemas para si próprias: com a justiça, etc. O cleptomaníaco deseja fazer o que faz (roubar), embora muitas vezes preferisse não ter esse desejo.
Heitor enfrentou Aquiles voluntariamente; o seu comportamento foi intencional. Heitor enfrenta Aquiles voluntariamente porque deseja salvar Tróia dos invasores e acredita que, nas circunstâncias em que se encontra, enfrentar Aquiles em combate é uma maneira de evitar que os invasores consigam o que querem e um dever para com os seus concidadãos (a que não deseja fugir).
Este desejo e esta crença, em conjunto, causaram o comportamento de Heitor.
Mas podemos agora perguntar: o que terá dado origem a este desejo e esta crença? Qual a sua causa? Se Heitor não tivesse a personalidade que tinha (honesto, corajoso, com um forte sentido de responsabilidade para com os seus concidadãos, etc.) talvez optasse por fingir-se doente para não enfrentar Aquiles. A coragem e a honestidade são características que reflectem a personalidade das pessoas. Este desejo e crença de Heitor têm origem na sua personalidade.
Mas qual é a causa da personalidade de Heitor? Talvez algumas das características da sua personalidade já estivessem previstas nos seus genes e nascido com ele; outras, terá sido ao longo do seu desenvolvimento, através do contacto com o seu meio ambiente, que as adquiriu. Foram, portanto, os genes e a influência do meio ambiente que deram origem à sua personalidade (que a causaram).
Mas em que consiste um acontecimento ser a causa de outro, ou um acontecimento ser o efeito de outro?
Vejamos alguns exemplos. A queda do pedaço de giz que seguro na mão, ao abri-la, é uma consequência (um efeito) da lei da gravidade (causa). O acender de um fósforo é uma consequência de: 1) haver oxigénio no ar; 2) a lixa estar seca; 3) a pressão do fósforo na lixa ser adequada; 4) o fósforo estar em condições. A ocorrência simultânea dos factores 1–4 é a causa que torna fisicamente impossível o fósforo não acender (efeito). Uma barra de metal aquecida até à temperatura apropriada aumenta — é uma lei da natureza — de volume (dilatação).
Estas considerações sugerem a possibilidade de os genes de Heitor em conjunção com as condições físicas e sociais em que cresceu fazerem com que viesse a ter a personalidade que tinha.
Esta hipótese obriga-nos a colocar as seguintes questões. Poderia o comportamento de Heitor ser diferente mantendo-se inalteradas as causas que lhe deram origem? Poderia ele agir de outra maneira tendo a personalidade que tinha e sendo as circunstâncias as que eram?
Perguntar se, tendo Heitor a personalidade que tinha, a decisão de enfrentar Aquiles seria inevitável é colocar a hipótese do seu comportamento ter sido determinado por factores que não controlava.
À primeira vista, se Heitor agiu livremente, o seu comportamento podia ter sido diferente do que foi. Mas se o seu comportamento teve origem na sua personalidade (nos seus genes e meio ambiente), sendo esse meio e esses genes o que foram, Heitor não podia ter agido de outro modo. Se assim for, Heitor não agiu livremente: não tinha diferentes cursos de acção ao seu dispor.
A possibilidade de Heitor não ter agido livremente ao enfrentar Aquiles coloca-se quando percebemos que o comportamento de Heitor tinha uma causa, e que essa causa fazia parte de uma cadeia causal que ia tão longe quanto os seus genes e o meio ambiente em que a sua personalidade se desenvolveu. Dir-se-ia que o problema está em o comportamento de Heitor fazer parte, então, de uma cadeia de causas que ele não controla (não escolheu os seus genes nem o meio ambiente) e estes factores determinarem à partida qual vai ser o seu comportamento. Seria esta a origem das suas acções. Mas se a sua acção tem origem em factores que não lhe deixam outra alternativa, é justo suspeitar de Heitor não ter, afinal, livre-arbítrio.
Isto permite comparar a situação de Heitor com o caso, mais simples, de um pedaço de giz que cai se abrirmos os dedos que o seguram. A queda do giz era inevitável considerando as leis da natureza: estava, pois, determinada. O comportamento de Heitor estaria também determinado.
