Quanto custa salvar uma vida? Será demasiado difícil? Será demasiado caro? Será sequer que tenho a obrigação de tentar fazê-lo? Talvez este tipo de questões seja demasiado complexo para esperar obter respostas práticas que não sejam independentes dos benefícios realmente a atingir. Pois afinal, se concluo que isso é algo virtuoso, ou obrigatório, face às circunstâncias, ou às consequências, em que medida estarei habilitado para apurar a melhor maneira de o fazer? E até que ponto devo sacrificar-me para o atingir? A ética, na prática, requer que eu seja um santo ou um mártir? O que justificaria isto não ser um falso dilema, mesmo quando a minha intenção é fazer o melhor que posso? Entre as virtudes de um santo e o espírito de sacrifício de um mártir, poderia haver um meio-termo em que eu pudesse conciliar a minha vontade de ajudar, com o maior bem que posso fazer, sem que isso me prejudicasse? Mas que dizer do constrangimento emocional de lidar constantemente com esta realidade de sofrimento? Não será demasiado pesado para que, mesmo nesse meio-termo, se escolha um envolvimento (crítico e activo) que esteja além da nossa noção de obrigação face a algo que nos é alheio? E num mundo em que por vezes as catástrofes humanitárias chegam a ser anunciadas com antecedência ou em que se sabe que o nosso consumo desenfreado pode ser cúmplice de uma catástrofe do outro lado do planeta, será que podemos realmente dizer que somos alheios? O que acontecerá, então, ao colocar na balança o meu egoísmo e o meu altruísmo? As minhas considerações éticas ficarão reféns da forma como posso antever que isso se venha a reflectir negativamente na minha auto-imagem? E essa medida de sacrifício pelos outros não deverá colher vantagem daquilo que eu possa fazer também pelo meu próprio bem-estar físico e emocional?
— Posso então supor que não recusarias ler um livro que apresentasse reflexões sobre essas questões e mesmo talvez algumas respostas? E nota que quem te pergunta isso és tu mesmo, dez anos depois da altura em que começaste a questionar o que fazer para teres um maior impacto positivo no mundo. Faz agora precisamente dez anos que esse livro foi escrito por um autor que nessa altura desconhecias completamente.
Calculando que seria de leitura angustiante é difícil imaginar que fosse ler esse livro caso não me fosse aconselhado por alguém em quem realmente confiasse. Bom, mas se fosse eu mesmo a aconselhar-me, tomando em conta aquilo que poderei saber daqui a dez anos, certamente não teria como dizer “não”.
— Pois, mas esta conversa nunca aconteceu entre nós. O máximo que pode acontecer é uma conversa entre ti e o teu eu do futuro.
Ou então, uma conversa imaginada entre ti e o teu eu do passado.
— Sim, parece mais fácil. Assim poderá ser algo como a conversa que o autor deste livro teve com o seu eu de 2009, ao actualizar agora essa primeira edição.
Mas então que livro e autor são esses?
— Estou a falar de Peter Singer, um professor de Filosofia na Universidade de Princeton, autor, co-autor, organizador e co-organizador de mais de cinco dezenas de livros publicados em todo o mundo, e cujas ideias são tão reconhecidas quanto polémicas. O que lhe valeu epítetos tão antagónicos como “o homem mais perigoso do mundo” e “o pai do altruísmo eficaz”, para além de ter sido considerado pela revista Time como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo.
Bom, quanto ao autor não haja dúvida que já me despertaste a curiosidade… e quanto ao livro de que falas, o que me podes dizer?
— Em vez de usar as minhas palavras vou usar as de Bill e Melinda Gates que o referem como “Um livro persuasivo e inspirador que muda o nosso modo de encarar a filantropia. Peter Singer desafia-nos a fazer mais e a adoptar formas mais inteligentes de dar e mostra-nos que, trabalhando em conjunto, podemos fazer toda a diferença nas vidas das pessoas mais pobres do mundo.” E isto dito por um casal que dedicou grande parte da sua vida à filantropia e que já doou mais de 36 mil milhões de dólares a causas humanitárias.
Isto pode parecer estranho, mas confesso que à partida não queria ler esse livro. Não só por temer o incómodo dos assuntos aí tratados (quase 250 páginas sobre o sofrimento da pobreza extrema?!), assim como temia as consequências de o achar convincente (como conseguiria lidar com o incómodo de não agir, sentindo que devia, ou com o incómodo de agir, e os sacrifícios que daí poderiam resultar?).
— Mas por vezes não resistimos à tentação de confrontar as nossas convicções ou de superar as nossas falhas morais…
Sim, tens razão, não resisti.
— O livro foi publicado em Portugal em Junho de 2011.
Sim, comprei-o cerca de um mês depois, em Julho, comecei a ler e não consegui parar. Ao fim de duas noites quase sem dormir já o tinha lido. Aquelas ideias abalaram-me de tal modo que na primeira semana depois da leitura, tive dificuldade em comer… emagreci. Só consegui superar isso decidindo fazer alguma coisa. Decidi então promover nas redes sociais o livro e o projecto humanitário a ele associado. Um mês depois, a 15 de Agosto (a data de nascimento do meu pai), iniciei essa divulgação.
— Coisa que fazes até hoje! Porque te parece que essa leitura teve um impacto assim tão grande?
A forma como Peter Singer apresenta uma série de factos, por vezes chocantes, seguidos de uma série de argumentos, extremamente persuasivos, que nos impelem a uma reflexão moral e a um confronto com as respectivas consequências, é realmente uma viagem vertiginosa pela ética. É muito instigante. Diria que é impossível ficar indiferente perante a sua argumentação.
— Consegues dar exemplos disso?
Bem, logo no Prefácio confronta-nos com o absurdo da nossa realidade: pagamos por uma garrafa de água, quando temos água da torneira, portanto, gastamos dinheiro naquilo que realmente não necessitamos e, enquanto isso, em todo o mundo, cerca de mil milhões de pessoas (sim, 1 000 000 000) lutam diariamente para conseguir sobreviver com menos dinheiro do que gastamos nessa garrafa de água (p. 9). Mas, a par dessa realidade, também vivemos um momento único, pois pela primeira vez na história da humanidade estamos em condições de acabar com a pobreza extrema (pp. 10–11).
— Não imaginas como essa frase ressoou dentro da minha cabeça, durante muito tempo.
Mas diz ainda que apesar das ideias feitas de que a pobreza é infinita e irremediável, a informação de que dispomos hoje prova o contrário. Segundo a Unicef em 1960 morreram 20 milhões de crianças com menos de 5 anos, mas esse número diminuiu para quase metade até 2007. Esse facto é tão mais impressionante se lhe juntarmos a informação que nesse período de tempo a população mundial duplicou (p. 11).
— E de 2009 para 2019 esse número voltou a diminuir para cerca de metade. No entanto, ainda são 5,4 milhões de crianças que morrem por ano, e mais de metade em resultado de condições que poderiam ser prevenidas ou devido a doenças que poderiam ser tratadas facilmente, o que é, em seu entender, “uma tragédia imensa, para não dizer uma nódoa moral num mundo tão rico como o nosso” (p. 11, p. xix).
Neste ponto interrogo-me, o que poderia eu fazer quanto a isso?
