O filme Matrix apresenta-nos uma versão de uma velha fábula filosófica: um cérebro numa cuba. Um cérebro sem corpo flutua numa cuba que por sua vez está no laboratório de um cientista. O cientista encontrou maneira do cérebro ser estimulado com o mesmo tipo de inputs que um cérebro normal costuma receber quando está num corpo. Para se conseguir isto, o cérebro na cuba está ligado a uma gigante simulação do mundo. A simulação determina então quais são os inputs que o cérebro recebe. Por sua vez, quando o cérebro produz outputs estes são enviados para a simulação. O estado de funcionamento deste cérebro é igual ao de um cérebro normal, apesar de não estar num corpo. Da perspectiva deste cérebro as coisas são muito semelhantes àquilo que parecem a mim e a si.
Mas parece que este cérebro está completamente enganado. Parece que tem crenças falsas sobre tudo. Acredita que tem um corpo, quando afinal não tem. Acredita que está lá fora ao Sol, quando afinal está num laboratório escuro. Acredita que está num determinado sítio, quando, de facto, pode estar noutro completamente diferente. Talvez pense que está em Tucson, quando afinal está na Austrália ou mesmo no espaço sideral.
A situação do Neo no início do filme Matrix é similar a esta. Ele pensa que vive numa determinada cidade, pensa que tem cabelo, pensa que vive em 1999, e pensa também que está Sol lá fora. Mas, na realidade, flutua no espaço, não tem cabelo, o ano em que está é aproximadamente 2199, e o seu mundo foi arrasado pela guerra. Há contudo algumas diferenças entre este cenário do Neo e o do cérebro numa cuba exposto inicialmente: o cérebro do Neo está de facto num corpo, e a simulação é controlada por máquinas e não por um cientista. Mas os detalhes essenciais são bastante idênticos em ambos os casos. Efectivamente, Neo é um cérebro numa cuba.
Vamos supor que uma matrix (com “m” minúsculo) é um certo tipo de simulação computacional artificialmente gerada de um mundo. Deste modo, a Matrix do filme é um possível exemplo de uma matrix. Vamos também supor que alguém está incubado, ou que está dentro de uma matrix, desde que esse alguém tenha um sistema cognitivo que receba inputs de, e envie outputs para, uma matrix. Neste caso, tanto o cérebro de que falávamos no início como o próprio Neo estão incubados.
Podemos supor que uma matrix pode simular a [total constituição] física de um mundo, até ao mais ínfimo pormenor, ou partícula, numa sequência espáciotemporal. (Adiante veremos como esta configuração do mundo pode variar.) Nesta situação, um ser incubado é associado a um corpo particular simulado. É também estabelecida uma ligação que permita que sempre que o seu corpo [simulado] receba inputs sensoriais da simulação o sistema cognitivo incubado receba inputs sensoriais do mesmo tipo. Paralelamente, a dita ligação permite que de cada vez que o sistema cognitivo incubado produz outputs estes sejam enviados para os órgãos motores do corpo simulado que está na simulação.
Quando se levanta a possibilidade de uma matrix surge imediatamente uma questão. Como posso eu saber que eu não estou numa matrix? Afinal, posso muito bem ser um cérebro numa cuba que tem exactamente a mesma constituição que o meu próprio cérebro; esse cérebro pode estar ligado a uma matrix, e, por isso, pode ter experiências indistinguíveis das que tenho neste momento. Do interior [da matrix] não há forma segura de afirmar que não sou de facto um cérebro numa cuba. Assim, não podemos saber de certeza se não estamos numa matrix.
Vamos agora chamar à hipótese de que eu estou numa matrix, e sempre estive numa matrix, a Hipótese matrix. A Hipótese matrix afirma que eu estou, e sempre estive, incubado. Todavia, isto não é rigorosamente equivalente à hipótese de que eu estou na matrix, porque a matrix [do filme] é apenas uma versão específica de uma matrix. De momento vou ignorar algumas complicações que são específicas da matrix apresentada no filme, tal como por exemplo a possibilidade de as pessoas poderem por vezes passar do mundo simulado para o real e inversamente. Colocando estas questões à parte, podemos pensar na Hipótese matrix como uma maneira de afirmar que eu estou no mesmo tipo de situação que pessoas que sempre estiveram numa matrix.