Mas o que é o determinismo? O determinismo é uma concepção acerca do modo como se processa a relação entre as causas e os efeitos que observamos na natureza. Consiste em defender que todo o acontecimento B tem como causa um acontecimento anterior A, de tal modo que, segundo as leis da natureza, B é uma consequência inevitável de A: sendo as leis da natureza o que são, e tendo-se verificado A, é impossível não ocorrer B. Vejamos de novo o exemplo do giz: tendo largado o giz que segurava nos dedos (acontecimento A) e sendo as leis da natureza o que são (neste caso as leis da gravidade) a queda do giz não podia deixar de acontecer — era inevitável (acontecimento B). O mesmo acontece em todos os outros casos.
Podemos, então, dizer o seguinte: uma situação, seja ela qual for, pode ser explicada deterministicamente quando:
A ocorrência de um acontecimento X é uma consequência inevitável (e não apenas provável) das causas que o antecedem, em conjunto com as leis da natureza.
Como se vê, esta ideia tinha já sido introduzida anteriormente (a propósito de Heitor e de outros casos).
Mas podemos tirar dela uma conclusão muito geral: segundo o determinismo, tudo o que acontece no universo é a consequência inevitável do seu estado anterior em conjunto com as leis da natureza. Recuemos por momentos às primeiras causas do universo. No primeiro instante teríamos o Big Bang, depois, entre o Big Bang e o seu estado actual, uma longa cadeia de acontecimentos em que cada um determina o seguinte. Durante esta cadeia de acontecimentos formaram-se estrelas, galáxias, outras desapareceram, etc., tudo isto de acordo com causas anteriores e seguindo sempre as leis naturais. A história do universo seria uma longa sequência cuja ordem não poderia ser diferente da que foi, e que resultou directamente das leis da natureza em conjunto com o estado da situação anterior ao Big Bang. Aquilo que afirmámos acerca do pedaço de giz pode ser aplicado ao universo no seu conjunto.
Durante muito tempo, esta ideia esteve presente em física, e ainda hoje são muitos os cientistas que a aceitam; Einstein, por exemplo, foi um deles: nada na natureza sucede por acaso.
Esta concepção de causalidade está também presente na física de Newton, embora possa passar despercebida. Se pensarmos na fórmula F = ma compreendemos que o valor de F, m ou a, depende inevitavelmente dos valores conjugados dos outros dois factores, de modo que sabendo a massa de um corpo e o valor da sua aceleração, podemos determinar o valor de F não apenas como sendo um valor provável mas como algo de que poderemos estar totalmente seguros.
Na verdade, durante séculos, a ciência propôs-nos uma visão determinista do mundo e, por esse motivo, o problema do livre-arbítrio foi entendido como o de saber se a imagem que temos de nós próprios enquanto agentes livres seria conciliável com uma concepção científica do mundo.
Se interpretarmos o comportamento de Heitor à luz do conceito de liberdade teremos de concluir que Heitor podia não ter feito o que fez. Se interpretarmos o seu comportamento deterministicamente (considerando a série de causas e efeitos que conduzem à acção de enfrentar Aquiles uma sequência inevitável de acontecimentos), teremos de concluir que Heitor não podia não ter feito o que fez. Ora, isto é contraditório. Será possível evitar este resultado?
Entendido no sentido indicado, o problema do livre-arbítrio pode ser formulado da seguinte maneira:
Problema 1: Será o determinismo conciliável com a existência de agentes livres?
Note-se que esta é uma maneira bastante sintética de chamar a atenção para o facto de o determinismo implicar que tudo o que acontece (incluindo as nossas acções e movimentos corporais) é uma consequência inevitável de acontecimentos anteriores que os causaram de acordo com as leis da natureza, e que ser livre implica que o agente podia ter evitado fazer o que fez. Há, portanto, entre estas duas ideias um choque que está em aberto saber se pode ser evitado.