— Peter Singer diz-nos precisamente que este livro tem dois objectivos:
Ele calcula que irá deparar-se com uma série de objecções da nossa parte, como a dificuldade de darmos dinheiro a quem não conhecemos, a dúvida se teremos obrigações face a estranhos (a quem supostamente nada fizemos de mal), a incerteza do nosso futuro e das nossas próprias necessidades económicas, etc. Não desvalorizando essas questões, Singer lembra-nos que, mesmo nos piores momentos, as nossas vidas são infinitamente melhores que as das pessoas que vivem na pobreza extrema. E perante isso, em 2009, Singer perguntava-nos à queima-roupa: “O que é preciso para viver eticamente num mundo em que morrem desnecessariamente dezoito milhões de pessoas por ano?” Fazia então notar que isso equivale a uma taxa de mortalidade anual superior à da 2.ª Guerra Mundial. E que a fome matou mais nos últimos 20 anos do que todas as guerras do século XX (o século de Hitler e Estaline). Por isso pergunta: “Quanto estaríamos dispostos a dar para impedir esses horrores?” (p. 14)
— Em 2019, Singer, no mesmo ponto, reformula:
Pense em alguém que ame, e depois pergunte a si mesmo quanto daria para evitar que essa pessoa morresse de malária, ou para permitir que essa pessoa fosse tratada de um ferimento no parto que a tornasse numa pária, ou que lhe restaurassem a visão caso ficasse cega? Depois pergunte a si mesmo em que medida está a ajudar pessoas a viver na pobreza, que não possuem os meios para fazerem precisamente essas coisas por si mesmas e pelas suas famílias (p. xxi).
Neste tipo de questões fazemos o balanço entre o incómodo daquilo que possamos sentir como uma espécie de chantagem psicológica ou apelo à emoção e, por outro lado, o incómodo de um confronto muito duro com a nossa incapacidade de empatia face a estranhos com necessidades extremas, mas que vivem em países longínquos. É de qualquer das maneiras uma forma de nos confrontar com as nossas obrigações para com aqueles que precisam urgentemente de ajuda.
— Singer diz acreditar que, “se lermos este livro até ao fim, analisando com cuidado e honestidade cada argumento e cada facto, perante a nossa situação, concluiremos que sim, somos mesmo obrigados a agir” (p. 14, p. xxi).
A minha mãe chamava-se Maria e o meu pai José, como os pais de Jesus, mas caso se chamassem Amina e Abdalá, como os pais de Maomé, e se eu não tivesse nascido no Porto, mas sim em Bangladesh, eu e os meus dois irmãos poderíamos bem ter estado entre os nove milhões de refugiados que no ano em que nasci foram vítimas de um genocídio (perfazendo um número de vítimas superior a toda a população do Portugal de então). Embora a crise mundial de fome que esse genocídio desencadeou não fosse incomum, Peter Singer ― nessa altura um jovem de apenas 25 anos ―, por querer quebrar essa rotina de passividade perante a tragédia humana e por querer mudar a forma como olhamos para as questões morais nesse tipo de situações, colocou uma pergunta ao mundo que persiste até hoje: deixaria morrer uma criança a afogar-se num lago raso só por não querer sacrificar o seu melhor par de sapatos ao tentar salvá-la (p. 17)?
— Sabes quantas vezes já passei por esse lago? O lago é a minha consciência. E não quero admitir que aí possa morrer uma criança inocente só porque eu pudesse dar mais valor ao dinheiro. Não foi isso que os meus pais me ensinaram.
Talvez esses sentimentos sejam um bom ponto de partida.
— Mas sabes, ao longo de quase cinquenta anos, Peter Singer continuou a colocar essa mesma pergunta e não causará grande admiração que a maioria das pessoas considere monstruoso deixar afogar a criança por se achar mais valioso um par de sapatos.
Mas aí surge uma catadupa de questões que essa nossa resposta pode implicar:
— A história da criança no lago é uma experiência mental, mas por vezes a realidade confronta-nos com acontecimentos que testam ainda mais as nossas convicções morais. Por isso, Singer relata agora um caso sucedido em Foshan, uma cidade no Sul da China, em que um acidente, para alguns dos seus habitantes, não foi o suficiente para quebrar a rotina do dia-a-dia: uma criança de dois anos, Wang Yue, fugiu do lado da sua mãe e acabou por ser atropelada por uma camioneta. O acidente nada teria de invulgar se não fosse o caso de uma câmara de vigilância ter registado que, depois do atropelamento, enquanto Wang Yue estava ensanguentada no meio da estrada, um total de dezoito pessoas passaram por ela, a pé ou de bicicleta, e nenhuma quebrou a sua rotina do dia-a-dia para a socorrer (esse vídeo tornou-se viral). Quando finalmente uma varredora de rua deu o alarme, Wang Yue já tinha sido atropelada por uma segunda camioneta e viria a falecer no hospital.
— Singer acredita que o leitor, se for como a maioria das pessoas, teria parado para ajudar a criança. Mas lembra-nos que em 2017 morreram 5,4 milhões de crianças antes do seu quinto aniversário, a maioria das quais por causas que se poderiam tratar ou prevenir. Ora, talvez salvar uma dessas vidas custasse mais do que um par de sapatos, mas Singer pergunta: não será possível que ao escolhermos comprar uma série de coisas, das quais não precisamos realmente, em vez de contribuir para uma organização humanitária eficaz, não estamos a deixar morrer uma criança, uma vida que podemos salvar (pp. 4–5)?
Eu costumava pensar que a diferença que fazia no mundo começava e acabava naquilo que fazia na minha profissão como professor. Era esse o meu papel de mudança positiva no mundo: aquilo que conseguiria mudar através do que ensinava e do exemplo que daria aos meus alunos. Mas o argumento que serve de base a este livro foi o início de uma profunda mudança na minha vida.
— Sim, por vezes as nossas intuições morais estão erradas, basta pensar naquilo que noutros tempos ou lugares seria considerado moralmente aceitável (a escravatura, o racismo, o sexismo, etc.), e por isso Peter Singer pensa que é melhor assentarmos essa perspectiva favorável à ajuda, não nas nossas intuições, mas num argumento.
Assim o argumento que nos apresenta é o seguinte:
Primeira premissa: O sofrimento e a morte por falta de alimento, abrigo e cuidados médicos são maus.
Segunda premissa: Se está em meu poder impedir que algo mau aconteça, sem sacrificar nada de importância semelhante, é errado não o fazer.
Terceira premissa: Ao contribuir para organizações humanitárias eficazes posso prevenir o sofrimento e a morte por falta de alimento, abrigo e cuidados médicos, sem sacrificar nada de importância semelhante.
Conclusão: Se não fizer contribuições a organizações humanitárias eficazes estou a fazer algo de errado.
Perante este argumento, se não conseguimos negar alguma das suas premissas, ou a sua validade, não nos sentimos obrigados a agir (pp. 31–32, pp. 19–20)?
— Há normalmente um forte apelo emotivo para acudirmos à criança que se afoga à nossa frente, mas o mesmo não sucede face aos milhares de crianças que também precisam urgentemente da nossa ajuda, mas das quais uma enorme distância nos separa. Daí a importância que Singer dá a um argumento que possa apelar à nossa razão (p. 20). Nota também que uma das formas de aprimorar esse argumento foi ao acentuar a eficácia das organizações humanitárias. No entanto reconhece que este argumento pode ser considerado demasiado exigente (p.23).
Mas sublinha que, para pensarmos de forma ética, basta colocarmo-nos no lugar dos outros, no lugar daqueles que sofrem. Há uma regra de ouro que resume este pensamento e que em geral todos conhecemos, pois tem sido difundida por várias religiões: “Faz aos outros o que gostarias que te fizessem a ti” (p. 32).
— Se reconhecemos este princípio como bom, porque é que não o cumprimos? Se dar é bom, porque não o fazemos?