Devemos ponderar Hipótese matrix sériamente, bem como considerá-la uma forte possibilidade. Tal como Nick Bostrom sugeriu, não está fora de questão que na história do universo haja tecnologia que permita a certos seres criar simulações computorizadas de mundos. Pode até haver um grande número de tais simulações, por oposição a apenas um mundo real. Se é este o caso, pode muito bem acontecer que haja muitos mais seres que estão numa matrix do que aqueles que não estão. Perante esta possibilidade, podemos até inferir que é bastante mais provável estarmos numa matrix do que não estarmos. Independentemente deste raciocínio estar certo ou errado, parece realmente que não podemos estar certos que não estamos de facto numa matrix.
Sérias consequências parecem seguir-se do que foi dito. Por exemplo, a minha contraparte incubada parece estar a ser massivamente enganada. Pensa que está em Tucson; pensa que está sentada a escrever um artigo; pensa que tem um corpo. Mas, face ao que se disse, todas estas crenças são falsas. Da mesma maneira, parece que, se eu estou incubado, as minhas próprias crenças são falsas. Eu não estou realmente sentado a escrever um artigo, e eu posso mesmo não ter um corpo. Assim, se eu não sei que eu não estou realmente incubado, então eu também não sei se estou em Tucson, ou se estou sentado em frente à minha secretária a escrever um artigo, ou sequer se tenho um corpo.
A Hipótese matrix ameaça pôr em causa quase tudo aquilo que eu julgo saber. Parece uma Hipótese céptica: uma hipótese que eu não posso excluir, e uma hipótese que poderia falsificar grande parte das minhas crenças se elas fossem verdadeiras. Quando se nos apresenta uma hipótese céptica desta natureza parece que nenhumas das nossas crenças podem ser consideradas conhecimento genuíno. Claro que as minhas crenças podem eventualmente ser verdadeiras — pois posso ser alguém com sorte e não estar realmente incubado —, mas não posso excluir definitivamente a possibilidade de que elas sejam falsas. A admissão de uma hipótese céptica conduz ao cepticismo no que respeita as essas crenças: eu acredito em certas coisas, mas não as sei realmente.
Resumindo o raciocínio: eu não sei se não estou numa matrix. Se estou numa matrix, então provavelmente não estou em Tucson. Assim, se eu não sei se não estou numa matrix, então também não sei se estou em Tucson. O mesmo se aplica para quase tudo que eu julgo saber acerca do mundo exterior.
Esta é a maneira normal de pensarmos o cenário da cuba. Parece que esta visão do problema é também adoptada pelos criadores do filme matrix. Na caixa do DVD pode ler-se o seguinte:
Percepção: A rotina de todos os dias no mundo é real.
Realidade: O mundo é uma ilusão sofisticada, um embuste forjado por máquinas maximamente poderosas que nos controlam. Whoa!
Eu penso que esta perspectiva não é inteiramente correcta. Julgo que, mesmo que eu esteja numa matrix, o meu mundo é perfeitamente real. Um cérebro que esteja numa cuba não está completamente iludido (desde que tenha estado sempre na cuba). O Neo não tem crenças massivamente falsas acerca do mundo exterior. Em vez disso, os seres que estão incubados têm bastantes crenças correctas acerca do seu mundo. Se for assim, então a Hipótese matrix não é uma hipótese céptica, e a sua eventual possibilidade não invalida tudo o que eu penso saber.