A resposta incompatibilista a este problema é que o choque (a incompatibilidade) não é só aparente:
Se o determinismo é verdadeiro, então não há acções livres.
A resposta compatibilista, pelo contrário, sustenta que há uma maneira de evitar o choque entre estes conceitos:
O determinismo é verdadeiro e existem acções livres.
Convém notar que a posição incompatibilista consiste em afirmar que determinismo e livre-arbítrio são incompatíveis; mas esta posição, só por si, não nos diz qual das alternativas é verdadeira. Partimos do princípio de que uma exclui a outra, mas resta ainda mostrar qual delas é o caso.
O problema do livre-arbítrio, na sua formulação completa, implica colocar mais duas questões:
Problema 2: Será o determinismo verdadeiro?
Problema 3: Existe livre-arbítrio?
Note-se que um compatibilista responde SIM a ambas as perguntas (o compatibilista acha que uma acção pode ser em simultâneo determinada e livre). Mas o mesmo não acontece com o incompatibilista.
Para o incompatibilista, responder SIM a uma delas implica responder NÃO à outra. Isto dá-nos duas posições incompatibilistas tradicionais: (i) os incompatibilistas que defendem que o determinismo é verdadeiro; (ii) os incompatibilistas que defendem que existe livre-arbítrio. Os primeiros são designados deterministas radicais; os segundos são designados libertistas.
Podemos, em consequência, observar que os deterministas radicais baseiam a sua posição no seguinte argumento A:
1) Se o determinismo é verdadeiro, não há acções livres.
2) O determinismo é verdadeiro. Logo, não há livre-arbítrio
Os libertistas baseiam-se também em duas premissas, mas tiram outra conclusão. O argumento B completo é:
1) Se o determinismo é verdadeiro, não há livre-arbítrio.
2) Há livre-arbítrio.
Logo, o determinismo é falso.
Qualquer destes argumentos é válido. Assim, num caso como noutro, se aceitarmos ambas as premissas temos de aceitar a conclusão. O nosso objectivo, dado que estamos interessados em conhecer melhor cada uma destas teorias, é saber em que se baseiam os seus defensores para afirmar que partem de premissas verdadeiras. A nossa investigação terá dois momentos.
Primeiro, examinaremos dois argumentos a favor da posição incompatibilista. Estes argumentos dar-nos-ão razões para aceitarmos a primeira premissa. Depois, num segundo momento, procuraremos ver em que se baseiam os defensores do determinismo (segunda premissa do argumento A); finalmente, veremos algumas das razões em que se apoiam os defensores do livre-arbítrio (a segunda premissa do argumento B). Eis em esquema as três posições sobre o problema:
Teorias | Liberdade e determinismo são compatíveis? | Será o determinismo verdadeiro? | Será que temos livre-arbítrio? |
Determinismo radical | Não | Sim | Não |
Libertismo | Não | Não | Sim |
Determinismo moderado | Sim | Sim | Sim |
Iremos ver em seguida dois argumentos tradicionais a favor do incompatibilismo. O primeiro pode ser designado por Argumento da Causalidade à Distância, embora o nome seja pouco importante.
Mas antes de apresentar este argumento convém notar o seguinte. Ambos têm como objectivo provar que o incompatibilismo é verdadeiro. Ambos são dedutivos e ambos terão obrigatoriamente como conclusão a tese incompatibilista “Se o determinismo é verdadeiro, então não há acções livres”. Afinal, é exactamente isto que se quer justificar. Uma vez que os argumentos são válidos, se as premissas forem todas verdadeiras, dão-nos uma prova racional (uma demonstração) de que o incompatibilismo é verdadeiro. De igual modo, se defendermos uma posição compatibilista, temos de mostrar que pelo menos uma premissa é falsa (e qual).
Então, isto significa que:
Mas, dada a relação que há entre liberdade e responsabilidade,
Logo, se o determinismo é verdadeiro, então não somos livres.