— As pessoas apresentam uma série de razões para justificarem a sua inacção face àqueles que sofrem na pobreza extrema. Vou apresentar algumas dessas objecções e tu poderias ver se te recordas da forma como Singer lhes responde? Nos casos em que Peter Singer acrescente agora nova informação, ou até em que tenha mudado de ideias, eu refiro a actualização. Pode ser?
Vamos a isso!
— Cada um dá se quiser!
Essa atitude ao pressupor que, por exemplo, ajudar é bom, ou não, em função de cada pessoa que está em posição de o fazer, é uma atitude de relativismo moral. E só percebemos que isso não é assim tão atraente, quando se trata de situações-limite, em que alguém julga aceitável algo que consideramos horrível. Seria o caso de alguém que, por exemplo, decidisse queimar um gato num grelhador por pensar que tem o direito de se divertir assim. Mas esse é também o caso de violadores, racistas, terroristas, etc., pois todos eles consideram aceitável algo que considerámos horrível. Não fazer donativos não é como estes crimes, mas se recusamos o relativismo moral em algumas situações, em coerência, deveríamos recusá-lo em todas (p. 44).
— O dinheiro custou-me muito a ganhar e tenho direito de gastá-lo!
Ter direito de fazer algo não resolve a questão de sabermos o que devemos fazer. Singer, entre outros exemplos, dá estes dois:
Assim, pelo facto de eu ter o direito de gastar o meu dinheiro mesmo em pequenos luxos, se quiser viver eticamente, isso não se sobrepõe ao meu dever de escolher doar uma parte desse dinheiro para ajudar quem mais precisa (p. 47).
— Não lhes fiz mal nenhum, por isso não tenho que os ajudar!
À partida, isso poderia parecer razoável, mas então não teríamos responsabilidades face àqueles que, inocentemente, se encontram em necessidade? Seria então justo acabar com todo o tipo de apoio social aos desempregados, aos doentes e inválidos e negar os cuidados de saúde aos idosos e aos pobres? Se temos essas responsabilidades e se seria injusto não ajudar, porque razão parámos a ajuda na fronteira do nosso país?
Mesmo para quem pensa que só devemos ajudar quem prejudicamos, então ainda assim se poderá considerar que, pelo menos em parte, todos nós prejudicamos os mais pobres do mundo e por isso devemos compensá-los. Para chegar a essa conclusão, embora não seja suficiente pensar na riqueza do mundo como uma tarte repartida desigualmente em que 1% da população mundial detém 45% da riqueza e 64% apenas detêm 2% dessa riqueza, basta pensarmos no modo como esgotámos os recursos naturais, na terra e no mar, ou como, por exemplo, a emissão de gases de efeito de estufa dos países industrializados prejudica muitas das pessoas nos países mais pobres e menos poluentes do mundo. Se aceitamos que quem prejudica os outros deve compensá-los, então estas seriam mais razões para compensarmos os mais pobres (pp. 47–53, pp. 33–38).
— Eu pago os meus impostos e o Estado dá a quem precisa!
Tomemos como exemplo os americanos: estes, na resposta a vários inquéritos sobre a ajuda externa, mostraram acreditar que o seu país ajudava demasiado (pois, em seu ver, essa ajuda ascendia a cerca de 20% do rendimento nacional). E quando os questionaram qual deveria ser então essa ajuda, o resultado mostrou que achavam justo que esta devia ser “reduzida” para 10%. Acontece que na realidade essa ajuda é de apenas 1%. Em 2006 a ajuda oficial como percentagem do rendimento interno bruto dos EUA ficava inclusive abaixo da ajuda fornecida por Portugal (que por sua vez, a par da generalidade dos países desenvolvidos, ficava abaixo da meta acordada já nos anos 70 do século passado) (pp. 53–54). Em 2018, os EUA não estavam em posição muito diferente; estavam a par de Portugal (pp. 38–39).
— A filantropia não passa de um penso rápido dirigido aos sintomas, mas não às causas da pobreza extrema!
Mesmo que se conclua que a única maneira de acabar com a pobreza extrema é através da mudança do sistema da ordem económica mundial, será que isso implica que devemos alocar todos os nossos recursos para que essa mudança aconteça e por isso não devemos fazer donativos para instituições de caridade eficazes que ajudam as pessoas na pobreza extrema? Singer acredita que não. Não sem se responder a uma série de perguntas: Que tipo de mudança? E como obtê-la? E, mais importante, serei eu a pessoa adequada para definir essa mudança e para conseguir implementá-la? Não encontrando estas respostas, será melhor encontrar uma estratégia que apesar de não acabar por completo com a pobreza extrema, sirva para mitigar algum do sofrimento que esta provoca. Afinal de contas, quando não conseguimos curar uma ferida isso não é razão para recusarmos um penso rápido (pp. 42–44).
— Dar dinheiro ou comida às pessoas gera dependência!
Excepto em caso de emergência, dar comida às pessoas, pode de facto tornar as pessoas dependentes, destruir mercados locais, desincentivar a produção de excedentes para venda, etc. Em vez disso seria necessário possibilitar que as pessoas produzissem a sua própria comida, de uma forma sustentável e através do seu próprio trabalho.
Na primeira edição deste livro, Singer pensava de forma semelhante relativamente ao dinheiro. Mas em 2009, um grupo de alunos de Harvard e do MIT decidiu testar essa ideia: o que aconteceria se dessem dinheiro a famílias pobres no Quénia, sem qualquer contrapartida? Uma das expectativas era que gastariam esse dinheiro em álcool, na prostituição e no jogo, mas os resultados foram promissores. Em 2012, os mesmos investigadores fundaram uma organização humanitária, a GiveDirectly, para alargar esse projecto. Avaliando os resultados através de estudos aleatórios controlados (o padrão de excelência do método científico), demonstraram (https://www.odi.org/sites/odi.org.uk/files/resource-documents/11465.pdf) que ao dar dinheiro a famílias pobres se obtinha os seguintes resultados:
O trabalho realizado pela GiveDirectly mudou a visão de Singer relativamente às vantagens de dar dinheiro directamente aos mais pobres (pp. 42–44).
— Se déssemos tudo não podíamos ajudar, nem a nós mesmos!
Colin McGinn, professor de Filosofia na Universidade de Miami, colocou a seguinte questão:
E se pegasse em todas as moedas que já teve e as desse aos pobres em África?... Não teríamos uma economia, nem qualquer capacidade para gerar nova riqueza ou para ajudar fosse quem fosse.
Mas se todos dessem não haveria necessidade de doar “todas as moedas”, pois existe um enorme abismo entre ricos e pobres. E uma percentagem doada para erradicar a pobreza extrema, ajustada ao poder económico de cada um, não só não lesaria a economia de um país como seria, a longo prazo, uma forma de intensificá-la com novos mercados e oportunidades de comércio e investimento geradas pelos 1400 milhões de pessoas que agora estão fora de todo esse sistema de economia global. (pp. 59–61, pp. 49–50)
— Dou aos meus e toda a vida foi assim!
É natural e nada há de errado em nos preocuparmos mais com quem nos está próximo do que com estranhos. Mas se esses estranhos são pessoas que vivem na pobreza extrema, não estaremos em situação de ter de escolher entre os dois, pois a sua situação não é nada semelhante à da nossa família e amigos. Assim, pelo facto de ajudarmos quem nos é mais próximo e de, ao longo dos tempos, os nossos antepassados não terem considerado errado parar essa ajuda nas fronteiras do seu país, não quer dizer que isso seja correcto, demonstra mais o que as pessoas fazem e não o que devem fazer (pp. 61–62).
— Não estaremos apenas a despejar dinheiro por um buraco negro abaixo?