Houve filósofos que defenderam este tipo de teoria no passado. George Berkeley, um filósofo do século XVIII, defendeu que a aparência é a realidade. (Recordemos as palavras de Morpheus no filme: “O que é o real? Como defines o real? Se estamos a referir-nos àquilo que podes sentir, ou àquilo que podes cheirar, ou ainda àquilo que podes saborear ou ver, então o real é simplesmente um conjunto de impulsos eléctricos interpretados pelo teu cérebro”.) Se isto está correcto, então o mundo percepcionado por seres que estão incubados é um mundo perfeitamente real: eles têm todas as suas percepções correctas, e, assim, o que aparece é a realidade. Desta perspectiva, mesmo seres que estão incubados têm crenças verdadeiras acerca do mundo.
Dei comigo recentemente a adoptar uma conclusão parecida, embora por razões manifestamente diferentes. Não julgo que a perspectiva segundo a qual o que aparece é a realidade seja plausível, e portanto não apoio o raciocínio de Berkeley. E, até há pouco tempo, parecia-me manifestamente óbvio que os cérebros em cubas teriam de ter crenças massivamente falsas. Mas agora penso que há uma linha de argumentação que mostra que essa teoria está errada.
Ainda penso que não posso excluir a hipótese de que estou numa matrix. Mas também penso que, mesmo que eu esteja neste momento numa matrix, eu ainda estou em Tucson, na minha secretária, e por aí adiante. Deste modo, a hipótese de que estou numa matrix não seria mais uma hipótese céptica. O mesmo vale para o caso do Neo. No início do filme ele pensa “eu tenho cabelo”, e ele está correcto. E o mesmo vale, claro, para o caso original do cérebro numa cuba. Quando o cérebro pensa “eu tenho um corpo”, ele está correcto. Quando pensa “estou a andar”, está correcto.
Esta perspectiva parece à partida muito contra-intuitiva. Inicialmente, pareceu-me manifestamente contra-intuitiva. Então vou agora apresentar a linha de argumentação que me convenceu de que está correcta.
Vou agora argumentar que a hipótese de que estou incubado não é uma hipótese céptica, mas antes uma hipótese metafísica. Ou seja, é uma hipótese sobre a natureza fundamental da realidade.
Enquanto a física se preocupa com os processos microscópicos que constituem a realidade macroscópica, a metafísica preocupa-se com a natureza fundamental da realidade. Uma hipótese metafísica pode inclusivamente ser uma proposta sobre que realidade subjaz aos fenómenos físicos. Alternativamente, pode até dizer alguma coisa sobre a natureza das nossas mentes, ou até mesmo sobre a criação do mundo.
Penso que a Hipótese matrix deve ser vista como uma hipótese metafísica, na qual estão contidos os três elementos seguintes: uma proposta sobre a realidade fundamental que está subjacente aos processos físicos, uma proposta sobre a natureza das nossas mentes, e uma proposta sobre a criação do mundo.
Em particular, penso que a Hipótese matrix é equivalente a uma versão tripartida da seguinte Hipótese Metafísica: Primeiro, os processos físicos são fundamentalmente processos computacionais. Segundo, os nossos sistemas cognitivos estão separados dos processos físicos, embora interajam com esses processos. Terceiro, a realidade física foi criada por seres que estão fora do espaço-tempo físico.
É importante notar que nada nesta hipótese metafísica tem um carácter céptico. Esta hipótese metafísica sugere quais são os processos que sustentam a nossa realidade normal, mas não defende que essa realidade não existe. Nos ainda temos corpos, e ainda há cadeiras e mesas: apenas a sua natureza fundamental é um pouco diferente da forma como pensamos que é. Desta maneira, a hipótese metafísica é análoga a uma qualquer hipótese física, como [por exemplo] a que relativa à mecânica quântica. Ambas as hipóteses, tanto a física como a metafísica, dizem-nos quais os processos que constituem as cadeiras. Nenhuma delas defende que não há cadeiras. Em vez disso, ambas dizem que as cadeiras são como são.