Premissa 1: Esta premissa limita-se a aplicar o conceito de determinismo às acções humanas e a chamar a atenção para o facto de cada acção que praticamos ter causas muito distantes no tempo. Vejamos o caso de Heitor. A sua personalidade formou-se muito antes de Heitor ter enfrentado Aquiles. No entanto, a decisão que tomou foi causada pela sua personalidade (se Heitor não fosse corajoso e honesto não teria enfrentado Aquiles); por sua vez, a sua personalidade foi causada pelos seus genes e pelo ambiente em que cresceu e foi educado (meio físico e social). Portanto, poderemos dizer, recuando na sequência de causas até ao passado, que os seus genes, em conjunto com o meio, causaram a acção de Heitor. (No sentido em que, num choque em cadeia de quatro bolas de bilhar, se diz que o movimento da primeira causou o movimento da quarta.) Ora, Heitor não escolheu os seus genes nem o meio em que cresceu; daí não ter sobre eles qualquer controlo (não dependia dele evitar serem o que foram).
Premissa 2: Esta premissa sublinha uma importante relação entre liberdade e responsabilidade, tal como a entendemos vulgarmente. Vejamos um exemplo. Estou na fila da cantina e atrás de mim alguém me empurra. Não pude evitar cair sobre a pessoa que está à minha frente, que se magoa. Poderei ser responsabilizado pelo sucedido? A resposta é não. Resta saber porquê: é que, por um lado, não magoei a pessoa intencionalmente; e por outro, não podia evitar cair sobre ela. Como não o podia evitar, não estava em meu poder praticar ou não a acção; logo, não posso ser responsabilizado por ela. Assim, esta premissa limita-se a dizer que somos responsáveis apenas pelas acções que dependem de nós — que está em nosso poder praticar (ou não).
Passo 3: Este ponto do argumento deduz-se das premissas anteriores. Se o determinismo ser verdadeiro implica ausência de controlo sobre as acções, e se a ausência de controlo sobre as acções implica ausência de responsabilidade, então o determinismo implica ausência de responsabilidade. Compare este raciocínio com o seguinte de modo a verificar que são do mesmo tipo: A é maior que B e B é maior que C; logo, A é maior que C. Ambos formam uma cadeia lógica.
Há, no entanto, um importante aspecto a sublinhar a respeito deste passo. É que se vê agora qual a principal motivação para a discussão do problema do livre-arbítrio tal como o formulámos. Tudo indica que o determinismo ser verdadeiro obriga a pôr em causa uma das nossas práticas mais básicas: a atribuição de responsabilidade aos agentes. Não tem sentido algum elogiar ou censurar alguém por ter feito precisamente aquilo que não podia evitar fazer. Mas é isto que se passa caso os agentes não tenham controlo sobre as acções que praticam.
Premissa 4: Esta premissa recorre de novo à relação entre liberdade e responsabilidade, tal como é vulgar entendê-la. Vejamos em que consiste. O exemplo da fila da cantina mostrou que só somos responsáveis pelas acções que podíamos ter evitado — portanto, pelas acções que praticamos livremente. Sendo assim, só não podemos ser responsabilizados pelas acções que não praticamos livremente. Donde, não ser responsável por uma acção implica não ter agido livremente.
Conclusão: A conclusão do argumento é uma consequência lógica de tudo o que foi afirmado anteriormente. Cada passo do raciocínio forma um elo na cadeia que nos leva da hipótese de o determinismo ser verdadeiro à conclusão de que não há livre-arbítrio. Para perceber isto basta verificar que a conclusão se segue do passo três em conjunto com a premissa quatro.
O passo três do raciocínio diz que o determinismo ser verdadeiro implica ausência de responsabilidade. A premissa quatro afirma que a ausência de responsabilidade (não ser responsabilizável) implica não ser livre. Segue-se, pois, que o determinismo ser verdadeiro implica não haver liberdade.
- Se o determinismo é verdadeiro, as nossas acções não podiam ser diferentes do que são.
- Se as nossas acções não podiam ser diferentes do que são, então não temos livre-arbítrio.
Logo, se o determinismo é verdadeiro, então não somos livres.
Este argumento não contém qualquer novidade relativamente ao anterior. Num certo sentido, poderá ser considerado uma versão simplificada do anterior, não recorrendo ao conceito de responsabilidade. Neste sentido, pode ser considerado menos interessante que o anterior.