Desde que lançou este livro uma das objecções mais comuns que colocaram a Peter Singer era que já tínhamos dado enormes quantidades de dinheiro a países em desenvolvimento e ainda havia milhões de pessoas na pobreza extrema. Não seria esse um problema impossível de resolver? Essa pergunta ignora alguns dos factos mais importantes dos últimos cinquenta anos. Por exemplo, a proporção de pessoas incapazes de satisfazer as suas necessidades básicas, assim como a proporção de crianças a morrer antes do seu quinto aniversário, são muito provavelmente as mais baixas desde que existimos enquanto espécie. Assim como a esperança de vida nunca esteve tão alta. Por isso a ideia de que não há progresso, é um mito. E como se propagam esses mitos? Veja-se o destaque que se dá nas notícias de todo o mundo ao salvamento de 12 crianças presas numa gruta na Tailândia, enquanto que as 746 vidas salvas, todos os dias, durante os últimos 25 anos, nem sequer chegam às notícias (pp. 53–54).
— Já há demasiadas pessoas!
— Ao viajar para fazer palestras as plateias de todo o mundo alguns desafiam Singer com a questão da sobrepopulação e da exaustão de recursos, o que inevitavelmente levará a um colapso civilizacional. Ora desde o século XVIII que se faz esse tipo de previsões (Malthus) e a verdade é que, desde as últimas previsões, em 1968 (Ehrlich), passámos de uma em cada duas pessoas a confrontar-se com a falta crónica de comida para uma em cada nove pessoas. E apesar da população mundial continuar a crescer, o mundo não está a ficar sem comida que chegue para todos, o problema é que os países ricos encontraram uma maneira de consumir quatro a cinco vezes mais do que aquilo que seria necessário caso se alimentassem directamente das colheitas produzidas em vez de estas servirem para alimentar os animais da pecuária (pp. 55-56).
Quando tento lembrar-me qual foi a primeira vez em que pensei na minha alimentação também como uma decisão ética, é disto que me lembro e após a leitura da Libertação Animal, a decisão tornou-se irreversível. Mas a história que nestes termos mais me impressiona é a de Colin McGinn, que nos conta, no seu livro autobiográfico Como se Faz um Filósofo, que entrou numa livraria, leu umas linhas de um livro e, quando saiu da livraria, já era vegetariano.
— Outra questão que já não parece ser alvo de grande disputa é o facto de que reduzir a pobreza reduz também a fertilidade e que um outro factor determinante para a redução da fertilidade é a educação das meninas. Para além disso, 214 milhões de mulheres em idade reprodutiva gostariam de evitar a gravidez, mas não têm acesso a métodos contraceptivos modernos. Tudo isto são razões, não para parar, mas para ampliar a ajuda, seja contribuindo para organizações eficazes que se ocupam do combate à pobreza extrema, seja para aquelas que se ocupam da educação ou do planeamento familiar (pp. 57–59).
— Como posso saber se o meu donativo ajudará realmente alguém?
— Uma das grandes mudanças desde a primeira edição deste livro foi precisamente na avaliação independente do impacto das intervenções no alívio à pobreza extrema e na avaliação da eficácia das organizações que melhor implementam as intervenções que se demonstrou obterem maior sucesso nesse objetivo. Portanto, os doadores que escolhem essas organizações que foram rigorosamente avaliadas, podem contribuir com a certeza que as pessoas em pobreza extrema estarão a beneficiar da sua ajuda de uma forma altamente eficaz do ponto de vista dos custos (pp. 59–60).
— Como um argumento moral parece não ser suficiente e como ao longo do tempo não fomos fazendo o que considerávamos ser correcto, Peter Singer analisa os estudos realizados que nos explicam o nosso comportamento, para que possamos lidar melhor com este problema. Assim, quando pesamos o egoísmo contra o altruísmo, ainda teremos de considerar vários factores psicológicos dos quais Singer salienta cinco dos mais importantes. Vejamos se te recordas deles.
Vamos lá então!
— (Um) A vítima identificável.
Se vejo o rosto da vítima e sei o seu nome, gastarei muito mais para a salvar do que no caso de uma “vítima estatística”. É isso que têm comprovado os estudos, entre eles, um que deu a oportunidade aos participantes de doarem a uma organização humanitária, dividindo-os em três grupos e fornecendo informação diferente a cada um deles: o grupo 1 foi confrontado com a situação da Rokia, uma menina de sete anos do Malawi, extremamente pobre; o grupo 2 foi confrontado com uma situação de escassez de alimentos que afectava três milhões de crianças também no Malawi; e o grupo 3 que juntava a situação da Rokia à dos outros três milhões de crianças. Assim, verificou-se que a Rokia era mais importante para os doadores do que três milhões de crianças na mesma situação (e por isso recebeu substancialmente mais donativos ― mais do que o dobro), mesmo no caso (e note-se a incongruência) em que a própria Rokia foi apresentada como fazendo parte desses três milhões (o que fez a média de donativos descer cerca de 40% face ao grupo 1) (pp. 67–71, pp. 64–68).
— (Dois) Provincianismo.
Pode acontecer uma catástrofe humanitária do outro lado do mundo (um terramoto, um furacão, um tsunami, etc.) que isso não altera substancialmente o nosso dia-a-dia. Basta pensarmos nas últimas catástrofes de que tivemos notícia, como ficamos comovidos e como, logo de seguida, retomamos a nossa rotina diária — tendo ou não contribuído para ajudar a superar essa situação. Podemos ficar verdadeiramente incomodados com essa nossa indiferença face às necessidades de estranhos, mas a necessidade de sobrevivência da nossa espécie ao longo do tempo acabou por nos desenvolver a intuição de que devemos manifestar preocupação por familiares, ou um pequeno grupo tribal, que possa depender de nós e de quem podemos depender. Ora a generalidade das pessoas que estamos em melhores condições de ajudar, são estranhos para nós. E se a certa altura isso serviu como desculpa para a nossa inércia (uma espécie de ordem divina que se impunha como o inferno na terra para aqueles que não podíamos “servir nem ferir”), o nosso tempo de tecnologias de ponta permite-nos uma solidariedade quase instantânea (pp. 71–74, pp. 68–71).
— (Três) Futilidade.
Normalmente considera-se a ajuda fútil porque a nossa contribuição seria apenas “uma gota no oceano”, num estado de coisas que “será sempre assim” e em que “nunca haverá dinheiro suficiente para salvar todas essas pessoas”. Estudos demonstram que este tipo de atitude faz com que, contraditoriamente, estejamos mais predispostos a salvar a maior proporção e não o maior número de vidas, ou seja, estamos mais dispostos a ajudar numa situação em que se possa salvar 80 pessoas em 100 (80%), do que 200 pessoas em mil (20%), mesmo que no segundo caso sejam salvas mais pessoas pelo mesmo custo (pp. 74–75, pp. 71–72).
— (Quatro) Difusão da responsabilidade.
É também menos provável que eu ajude alguém por quem não me sinta responsável. Ou seja, quando certa responsabilidade se distribui por muitas pessoas, cada uma tende a pensar que a outra poderá fazer aquilo que ela própria não faz e, por outro lado, o facto dos outros não o fazerem também parece justificar que ela não o faça, daí resultando o fenómeno do observador passivo (pp. 75–76, pp. 72–73).
— (Cinco) Sentido de justiça.
Ninguém gosta de pagar pelos outros, por isso, se eu tiver a impressão que só eu é que estou a ajudar, não acho isso justo. É plausível que as nossa intuições morais, como o sentido de justiça, se tenham desenvolvido em função do sucesso das relações cooperativas, pois entre os animais sociais, uma oferta justa sinaliza a aptidão para a cooperação e a rejeição de uma oferta injusta sinaliza que não toleramos algo que nos coloque em desvantagem face aos outros (pp. 76–78, pp. 73–75).