Vou apresentar a argumentação introduzindo cada uma das três partes da hipótese metafísica em separado. Vou sugerir que cada uma delas é coerente, e que não pode ser conclusivamente excluída. Vou também sugerir que nenhuma delas é uma hipótese céptica: pois, mesmo que sejam verdadeiras, as nossas crenças normais continuam a ser correctas. O mesmo é válido para a combinação das três hipóteses. Vou então argumentar que a Hipótese matrix é equivalente à combinação destas três hipóteses.
Esta Hipótese diz: O espaço-tempo físico, e todo o seu conteúdo, foram criados por seres que estão fora do espaço-tempo físico.
Esta hipótese é conhecida. Muitas pessoas na nossa sociedade acreditam nela, e talvez até uma grande maioria de pessoas em todo o mundo. Se acreditamos que Deus criou o mundo, e se acreditamos que Deus está fora do espaço-tempo físico, então também acreditamos na Hipótese da Criação. Apesar disso, não precisamos de acreditar em Deus para acreditar na Hipótese da Criação. Talvez o nosso mundo tenha sido criado por um ser relativamente normal que está no “universo mais próximo acima do nosso”, e que esse ser tenha usado a última palavra em tecnologia de criação de mundos disponível nesse universo. Se for o caso, então a Hipótese da Criação é verdadeira.
Não sei se a Hipótese da Criação é verdadeira. Mas não tenho a certeza de que é falsa. A hipótese é claramente coerente, e, por isso, não posso conclusivamente exclui-la.
A Hipótese da Criação não é uma hipótese céptica. Mesmo que seja verdadeira, as minhas crenças habituais continuam verdadeiras. Eu ainda tenho mãos, ainda estou em Tucson, e por aí adiante. Talvez algumas das minhas crenças passem a ser falsas: por exemplo, se eu for ateu, ou se acredito que a realidade começou com o Big Bang. Contudo, a maioria das minhas crenças habituais sobre o mundo exterior conservam-se intactas.
Esta hipótese diz: Os processos microfísicos que encontramos no espaço-tempo são constituídos por processos computacionais que lhes estão subjacentes.
A Hipótese Computacional diz-nos que os processos físicos que julgamos constituírem o nível mais fundamental da realidade afinal podem não o ser. Tal como os processos químicos estão na base de processos biológicos, e tal como processos microfísicos estão na base de processos químicos, também qualquer coisa está subjacente aos processos microfísicos. Por baixo do nível dos quarks, electrões e fotões, há ainda mais um nível: o nível dos bits. Estes bits são geridos por um algoritmo computacional, que, a um nível mais elevado, produz os processos que nós pensamos serem as partículas fundamentais, as forças, etc.
A Hipótese Computacional não é tão vastamente aceite quanto a Hipótese da Criação; mas ainda assim há algumas pessoas que a consideram bastante plausível. Um dos casos mais conhecidos é o de Ed Fredkin, que defendeu que o universo é no fundo um determinado tipo de computador. Recentemente, Stephen Wolfram adoptou a ideia no seu livro A New Kind of Science, sugerindo aí que, ao nível mais fundamental, a realidade física pode ser um certo tipo de automatismo celular, constituído por bits que interagem entre si, obedecendo a regras simples de funcionamento. E vários Físicos têm investigado a possibilidade das leis naturais poderem ser formuladas computacionalmente, ou de poderem ser vistas como uma consequência de certos princípios computacionais.
Podemos ficar preocupados com a ideia de que puros bits não sejam afinal o nível mais fundamental da realidade: um bit é apenas um 0 ou um 1, e a realidade não pode ser feita de zeros e uns. Ou talvez um bit seja apenas a “diferença pura” entre dois estados fundamentais, e assim não possa haver uma realidade feita de diferenças puras. Inversamente, talvez os bits até tenham que ter a sua origem em estados ainda mais básicos, tais como as voltagens num computador normal.
Não sei se estas objecções são correctas. Penso que não está completamente fora de questão que possa haver um universo constituído por “bits puros”. Mas isso não interessa para o nosso objectivo presente. Podemos até supor que o nível computacional é constituído por um nível ainda mais fundamental, a partir do qual os processos computacionais são implementados. O que interessa é que os processos microfísicos sejam constituídos por processos computacionais, e que estes sejam constituídos por processos ainda mais fundamentais. Daqui para a frente vou considerar que isto é o que a Hipótese Computacional afirma.