Premissa 1: Esta premissa afirma que em cada momento existe um e apenas um curso de acção possível dadas as causas que o antecedem, em conjunto com as leis da natureza. Daí a importância dada à inevitabilidade. Esta afirmação constitui a explicitação do conceito de determinismo.
Premissa 2: Esta premissa evoca o conceito de liberdade, segundo o qual uma acção é livre se, e só se, o agente tem mais do que um curso alternativo de acção ao seu dispor, não sendo inevitável fazer o que faz.
Conclusão: A conclusão é uma consequência lógica das premissas. Se o determinismo implica haver um só curso de acção disponível ao agente em cada momento, e se haver um só curso de acção disponível ao agente em cada momento implica não sermos livres, então o determinismo implica não sermos livres. Note-se que o argumento não prova a verdade do determinismo. Limita-se a defender o seguinte resultado: a incompatibilidade entre os conceitos de determinismo e liberdade.
Os resultados anteriores sugerem que na hipótese de o determinismo ser verdadeiro, não há livre-arbítrio; e que, não havendo livre-arbítrio, a atribuição de responsabilidade aos agentes não tem razão de ser (um fundamento racional). Mas será que o determinismo ser falso melhora as coisas? Abriríamos caminho à liberdade e à responsabilização moral dos agentes?
A resposta é NÃO. Para percebermos porquê é necessário analisar em que consiste o determinismo ser falso.
Definimos determinismo como uma teoria que afirma o seguinte: a ocorrência de um acontecimento X é uma consequência inevitável (e não apenas provável) das causas que o antecedem, em conjunto com as leis da natureza. E ilustrámos esta ideia com a queda de um pedaço de giz.
Mas se esta ideia for falsa, o que terá de acontecer? A resposta é: o determinismo é falso se houver acontecimentos que não sejam a consequência inevitável das causas que o antecedem, mas apenas a sua consequência provável. Isto dá-nos a seguinte definição de indeterminismo:
A ocorrência de um acontecimento X é uma consequência provável (mas não inevitável) das causas que o antecedem, em conjunto com as leis da natureza.
Um exemplo simples que pode ser usado como ilustração da ideia indeterminista é o seguinte. No filme O Caçador, sobre a guerra do Vietname, alguns grupos de guerrilheiros nacionalistas sujeitavam os prisioneiros americanos a um jogo chamado roleta russa, que também era praticado em certos casinos. O jogo consiste em colocar uma bala na câmara de um revólver, deixando vazias as outras cinco câmaras. O árbitro roda o canhão da arma antes de a entregar a cada jogador para que haver (ou não) uma bala na câmara dependa da interferência do acaso. O jogador tem 1/6 de probabilidades de morrer ao disparar a arma contra si próprio, e 5/6 probabilidades de sobreviver. Mas, apesar da intervenção do acaso, o disparo, quando ocorre, tem uma causa: se não tivesse havido pressão no gatilho, não haveria disparo e, como é óbvio, o acaso não teria a oportunidade de decidir a sorte do jogador.
Assim, se esta descrição estiver correcta, há acontecimentos que têm causa mas, ter uma causa, e sendo as leis da natureza o que são, não os torna inevitáveis. A física do século XX, por exemplo, ao explorar o que se passa no interior dos átomos, tem sobre esses fenómenos uma visão indeterminista, que ainda hoje serve de pretexto para muitos debates.
Podemos então dizer que aqueles acontecimentos que, apesar de terem uma causa, não são inevitáveis, devem a sua ocorrência à intervenção do acaso. Quer isto dizer que nos tornaríamos livres se o mesmo acontecesse com as nossas acções? A resposta é negativa.
Para sermos livres, temos de ter controle sobre as nossas acções (somos nós quem tem a última palavra: praticar ou não a acção apenas depende de nós). Ora, é claro que não temos qualquer controle sobre o que acontece por acaso. Não nos tornaríamos mais responsáveis por uma acção resultante do acaso do que por uma acção que não estivesse em nosso poder evitar. O problema do livre-arbítrio não ficará resolvido se o determinismo for falso.