Todos estes comportamentos nos parecem razoáveis, ou pelo menos familiares. Por exemplo, parece-nos razoável salvar a criança do lago, que vemos e podemos acudir de imediato. Mas também reconhecemos que não temos a mesma reacção relativamente aos milhares de pessoas que morrem diariamente vítimas da pobreza extrema. Ainda assim, hoje, os meios tecnológicos e de informação encurtam as distâncias e um factor como o provincianismo não terá cabimento na nossa escala global. Assim como um sentimento de futilidade se torna injustificável, porque se centra nos milhares a que não conseguimos chegar, em vez de se centrar naqueles que de facto podemos salvar – que são pessoas específicas, famílias ou até aldeias. Para essas pessoas que diferença faz se, por causa da difusão da responsabilidade, haveria mais mil milhões de pessoas que as poderiam ajudar e não o fizeram? Para elas o que lhes interessa é que alguém o fez (pp. 82–83, pp. 76–77).
— Singer afirma assim que, contrariamente aos cépticos que duvidam que a razão possa influenciar o carácter ético das nossas acções, um dos fortes motivos para escrever este livro foi precisamente o impacto que este género de trabalho de apelo à razão costuma ter (pp. 78–80).
Para quem, como eu, cresceu em Portugal, quando ainda a televisão era a preto e branco, é bem possível que a cultura de doação que assimilou fosse fruto quase exclusivo de uma religião em que, para além da crença inquestionável do bem da moeda no ofertório da missa, mesmo os outros actos de caridade tinham de levar em conta que a sua ostentação podia quebrar essa magia. Fazer o recado do meu pai e ser o estafeta a colocar a moedinha na mão de um pedinte, bastava pela sensação de calor interior, independentemente do destino seguinte desse dinheiro. Como muitos anos depois um outro pedinte me justificou: “Não é para cerveja… é para uma sopa.” Estava eu então à porta do hospital, esperava para ir visitar o meu pai aí internado. Há muito que não dava esmola a pedintes, mas devastado com a notícia do meu pai estar às portas da morte, fez-me bem o conforto da boa acção. Depois da visita, da janela do autocarro no regresso a casa, quebrou-se a magia: o pedinte, à porta de um tasco, bebia uma cerveja. Jurei para mim mesmo que nunca mais daria esmolas na rua.
— Porque contas isso agora?
A verdade é que nunca me vi como uma pessoa especialmente caridosa e esse episódio fez com que me tornasse demasiado céptico para encarar qualquer tipo de pedido de ajuda sem suspeitar. Com a morte do primeiro estafeta, o segundo já não tinha a quem recorrer.
— Mas o pai não foi o primeiro estafeta. Olha a avó, quando já era muito velhinha ainda acolheu uma cadelinha abandonada, que viria a morrer ao dar à luz. Lembras-te? E tinhas mais de onde colher o testemunho. A mãe, que nunca o ostentou, mas as cartas de pedidos de ajuda, ainda depois dela morrer, testemunhavam a ajuda regular a crianças em África.
— Repara, por compreender os padrões do comportamento humano que normalmente se opõem à doação, Singer questiona: o que poderá ser feito para criar uma nova cultura de doação que nos torne mais aptos a ajudar os pobres que estão longe? Eis algumas das possíveis respostas (vê se te lembras):
— Falar abertamente
Tendo a percepção que os outros não ajudam, também não sentiremos motivação para ajudar, mas se, pelo contrário, tivermos a percepção que os outros ajudam, também nós sentiremos mais motivação para o fazer. Apesar da nossa tradição judaico-cristã nos recomendar a reserva quanto a estes assuntos, e havendo até a ideia que, quem não cumpre essa reserva, estará a gabar-se e a até a ser hipócrita (pois pode estar a ajudar por motivos falsos), devo questionar-me: será que os motivos que possam estar por trás da doação interessam realmente quando o dinheiro vai para uma boa causa? Será que esses motivos interessam mesmo quando as doações que são feitas publicamente podem encorajar outros a ajudar também (pp. 88–90)?
— A força dos números: compromissos e comunidades de doação.
— Formar comunidades em que os seus membros assumem compromissos de doação tem sido uma boa forma de divulgar como é fácil melhorar a vida dos outros e também de fazer com que seja mais provável que os membros dessa comunidade cumpram o compromisso que assumiram. Assim, compromissos de doação e a formação de uma comunidade como a da Giving What We Can, entre outras, está na origem do movimento de altruísmo eficaz. E 10 anos depois de Toby Ord ter criado a GWWC, esta já tem mais de 4 000 membros que, ao doarem pelo menos 10% do seu rendimento a organizações humanitárias eficazes, reportam donativos de quase 150 milhões de dólares e, tratando-se de um compromisso até ao fim das suas carreiras, poderão vir a doar 1,5 mil milhões de dólares (pp. 85–86).
— Já agora, ficas a saber que em Novembro de 2013, ainda não chegavam aos 400 membros quando te tornaste o primeiro membro português da GWWC.
Desde que li este livro, assumi o compromisso da The Life You Can Save, mas esse de 10% não fazia ideia!
— E é impressionante ver nessa lista nomes tão ilustres como Derek Parfit, que nos deixou também no seu importante legado filosófico o seu interesse pelo altruísmo eficaz.
— Um pequeno empurrão para a escolha certa
Embora países como a Alemanha e a Áustria sejam culturalmente muito próximos, a Alemanha tem uma taxa de doadores de órgãos muito inferior à da Áustria (12%, em contraste com quase 100%). Será este o resultado de pessoas muito diferentes em cada país? Não, trata-se simplesmente da diferença de sistemas de doação. Na Alemanha quem quer ser doador deve registar-se e na Áustria todos são potenciais doadores a não ser que se manifestem em contrário. Portanto, apesar de serem dois sistemas de doação perfeitamente legítimos, um dá resultados muito melhores do que o outro — salvando assim milhares de vidas (pp. 95–96).
Do mesmo modo, adoptando este sistema em empresas, escolas, etc. se fosse deduzido, por exemplo, 1% aos rendimentos de cada funcionário (a não ser que este declarasse expressamente não querer fazer parte desse sistema) e se o dinheiro fosse doado directamente a uma organização que se ocupasse a combater a pobreza extrema, os resultados, por comparação com o exemplo anterior, poderiam ser surpreendentes — este seria uma pequeno empurrão para a melhor decisão (p. 98).
— Há ainda uma série de estratégias que facilitam a criação de uma nova cultura de doação e que ao mesmo tempo podem reduzir certas tendências que temos e que “desafiam a norma do interesse próprio” (pp. 104–110), como “dar um rosto aos necessitados” (pp. 94–96) pois os doadores são mais generosos quando sentem uma ligação com quem beneficia da sua ajuda; ou usar as redes sociais (pp. 93–94) para disseminar essa cultura de doação eficaz; ou pensar na próxima geração (pp. 103–104) se queremos de facto implementar uma cultura de doação duradoura; e talvez assim venhamos a incluir nos nossos próprios interesses um sentido de realização e satisfação pessoal que resulta de ajudar os outros.
— Se eu ficasse a saber que a loja A vende por 300€ o telemóvel que eu quero comprar, mas que a loja B vende exactamente o mesmo tipo de telemóvel por 30€, tudo o resto sendo igual, o que me importa a mim se a loja B tem custos administrativos superiores? Tanto quanto sei, a loja B até pode ter um administrador genial, muito bem pago precisamente porque consegue oferecer esse tipo de preços e ainda gerar o mesmo lucro da loja A. Deveria, portanto, escolher a loja B, não te parece?