Não sei se a hipótese computacional está correcta. Mas, mais uma vez, também não sei se é falsa. A hipótese é coerente, na medida em que é especulativa, e não pode conclusivamente excluída.
A Hipótese computacional não é uma hipótese céptica. Se é verdadeira, ainda há electrões e protões. Desta perspectiva, os electrões e os protões seriam análogos às moléculas: são constituídas por algo mais elementar, mas ainda assim existem. Igualmente, mesmo que a Hipótese Computacional seja verdadeira, continuarão a existir mesas e cadeiras, e a realidade macroscópica continua a ser um facto; apenas acontece que a sua constituição fundamental é um pouco diferente daquela que estamos habituados a pensar.
Esta situação é a análoga à da Mecânica Quântica ou à da Teoria da Relatividade. Estas teorias podem levar-nos a rever algumas das crenças metafísicas que temos a propósito do mundo exterior; por exemplo, que o mundo é constituído por partículas clássicas ou que o tempo é absoluto. Mas a maior parte das nossas crenças habituais sobre o mundo mantém-se. Da mesma maneira, a nossa aceitação da Hipótese Computacional pode levar-nos a rever algumas das nossas crenças metafísicas; por exemplo, que os electrões e os protões são partículas fundamentais. Mas, ainda assim, uma grande parte das nossas crenças habituais não é afectada.
Esta Hipótese afirma: A minha mente é (e sempre foi) constituída por processos que estão fora do espaço-tempo físico. A minha mente recebe inputs de, e envia os seus outputs para, processos no espaço-tempo físico.
A Hipótese Mente-Corpo é também bastante conhecida, e largamente aceite. Descartes acreditava em algo do género: da sua perspectiva, as mentes são coisas não físicas que interagem com os nossos corpos, que são coisas físicas. A Hipótese é menos aceite actualmente do que no tempo de Descartes, mas ainda assim há muitas pessoas que a aceitam.
Independentemente da Hipótese Mente-Corpo ser verdadeira ou não, ela é certamente coerente. E apesar de a ciência contemporânea sugerir tendencialmente que a Hipótese é falsa, ainda assim não podemos exclui-la conclusivamente.
A Hipótese Mente-Corpo não é uma hipótese céptica. Mesmo que a minha mente esteja fora do espaço-tempo físico, eu continuo a ter um corpo, eu ainda estou em Tucson, e por aí adiante. No máximo, a aceitação desta hipótese iria obrigar-nos a rever algumas das nossas crenças metafísicas sobre as nossas mentes. As nossas crenças habituais sobre a realidade exterior permanecem em grande medida intactas.
Podemos agora juntar estas hipóteses. Primeiro podemos considerar a Hipótese Combinatória, que combina as três hipóteses. Essa hipótese diz-nos que o espaço-tempo físico e o seu conteúdo foram criados por seres que estão fora desse espaço-tempo; diz-nos também que os processos microfísicos são constituídos por processos computacionais, e que as nossas mentes estão fora do espaço-tempo mas que interagem com ele.
Tal como no caso das hipóteses tomadas individualmente, a Hipótese Combinatória é coerente, e não pode ser conclusivamente excluída. E também tal como nos casos individuais, a Hipótese Combinatória não é uma hipótese céptica. A aceitação da hipótese poderia levar-nos a rever algumas das nossas crenças, mas deixaria quase todas intactas.
Por fim podemos considerar a Hipótese Metafísica (com um “M” maiúsculo). Tal como a hipótese combinatória, esta hipótese combina Hipótese da Criação, a Hipótese computacional e a Hipótese Mente-Corpo. A hipótese acrescenta também a seguinte tese específica: os processos computacionais que constituem o espaço-tempo físico foram gerados pelos criadores com a finalidade de estabelecer uma simulação de um mundo.