Se esta análise estiver correcta, podemos dizer que o problema da compatibilidade tem um âmbito mais vasto do que tradicionalmente é reconhecido. A dificuldade não é saber se é possível conciliar liberdade e determinismo, mas saber se é possível conciliar liberdade e causalidade.
Neste sentido, o problema deixar-se-ia formular assim:
Será que uma acção ter uma causa implica que não seja livre?
Vimos dois importantes argumentos a favor do incompatibilismo. Estes argumentos destinam-se a mostrar que liberdade e determinismo não podem ser conciliados; assim, se o determinismo é verdadeiro, a imagem que a ciência nos oferece do mundo (incluindo fazermos parte dele) não é compatível com a existência de uma agência livre (entende-se por “agência” a capacidade para agir, isto é, para efectuar acções de forma voluntária e intencional). Ou o modo como olhamos para nós próprios está profundamente errado, ou é o determinismo que está errado.
Qualquer destas soluções tem custos difíceis de aceitar: há sempre algo que se perde, além de não ser claro em que medida o determinismo ser falso (e o indeterminismo verdadeiro) constitui realmente uma ajuda. À primeira vista, pelo menos, dir-se-ia tão difícil compatibilizar o determinismo com a liberdade como compatibilizar a liberdade com o indeterminismo. Ora, a posição compatibilista pretende reunir o melhor dos dois mundos e resolver o problema do livre-arbítrio sem que tenhamos de pôr de lado qualquer destas alternativas.
Mas como é isto possível? Tínhamos visto que interpretar o comportamento de Heitor à luz do conceito de liberdade nos obriga a concluir que Heitor podia não ter feito o que fez. Se interpretarmos o seu comportamento deterministicamente temos de concluir que Heitor não podia não ter feito o que fez. A contradição é evidente: Heitor podia não ter feito o que fez e Heitor não podia não ter feito o que fez. O problema, para um compatibilista, é evitar que esta contradição ocorra.
Uma estratégia consiste em tentar impedir que esta contradição seja derivável a partir de premissas que envolvam os conceitos de liberdade e de determinismo. Para manter o nosso exemplo, esse conjunto de premissas seria: “Heitor praticou livremente a acção A” e “A acção A praticada por Heitor tem uma causa”. Para tentar evitar o resultado indesejado é preciso mudar pelo menos uma premissa: a estratégia compatibilista é mudar o conceito de liberdade.
Note-se, portanto, que um compatibilista não tem que se intimidar com os argumentos incompatibilistas apresentados (o argumento da causalidade à distância e o argumento da inevitabilidade). Em geral, os compatibilistas tendem a defender que a ideia de liberdade envolvida em cada um destes argumentos é realmente incompatível com o determinismo, mas que uma tal liberdade é um mito. Entendida como a capacidade do agente de ser a origem última das acções que pratica — ter sobre elas a última palavra — a liberdade não existe. (Isto parece dar razão aos libertistas, que acusam os compatibilistas de serem cépticos disfarçados, e nada mais.) Mas o conceito de liberdade tal como é utilizado para descrever as mais variadas situações do quotidiano, não requer o poder do agente para ter a última palavra sobre as acções que pratica. Requer apenas que o agente possa realizá-las sem que haja alguma coisa a impedi-lo.
Consequentemente, para um compatibilista, um agente pratica livremente uma acção se e só se:
O agente pode fazer o que tem vontade de fazer (na ausência de obstáculos que o impeçam de prosseguir os seus fins)
Assim, uma acção só não é livre se o agente for confrontado com um impedimento que inviabilize a acção.
Estes impedimentos podem ser externos (quero comprar um disco mas não tenho dinheiro) ou internos (sou vítima de um impulso irresistível que não controlo — como o cleptomaníaco). Neste sentido, uma acção X pode ser livre e, em simultâneo, determinada: é determinada porque tem origem numa série causal que vem do passado e cujo último elemento é um desejo de fazer X; e é livre porque, dada a ausência de obstáculos, nada impede o agente de fazer o que deseja. Esta concepção de liberdade não está sujeita à objecção de que apenas somos livres se tivermos controlo sobre os elos passados das nossas acções. Não temos controlo sobre o passado. Mas também não se vê necessidade de o ter.