Isso parece óbvio… mas porque é que isso vem agora ao caso?
— E por que haveria o mundo filantrópico de ser diferente quanto a esse aspecto? Não deveria eu também preferir a organização humanitária B que é 10 ou 100 vezes mais custo-eficaz do que a organização A no que diz respeito a salvar vidas, apesar de B ter custos de administração superiores? Uso este exemplo porque se refere a um dos mitos do mundo filantrópico que Singer pretende expor. Pois apesar de muito se ter propagado a ideia dos baixos custos administrativos como critério de excelência na filantropia, esta não é afinal a métrica mais importante, mas sim o custo-eficácia naquilo que cada organização está a fazer para de facto melhorar o mundo. E sob esse último aspecto, ao comparar diferentes organizações humanitárias, chega-se à conclusão que umas são centenas, ou até milhares de vezes mais eficazes do que outras — e note-se que não se está sequer a comparar organizações fraudulentas com genuínas (pp. 113–118).
Mas muitas vezes surgem essas dúvidas, que até inibem a acção: Quais são as organizações humanitárias genuínas? E dessas quais são as mais eficazes?
— Bom, não te lembras da história da GiveWell?
Sim, essas foram precisamente as dúvidas que surgiram na mente de dois jovens americanos de vinte e poucos anos, Holden Karnofsky e Elie Hassenfeld, quando, por volta de 2006, decidiram fazer doações, pois os seus rendimentos ultrapassavam em muito os seus gastos normais (p. 109).
— Pois, e cedo descobriram que isso não era assim tão simples. Era sua intenção fazerem aplicações bem-sucedidas, assim como aquelas que os tornaram investidores de sucesso, mas ficaram surpreendidos por não conseguirem obter a informação que pretendiam. E o mais extraordinário era que, na generalidade dos casos, as organizações nem sequer possuíam essa informação (p. 114).
Então interrogaram-se: como seria possível que houvesse doações de centenas de milhares de milhões de dólares sem qualquer indício de que esse dinheiro produzia algum bem? Foi assim que, em 2007, fundaram a GiveWell, uma organização sem fins lucrativos dedicada a aumentar a transparência e a eficácia das instituições de ajuda. Percebendo que só a tempo inteiro é que poderiam cumprir essa missão, abandonaram o seu emprego e dedicaram-se desde aí a dar resposta a questões como: será que um pequeno donativo pode de facto salvar a vida a uma pessoa? Se pode, quais são as organizações que o fazem melhor (pp.109–115)?
— Bom, sob esse aspecto, é difícil rivalizar com as campanhas em larga escala da Organização Mundial de Saúde, que desde a sua fundação pelas Nações Unidas, em 1948, já salvou milhões de vidas no combate a doenças como a varíola, a malária, o sarampo, etc. Mas mesmo nesse caso podemos perguntar até que ponto os seus recursos foram usados de forma eficiente, isto é, quanto custou salvarem uma vida? No seu esforço para atraírem doadores por vezes as organizações divulgam números que sugerem que podemos salvar vidas por quantias pequeníssimas, mas se assim fosse o trabalho da GiveWell estaria muito facilitado. A verdade, no entanto, é que têm sido encontradas lacunas nestas informações. Ainda assim, tomando vários factores em conta, em 2006 foi sugerido que os programas da OMS no combate a doenças como a malária, diarreia, sarampo, etc. conseguiriam salvar uma vida por um valor aproximado de trezentos dólares.
— A esse propósito Singer refere então a organização que fundou, a The Life You Can Save, que retira muito do trabalho da GiveWell para fazer as suas recomendações (p.122), o que lhe permite também disponibilizar uma calculadora de impacto em que se pode verificar o alcance de cada donativo em cada uma das suas organizações recomendadas (p.133).
Mas então quais são essas organizações recomendadas e que foram avaliadas como sendo as melhores do mundo? E quanto custa salvar uma vida com as suas intervenções? E o que fazem? E onde?
— Bem, aqui estão alguns dos números mais actualizados:
Face aos valores que algumas organizações promovem, mesmo que não se provem ser exactos, estes valores parecem bastante elevados.
— Para se perceber de que forma é que estes números são de facto extraordinários devemos compará-los com as quantias gastas para salvar uma vida nos países ricos. Um estudo realizado nos EUA, que avaliou mais de quinhentas intervenções que salvam vidas, chegou ao valor médio de dois milhões de dólares por cada vida salva. Outro exemplo é o caso das decisões que justificam tomar determinadas medidas que custam dinheiro, mas que podem salvar vidas (p. ex. obras nas estradas, redução da poluição, etc.). Nesses casos as agências governamentais dos EUA tentam determinar o valor da vida humana. Ora esses números andam à volta de dez milhões de dólares ― seja por parte da Agência de Proteção Ambiental dos EUA, seja pelo Departamento Federal dos Transportes (p. 136).
Bom, face a esses valores as intervenções das organizações recomendadas pela The Life You Can Save apresentam-se como uma aplicação do dinheiro mais vantajosa na ordem dos milhares.
Embora logo no início do livro Peter Singer aborde algumas das objecções mais comuns à doação, há de facto críticas mais sérias à ajuda externa e uma das mais contundentes é a de William Easterly, um renomado economista que chegou a afirmar o seguinte:
O Ocidente gastou 2,3 biliões de dólares nos últimos cinquenta anos e ainda não conseguiu fazer chegar medicamentos de doze cêntimos às crianças para impedir metade das mortes por malária… É uma tragédia que tanta compaixão bem-intencionada não tenha produzido estes resultados para as pessoas necessitadas. (in “The White Man’s Burden”, 2006)
Afirmações deste género dão a entender que o Ocidente já gastou enormes quantias em ajuda externa, mas Singer propõe uma análise que mostra não ser esse o caso, ora vejamos:
Agora essa ajuda já não parece tão grande, pois não?
— De facto, não.
Mas, mesmo assim, Peter Singer entende que esses trinta cêntimos por cada cem dólares são um exagero grosseiro, pois as prioridades na ajuda externa são de ordem política ou de defesa. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, o Iraque (por causa do seu papel na guerra contra o terrorismo, e não por causa da sua pobreza) em 2007 recebeu quase 30% do total dessa ajuda oficial. Enquanto que os dez países mais pobres (todos juntos) receberam um total de 5%. Portanto, essa ajuda ao longo dos cinquenta anos iria resumir-se a menos de um quarto dos sessenta dólares por ano e, mesmo que fosse a quantia total, isso equivale ao que podemos gastar apenas numa saída à noite (pp. 137–142).
— Em 2019, Singer sublinha que, embora tenhamos a aspiração de acabar com a pobreza extrema nos próximos onze anos, gastamos três vezes mais em cosméticos (532 mil milhões de dólares) do que os governos que elegemos gastaram para acabar com a pobreza extrema (170 mil milhões de dólares)(p.138).
— E ainda relativamente aos números de Easterly, Singer refere o raciocínio de William MacAskill, um dos maiores promotores do altruísmo eficaz: dos exemplos mais impressionantes daquilo que a ajuda externa pode fazer, vê-se no caso da erradicação da varíola, uma doença que ao longo de quase três mil anos foi a praga da humanidade (quase um em cada três infectados morria em grande sofrimento e os sobreviventes podiam ficar cegos ou desfigurados). Em 1967 a varíola matava dois milhões de pessoas espalhadas por 43 países no mundo. Dez anos depois, estava completamente erradicada. Isso poupou a vida a um número cinco vezes superior a todas as pessoas que morreram em todas as guerras, atrocidades e actos de terrorismo desde os anos 1970 até hoje. Daí que, se os 2,3 biliões de dólares citados por Easterly tivessem sido usados exclusivamente para erradicar a varíola, isso daria 60 milhões de vidas salvas a um custo de quarenta mil dólares cada uma. Ora, apesar de não estar a par das melhores intervenções de hoje, face aos quase dez milhões que pode custar salvar uma vida no mundo ocidental, Singer entende que ainda assim se pode considerar que essa ajuda é uma pechincha (pp.143–144).