(Pode também ser útil pensar na Hipótese Metafísica enquanto hipótese que afirma que os processos computacionais que constituem o espaço-tempo fazem parte de um domínio mais alargado, e que os criadores e o meu sistema cognitivo estão situados nesse domínio. Esta condição não é estritamente necessária para o que se segue, mas identifica-se melhor com a forma mais comum de pensar a Hipótese matrix.)
A Hipótese Metafísica é uma versão um pouco mais específica da Hipótese Combinatória na medida em que especifica algumas relações entre as várias partes desta. Novamente, a Hipótese Metafísica é uma hipótese coerente, e não podemos exclui-la conclusivamente. E novamente, não é uma hipótese céptica. Mesmo que a aceitemos, a maioria das nossas crenças habituais sobre o mundo exterior ficarão intactas.
Recorde-se o que a Hipótese matrix diz: eu tenho (e sempre tive) um sistema cognitivo que recebe inputs de, e envia os seus outputs para, uma simulação de um mundo artificialmente gerada.
Vou agora argumentar que a Hipótese Metafísica é equivalente à Hipótese Metafísica no seguinte sentido: se eu aceito a Hipótese Metafísica, então deveria também aceitar a Hipótese matrix; e se aceito a segunda, deveria também aceitar a primeira. Ou seja, as duas hipóteses implicam-se mutuamente, o que significa que se aceito uma delas tenho também que aceitar a outra.
Comecemos pela primeira direcção, que vai da Hipótese Metafísica para a Hipótese matrix. A Hipótese Mente-Corpo implica que tenho (e sempre tive) um sistema cognitivo isolado que recebe os seus inputs de, e envia os seus outputs para, processos no espaço-tempo físico. Conjuntamente com a Hipótese Computacional, isto implica que o meu sistema cognitivo recebe os seus inputs de, e envia os seus outputs para, processos computacionais que constituem o espaço-tempo físico. A Hipótese da Criação (juntamente com as restantes hipóteses metafísicas) implica que esses processos foram artificialmente gerados para simular um mundo. Segue-se que tenho (e sempre tive) um sistema cognitivo isolado que recebe os seus inputs de, e envia os seus outputs para, uma simulação computacional do mundo artificialmente gerada. Portanto a Hipótese Metafísica implica a Hipótese matrix.
A outra direcção está associada de perto com esta. Pondo as coisas informalmente: se aceito a hipótese matrix, então eu também aceito que o que subjaz à realidade tal como nos aparece é somente aquilo que a Hipótese Metafísica determina. Há um domínio que contém o meu sistema cognitivo, que interage causalmente com uma simulação computacional do espaço-tempo, que por sua vez foi criada por outros seres que estão nesse domínio. É apenas isto que é necessário para que a Hipótese Metafísica alcance os seus propósitos. Se aceitamos isto, então também temos de everíamos aceitar a Hipótese da Criação, a Hipótese Computacional e a Hipótese Mente-Corpo, bem como as importantes relações que existem entre elas.
Isto pode tornar-se mais claro usando uma imagem. Eis a configuração do mundo segundo a Hipótese matrix:
Ao nível mais fundamental esta imagem da configuração do mundo é exactamente a mesma que a imagem da Hipótese Metafísica colocada acima. Assim, se aceitamos que o mundo é como a Hipótese matrix afirma, então temos de aceitar também que o mundo é como a Hipótese Metafísica afirma.
Poderíamos colocar algumas objecções. Por exemplo, poderíamos objectar que a Hipótese matrix implica que exista uma simulação computorizada dos processos físicos, mas que (ao contrário da Hipótese Metafísica) não implica que os próprios processos físicos existam. Irei discutir esta objecção na secção 6, e outras objecções na secção 7. Por agora pressuponho que há boas razões para considerar que a Hipótese matrix implica a Hipótese Metafísica, e vice-versa.