Vejamos uma vez mais o caso de Heitor. Um compatibilista dirá que Heitor enfrentou Aquiles livremente, e que tê-lo feito não implica pôr em causa uma visão determinista do mundo.
Heitor enfrentou Aquiles porque foi esse o seu desejo (nas circunstâncias dadas); e fê-lo livremente porque nada o impediu de o realizar. Esta ideia capta suficientemente bem que fazer o que queremos fazer é uma condição necessária da acção livre. Mas fazer o que queremos fazer pode não ser tudo. Talvez seja necessário que Heitor pudesse não ter feito o que fez. Poderá o conceito compatibilista de liberdade, além da ausência de coacção, incluir a ideia de que o agente possui alternativas reais? Heitor podia não ter enfrentado Aquiles?
Voltemos ao caso do fósforo. Admita-se estarem reunidas as seguintes condições: 1) há oxigénio no ar; 2) a lixa que seguro na mão está seca; 3) a pressão do fósforo na lixa é adequada; 4) o fósforo está em óptimas condições. A ocorrência dos factores 1–4 torna fisicamente impossível o fósforo não acender: isto é, 1–4 são suficientes para determinar o acendimento. A ocorrência dos factores causalmente relevantes para o acendimento não deixa outra alternativa.
Vejamos agora o caso das térmitas-soldado. Quando o formigueiro é atacado saem em sua defesa desde que não surja qualquer impedimento. Digamos que também aqui a ausência de obstáculos é necessária para que a acção tenha lugar; contudo, as térmitas-soldado — pensamos nós — não são livres. E não são livres porque não podiam ter agido de outro modo. As instruções contidas nos seus genes, em conjunto com as condições do meio — a situação em que se encontra o formigueiro — são suficientes para determinar o comportamento.
E no nosso caso? O que significa dizer que um agente A, numa situação S, tem ao seu dispor alternativas reais de acção? Significa que no momento imediatamente anterior à sua decisão, A tem ainda diante de si n > 1 cursos de acção; significa, portanto, que o conjunto de factores causalmente relevantes para a acção não é suficiente para a determinar. É isto que nos faz dizer que o agente é a origem última da acção (que tem a última palavra). A acção podia ter sido diferente do que foi mantendo-se todos os outros factores inalterados.
Aplicando esta ideia ao caso de Heitor: ele disporia de alternativas reais se, e só se, a sua decisão pudesse ter sido outra, mantendo-se tudo o mais idêntico: as circunstâncias em que se encontrava, mas também os seus desejos e as suas crenças — ou seja, a sua personalidade. (A personalidade do agente é causalmente relevante para o que o agente quer fazer.)
O que nos diz o compatibilismo? Diz-nos que, no sentido indicado, Heitor não podia ter feito outra coisa excepto enfrentar Aquiles. Mas diz-nos também que há ainda um outro sentido, não categórico, mas condicional, de afirmar que Heitor podia ter feito outra coisa: ele podia não ter enfrentado Aquiles se os seus desejos e crenças fossem diferentes. Se a série de causas que conduziu à decisão de enfrentar Aquiles incluísse outros desejos e crenças, se a sua personalidade fosse em algum aspecto diferente, então, no caso de nada o impedir, Heitor poderia não ter enfrentado Aquiles. E isto, obviamente, é compatível com o determinismo.
O que o determinismo diz é que as nossas acções são a consequência inevitável de causas anteriores (em conjunto com as leis da natureza aplicáveis no caso); mas isto não impede que se o passado tivesse sido diferente, também o presente (e o futuro) poderiam sê-lo. Será isto aceitável? Poderemos aceitar uma interpretação estritamente condicional de “um agente é livre se, e só se, podia ter feito outra coisa”, em vez de uma interpretação categórica?