— Neste livro Singer fala sobre uma série de pessoas cujos exemplos de altruísmo são realmente extraordinários. E, claro, no livro que deu nome à sua organização, The Life You Can Save, não poderia deixar de mencionar Charlie Bresler: um empresário que decidiu deixar o mundo dos negócios, pois apesar de ter sido aí muito bem sucedido, a vantagem desse percurso foi estar agora em condições para fazer uma proposta a Peter Singer que este não podia recusar: transformar o projecto do livro numa organização. E mais, financiá-la com o seu próprio dinheiro (p. 60).
E o que o levou a fazer isso?
— Foi ter lido este livro.
— E no teu caso, foi uma das pessoas que mais apoiou a ideia de combinares a pintura com o altruísmo.
Mas eu deixei de pintar!
— Bom, então vais ter uma surpresa!
Mas... como é que ele me conhece?
— Zé, tu és voluntário da The Life You Can Save!
Oh!
— Mas continuemos a nossa conversa… que é sobre o livro.
Está bem. Um desses exemplos de altruísmo que mais me impressionou foi o da abnegação de Zell Kravinsky. Ora este, quanto às suas obrigações, foi atormentado pelo dilema de pesar as necessidades dos seus próprios filhos, e estas se sobreporem ou não, às necessidades de estranhos em extremas dificuldades ou sofrimento. Kravinsky foi professor numa escola pública com problemas sociais, mas conseguiu fazer investimentos imobiliários e acumular bens no valor de 45 milhões de dólares. Depois de ter aplicado algum dinheiro, pensando na sua família, começou a doar quase tudo, dinheiro, tempo e energia, mas não foi o suficiente. Assim, contra a vontade da sua mulher, chegou ao ponto de doar a um estranho um dos seus próprios rins. Para quem possa ficar perturbado com a abnegação de Kravinsky, este diz que as hipóteses de morrer em resultado de uma operação desse tipo são cerca de uma em 4 mil, portanto, caso se recusasse a doar o seu rim (a alguém que de outra forma morreria), estaria a valorizar a sua própria vida 4 mil vezes mais do que a dessa pessoa – para si, essa diferença entre o valor das duas vidas, é “obscena” (pp. 166–168, pp.172–173).
— Kravinsky, mesmo amando os seus filhos, não pensa que a vida destes valha o mesmo que milhares de vidas dos filhos de estranhos. Assim, Singer considera que o facto de ser aceitável que alguém satisfaça as necessidades básicas dos seus filhos antes de satisfazer as necessidades de estranhos, não significa que seja correcto proporcionar luxos aos seus filhos antes de tomar em consideração as necessidades básicas de outros (p. 177, p. 183).
Mas qual deveria ser o critério para essa ajuda? E isso não seria possível só para os mais ricos?
— Se considerarmos que uma pessoa é rica tomando como padrão o facto de viver com um rendimento acima da média de Portugal, então esses quase mil milhões de pessoas no mundo estão em condições de tirar da pobreza extrema quase todos os que vivem abaixo desse limite de 1,90 dólares por dia. Pois para perfazer os 130 mil milhões de dólares necessários (anualmente) para atingir esse objectivo (um valor obtido dobrando as estimativas do The Economist), bastaria que cada uma dessas pessoas desse 130 dólares. Mas entre essas pessoas ricas, por padrões mundiais, algumas vivem no limiar da média de Portugal e outras são bilionárias, portanto Singer defende que seria mais justo que estes ajudassem de acordo com uma tabela progressiva, aumentando a percentagem de ajuda de acordo com os seus bens e rendimentos (pp. 189–191).
Ainda assim Singer sabe que muitas pessoas não ajudam e desse modo o objectivo de retirar as pessoas da pobreza extrema ficaria comprometido, por isso pergunta: Será então que devemos fazer apenas aquilo que é justo? E para aqueles que defendem “aquilo que é justo” até às últimas consequências, Singer relembra o famoso exemplo de quem não acha justo mentir e por isso se recusa a fazê-lo, mesmo que isso signifique a morte do seu melhor amigo. Singer concorda que normalmente devemos defender o que é justo e verdadeiro, mas há alturas em que fazê-lo é errado. Para tornar isso mais claro usa uma variação da história da criança do lago. Mas agora em vez de uma criança a afogar-se são dez e são também dez adultos a passar pelo lago. Depois de um deles ter feito a sua obrigação, ao chegar à margem com a criança que salvou, repara que ainda estão cinco crianças a afogar-se porque houve quem seguisse o seu caminho sem as acudir. Singer pergunta então: tendo feito aquilo que era justo, ou seja, salvar a criança que lhe correspondia, deveria agora parar, enquanto as outras cinco morrem afogadas? Ora, em seu entender, isso corresponde a questionar se, quando os outros não estão a fazer aquilo que é justo, isso será uma razão suficiente para que deixemos uma criança morrer quando a poderíamos salvar facilmente (pp. 184–185, pp. 191–192).
Mas ajudar o máximo possível e, ainda por cima, ajudar no lugar de quem não ajuda, não se torna demasiado exigente?
— Para evitar o risco de afastar as pessoas por se definir um critério demasiado exigente, Peter Singer acredita que se deve defender um patamar de doação que produza o maior total possível, gerando assim as melhores consequências. Assim sendo, o objectivo proposto parte dos 5% do rendimento anual dos que estão financeiramente confortáveis e atinge bastante mais para os muito ricos. O cumprimento deste critério seria um primeiro passo no sentido de uma nova cultura de doação como parte essencial de uma vida boa (pp. 194–195, pp.198–200).
Mas afinal quanto devemos dar?
— Para se perceber então em que se traduz esse novo critério de doação talvez seja mais simples usar um exemplo prático. Vou usar o meu caso: um professor contratado que em média tem ganho cerca de 15 mil Euros por ano (estou a considerar o rendimento bruto). Ora estando isso abaixo do rendimento médio de Portugal, estaria, portanto, abaixo do padrão de riqueza que Singer estabelece para o início da tabela progressiva, ou seja, abaixo do compromisso de ajuda de 5% do rendimento. Mas repara que ainda assim o salário de um professor contratado coloca-me nos 6% mais ricos do mundo. E para se perceber o grau de exigência desse compromisso de ajuda, veja-se aquilo que eu teria de abdicar, usando um cálculo aproximado que fiz em tempos:
Pois, dificilmente poderia defender que aquele café a mais que me impedia de dormir (já para não falar no álcool, ou no tabaco) seria mais importante para mim do que a vida que eu podia salvar.
— Singer lembra que durante milénios os sábios associaram a realização pessoal à prática do bem. Desde Buda, que dizia aos seus seguidores: “Concentrem-se em fazer o bem. Façam-no uma vez após outra e ficarão cheios de alegria”; Sócrates e Platão ensinaram que o homem justo é feliz; hoje em dia associamos um “epicurista” aos prazeres mundanos, mas até Epicuro defendia que “É impossível viver uma vida boa, sem viver também de modo sensato, nobre e justo.” E o que os estudos têm revelado está em linha com esta sabedoria dos antigos. Ou seja, a ligação entre o acto de dar e a felicidade é clara. E o que parece demonstrar a direcção da causalidade são as observações feitas àquilo que acontece no cérebro de quem faz coisas boas (pp. 217–218, pp. 208–211).