Se isto está correcto, segue-se que a Hipótese matrix não é uma hipótese céptica. Se eu aceito isto, eu não devo inferir que o mundo exterior não existe, ou que não tenho um corpo, ou que não há mesas nem cadeiras, ou ainda que não estou em Tucson. Pelo contrário, deveria inferir que o mundo físico é constituído por computações que estão na base do nível microfísico. Ainda há mesas, cadeiras e corpos: estes são fundamentalmente constituídos por bits, e do que quer que seja que constitui estes bits. Este mundo foi criado por outros seres, mas ainda assim é perfeitamente real. A minha mente está separada dos processos físicos, e interage com eles. A minha mente pode não ter sido criada por esses seres, e pode até não ser feita de bits, mas ainda assim interage com esses bits.
O resultado disto é um quadro complexo da natureza fundamental da realidade. O quadro é, talvez, estranho e surpreendente; mas é um quadro de um mundo exterior de carne e osso. Se estamos numa matrix, esta é simplesmente a forma de ser do mundo.
Podemos pensar na Hipótese matrix como um Mito Criacionista da Era Informática. Se isto está correcto, então o mundo físico não foi necessariamente criado por deuses. Sustentando o mundo físico está uma computação imensa, e os criadores criaram o mundo pela implementação dessa computação. As nossas mentes estão situadas no exterior desta estrutura física, e têm uma natureza independente que interage com essa estrutura.
Muitos dos problemas que se levantaram com os mitos criacionistas canónicos colocam-se também neste caso. Quando foi o mundo criado? Estritamente falando, o mundo não foi de forma nenhuma criado no interior do nosso tempo. Quando começou a história? Os criadores podem ter iniciado a simulação em 4004 AC (ou em 1999) com o registo fóssil completo, mas teria sido muito mais fácil para eles terem iniciado a simulação com o Big Bang e deixarem as coisas correr normalmente desde esse momento.
(Claro que no filme matrix os criadores são máquinas. Este facto baralha as leituras teológicas habituais sobre o filme. É por vezes defendido que Neo desempenha no filme a figura de Cristo, que Morpheus é [o profeta] João Batista, e que Cypher é Judas Iscariote etc. Mas segundo a leitura que fiz do filme, os deuses da matrix são máquinas. Quem, então, nesta perspectiva, seria a figura de Cristo? Claro que só poderia ser o agente Smith! De facto, no primeiro filme, ele é o descendente dos deuses enviado para o mundo para o salvar daqueles que querem destrui-lo. E, no segundo filme, ele até é ressuscitado.)
Muitos dos problemas que se levantaram com a hipótese mente-corpo canónica colocam-se também neste caso. Quando é que a nossa mente não-física começa a existir? Isso depende de quando os novos sistemas cognitivos incubados são inseridos na simulação (talvez no momento da concepção da matrix, ou talvez no momento do nascimento). Há vida após a morte? Isso depende do que acontece aos sistemas incubados depois da morte dos seus corpos. Como é que corpo e mente interagem? Por intermédio de ligações causais que estão fora do espaço-tempo físico.
Mesmo que não estejamos numa matrix, podemos expandir esta linha de raciocínio a outros seres que estejam numa matrix. Se eles descobrirem a sua situação, e venham a aceitar que estão numa matrix, não devem rejeitar as suas crenças habituais sobre o mundo exterior. No máximo, deveriam rever as suas crenças acerca da natureza fundamental do seu mundo: viriam a aceitar que os objectos exteriores seriam constituídos por bits, e por aí adiante. Estes seres não são massivamente enganados: a maioria das suas crenças habituais sobre o mundo está correcta.