Para se ver melhor o que está em causa nas duas interpretações, observem-se cada uma das propostas.
Interpretação categórica: Um agente A praticou livremente uma acção X se e só se
podia ter agido de forma diferente de X.
Interpretação condicional: Um agente A praticou livremente uma acção X se e só se
podia ter agido de forma diferente de X, caso tivesse escolhido fazê-lo.
Avaliar os méritos e as lacunas destas posições não é fácil. Uma via possível seria a seguinte.
O compatibilismo supõe que uma definição condicional de diferentes cursos de acção é compatível com o uso vulgar do conceito de liberdade. Se for assim, dada a relação entre liberdade e responsabilidade, a interpretação condicional terá ainda de ser compatível com o conceito vulgar de responsabilidade. Uma maneira de avaliar se há compatibilidade no primeiro caso é, portanto, avaliar se há compatibilidade no segundo. Vejamos como isto pode ser feito.
Há uma importante relação conceptual entre liberdade e responsabilidade que todos admitimos. Ser livre implica ser responsável; ser responsável implica ser livre. (A relação entre liberdade e responsabilidade não é tão directa como esta formulação sugere. Está a ser pressuposto que os agentes são sensíveis a razões de ordem moral e que dispõem dos meios para as identificar.) A primeira implicação é óbvia: se um agente A praticou livremente uma acção X, A podia ter evitado praticar X; quaisquer que sejam as consequências decorrentes de X, elas só terão lugar se A decidiu não as evitar, embora pudesse tê-lo feito. São estas considerações que tornam algumas acções objecto de censura e outras dignas de elogio. Censuramos as acções que têm más consequências e elogiamos aquelas cujas consequências são boas. A segunda implicação também é óbvia: um agente A ser responsável por uma acção X, significa que A podia ter evitado X.
Vejamos dois exemplos. Um esquizofrénico assassina a mãe e a avó num momento de perturbação. A sua responsabilidade pode ser questionada se presumirmos que a doença lhe retirou momentaneamente o controlo dos seus actos; não pode ser responsabilizado porque não podia não ter feito o que fez. Um piloto decide arriscar um voo em condições meteorológicas bastante difíceis; a sua decisão pode ser questionada se as regras básicas da prudência tiverem sido violadas; é considerado responsável porque podia não ter feito o que fez.
Ao contrário do esquizofrénico, o piloto é o único autor da acção: é sua a última palavra sobre praticar (ou não) a acção. Neste sentido, a atribuição de responsabilidade moral aos agentes parece implicar que são eles os autores das suas acções. Mas, para que o sejam, é necessário terem tido ao seu dispor verdadeiras alternativas: estava realmente em seu poder praticar (ou não) a acção. A questão é: será que uma interpretação condicional de liberdade, tal como os compatibilistas sugerem, está em condições de suportar este sentido de responsabilidade?
Para um compatibilista, defender que Heitor enfrentou Aquiles livremente é o mesmo que dizer que Heitor poderia não o ter feito se as suas intenções fossem outras, i. e., se tivesse outros desejos e crenças. Mas isto parece implicar que Heitor só podia não ter feito o que fez se fosse uma pessoa diferente — o que é insuficiente para o responsabilizar pelas suas decisões. É seguramente abusivo atribuir responsabilidade moral a um agente com base no poder de agir diferentemente se ele fosse uma pessoa diferente da que é. O que está em causa é, pelo contrário, saber se podemos responsabilizar moralmente um agente pelo que faz sendo ele a pessoa que é.
Se estas considerações estiverem correctas (e podem não estar; Harry Frankfurt, por exemplo, argumentou que o determinismo é compatível com a imputação de responsabilidade moral aos agentes; uma avaliação desta proposta vai, no entanto, muito além do que aqui está em causa), o conceito compatibilista de liberdade não é suficiente para suportar a atribuição corrente de responsabilidade moral aos agentes. Mas, nesse caso, não é compatível com o sentido vulgar de “liberdade”. Se estas considerações estiverem certas, o conceito compatibilista de liberdade implica um desvio injustificado do uso padrão.
Paulo Ruas