Singer sugere ainda que, se o argumento moral foi convincente, mas caso não se sinta motivado para agir, em vez de nos preocuparmos em fazer o melhor possível, devemos pensar em melhorar o nosso “recorde pessoal”, fazendo mais do que já se fazia ― e adianta que talvez isso seja mais gratificante do que se possa imaginar (pp. 219–220, p. 211).
— Dá ainda o exemplo do seu amigo Henry Spira, um conhecido activista dos direitos dos animais. Quando Singer o acompanhava na parte final de uma doença terminal, numa das muitas conversas, perguntou-lhe o que o motivara a trabalhar toda a vida em prol dos outros e Henry respondeu:
Creio que, basicamente, queremos sentir que a nossa vida foi algo mais do que apenas consumir produtos e produzir lixo. Penso que uma pessoa gosta de olhar para trás e dizer que fez o melhor que pôde para tornar isto um lugar melhor para os outros. Podes ver as coisas desta perspectiva: que maior motivação pode haver que fazer tudo o que se pode para reduzir a dor e o sofrimento?” (p. 220, pp. 211–212).
E a partir de agora? O que é que cada um de nós poderá fazer?
— Peter Singer admite que no início do livro o leitor pensou “Sim, eu saltaria para o lago para salvar essa criança a afogar-se” e espera que por agora, no final do livro, já esteja convencido de que, ao fazer donativos para organizações eficazes, terá a oportunidade de atingir um resultado semelhante. Por isso, apela para que, depois de fechar o livro, o leitor não passe ao largo daqueles a quem a sua ajuda pode ser a diferença entre a vida e a morte.
— Termina assim sugerindo que se junte a ele e a todos os que estão a fazer essa diferença, podendo começar com pelo menos um destes passos que encontra no site da The Life You Can Save:
— Singer acredita que depois de se ter feito essa diferença na vida das pessoas que estão na pobreza extrema, há razões para que se sinta feliz por fazer parte da solução.
— Se compararmos as duas edições, esta e a que foi escrita há dez anos, poderia dizer-se que se mantém quase na integra a estrutura e o núcleo das ideias da edição original. É muito pouco aquilo que já não aparece, mas aquilo que mudou, seja relativamente à opinião de Singer, seja porque a realidade provou ser diferente das expectativas iniciais, seja ainda, e sobretudo, naquilo que excedeu essas expectativas, veio acrescentar mais cerca de um terço à dimensão da primeira edição. Essas mudanças por si só já justificariam uma edição comemorativa do décimo aniversário do lançamento, mas para Singer um dos motivos mais fortes é o facto do livro ter já inspirado muitas pessoas a modificar o seu comportamento face à ajuda humanitária. Pessoas como Cari Tuna que após a leitura deste livro, a par do seu marido, Dustin Moskovitz (co-fundador do Facebook e da Asana), doarem milhares de milhões de dólares para que, por exemplo, a GiveWell faça investigações que possam responder com maior clareza à questão: como podemos fazer o maior bem (pp. 59, 121)? Mas mesmo aquilo que Singer considera ser o maior bem que podemos fazer, já atingiu a escala de um movimento mundial (também com representação em Portugal e no Brasil e que se concentra em causas que vão além do âmbito deste livro) e com a criação de organizações, algumas que num espaço de menos de 10 anos, já granjearam uma reputação e um impacto substanciais. Pois nem todas as organizações humanitárias convertem cada dólar gasto em onze dólares aplicados nas intervenções consideradas mais custo-eficazes para erradicar a pobreza extrema — como acontece no caso da própria organização que este livro gerou. E para ampliar ainda mais esse impacto, será certamente inédito o caso de um autor que compra os direitos do seu livro à editora que o vende, para poder oferecê-lo gratuitamente, e poder assim chegar a mais gente. E tendo em vista o que se passou nestes últimos 10 anos, isso parece ser motivo para optimismo. Não te parece?
Há boas razões para acreditar que sim. Mas olha, não queria esquecer-me desta conversa, pois receio que não venha a estar à altura.
— É possível que mesmo sem te lembrares desta conversa sejas, no íntimo, aquele tipo de pessoa que gostarias que servisse de exemplo para ti mesmo quando eras mais jovem.
Sim, mas talvez isso não seja um desafio suficiente, talvez fosse melhor vir a ser um bom exemplo para os meus filhos e os filhos dos meus familiares e amigos. Ou ainda, para os filhos de estranhos.
— Bom, se é para colocar um desafio, então alguém que tivesse o altruísmo eficaz como referência, talvez esperasse que fossem os filhos de estranhos nascidos num futuro distante, a olhar para trás e, mesmo que não vissem em tudo o que fizeste um exemplo a seguir, pelo menos não se sentissem demasiado envergonhados. Isto partindo do princípio que o padrão poderá vir a ser, olhar em completo choque para o comportamento da generalidade das pessoas de hoje em dia.
Não te parece que o envolvimento de mais gente seria como caminhar para uma aurora cor-de-rosa?
— Ao longo de oito anos ofereci este livro a quase quarenta pessoas com a ideia de as confrontar com um dos maiores problemas da humanidade: como acabar com a pobreza extrema? Hoje ofereço este livro com a convicção de estar a oferecer-lhes das melhores soluções disponíveis neste momento para resolver esse problema, tendo a esperança que se juntem a todos aqueles que dão grande importância à vida que podemos salvar.
Parece-te então que essa é a nossa obrigação?
— Bom, nunca senti grande necessidade de levar essa questão da obrigação até a uma resposta definitiva que motivasse as minhas acções. Pois à partida parece-me quase tão estranho alguém que ajuda apenas porque chegou à conclusão que é sua obrigação fazê-lo, como quem não ajuda apenas porque chegou à conclusão oposta. Mesmo que a conclusão oposta seja a mais plausível, ainda assim ajudar é uma coisa boa em si, e sendo tão fácil (para a generalidade das pessoas nos países desenvolvidos), e sendo o impacto tão grande (dado a eficácia de certas intervenções), não o fazer só porque se chegou à conclusão que não é nossa obrigação, parece omitir o mesmo que omite quem o faz exclusivamente por obrigação: a compaixão. Percebo que isso seja mais do domínio da emoção do que da razão, mas parece-me uma razão suficientemente boa agir de modo a dar azo a certas emoções positivas centradas no benefício dos outros e do mundo, pois isso tende a ser também o que é melhor para nós. E fazê-lo com base na razão parece combinar o melhor dos dois mundos.
Nunca tinha pensado nisso assim. Mas não te parece que uma insistência no custo-eficácia das organizações, nos métodos de prova do impacto das intervenções e uma obsessão pelos números, não dará uma imagem fria e calculista do altruísmo eficaz?
— Isso faz-me lembrar a primeira vez que cheguei ao fim do ano e fiz a conta, fiquei surpreendido: os meus donativos para a The Against Malaria Foundation serviriam para proteger 954 pessoas dessa doença mortal. O número era tão grande que era para mim difícil compreender: como é que uma pessoa comum, que não é médico, enfermeiro, bombeiro, nem nada desse género, conseguia ter esse impacto nas vidas de 954 pessoas apenas num ano? Lembro-me de ter saído à rua e continuava a pensar como esse número era quase irreal. O que significaria essa ajuda para cada uma dessas 954 pessoas que nunca vi? No preciso momento em que ia a atravessar a rua, esse número surgiu-me na cabeça… porque é que ainda me lembro? Por que nesse preciso momento estiquei o braço e impedi uma pessoa de ser atropelada por um autocarro, pensei 954… 955.