Temos de fazer aqui algumas especificações. Podemos ficar preocupados com as crenças sobre as mentes de outras pessoas. Acredito que os meus amigos têm consciência [de si]. Se estou numa matrix, estará isto correcto? No caso da matrix exposta no filme, essas crenças são na sua maioria boas. Esta é uma matrix multi-cuba: por cada amigo que percepciono, há um ser incubado na realidade externa, que provavelmente está tão consciente quanto eu. As excepções podem ser seres como o agente Smith, que não estão incubados, mas são inteiramente computacionais. Esses seres só têm consciência se a computação for suficiente para lhes gerar consciência. Vou manter-me neutro nesta questão específica. Poderíamos rodeá-la desde que se formulasse uma Hipótese matrix que exigisse que todos os seres estivessem incubados. Mas mesmo que não façamos esta exigência, não ficamos muito pior do que o que temos no nosso mundo, onde há um permanente questionar sobre se outros seres têm ou não consciência, independentemente de estarmos ou não numa matrix.
Podemos também preocupar-nos com as crenças sobre o passado distante, bem como sobre o futuro longínquo. Estas não serão ameaçadas desde que a simulação computacional cubra todo o espaço-tempo, desde o Big Bang até ao fim do universo. Isto faz parte da Hipótese Metafísica, e podemos estipular que faz também parte da Hipótese matrix, exigindo que a simulação computacional seja uma simulação de um mundo completo. Pode haver outras simulações que começaram num passado recente (talvez a matrix do filme seja um destes casos), e pode haver outras que só duram por pouco tempo. Nestes casos, os seres incubados terão crenças falsas sobre o passado e/ou sobre o futuro dos seus mundos. Mas desde que a simulação cumpra a duração de vida destes seres, é plausível que eles tenham quase todas as suas crenças correctas sobre o estado actual do ambiente onde estão.
Pode haver alguns aspectos sobre os quais os seres que estão numa matrix podem ser enganados. Pode acontecer que os criadores da matrix controlem e interfiram com muito do que acontece nesse mundo simulado. (A matrix do filme parece um desses casos, embora não fique bem esclarecida qual a extensão do controlo dos criadores.) Se é assim, então esses seres podem ter afinal muito menos controlo sobre o que acontece do que pensam que têm. Mas o mesmo vale para o caso de haver um deus que interfere num mundo não-matrix. E a Hipótese matrix não implica que os criadores interfiram no mundo, embora a hipótese em si deixe a possibilidade em aberto. No pior cenário, a Hipótese matrix não é mais céptica a esse respeito que a Hipótese da Criação num mundo não-matrix.
Os habitantes de uma matrix também podem ser enganados por serem levados a pensar que a sua realidade é muito mais vasta do que realmente é. Podem pensar que tudo o que existe é o universo físico, quando, de facto, há muito mais no mundo, incluindo seres e objectos que nunca poderão ver. Mas, mais uma vez, este tipo de preocupação pode também levantar-se no caso de um mundo não-matrix. Por exemplo, alguns cosmólogos sustentam a ideia de que o nosso universo pode ter a sua “origem” num buraco negro situado no “universo mais próximo acima do nosso”, bem como que, na realidade, pode haver uma ramificação de vários universos interligados. Se for verdade, então o mundo é muito maior do que pensamos, e pode haver seres e objectos que nunca poderemos ver. Mas, em qualquer dos casos, o mundo que vemos é perfeitamente real. De salientar que nenhuma destas fontes de cepticismo — sobre as mentes dos outros, sobre o passado e o futuro, sobre o nosso controlo sobre o mundo, e sobre o tamanho do mundo — lança dúvidas sobre a nossa crença da realidade do mundo ser aquela que percepcionamos. Nenhuma delas nos leva a duvidar da existência de objectos exteriores como mesas ou cadeiras, no sentido em que a hipótese do incubamento é suposto fazer. Nenhuma destas preocupações está particularmente agregada ao cenário matrix. Podemos levantar dúvidas sobre se outras mentes existem, sobre se o passado e o futuro existem, e sobre se temos controlo sobre os nossos mundos independentemente de estarmos ou não numa matrix. Se isto está correcto, então a Hipótese matrix não levanta as habituais questões cépticas que frequentemente se diz que levanta.
Sugeri que não está fora de questão estarmos realmente numa matrix. Poderíamos até ter pensado que esta era uma conclusão preocupante. Mas, se estou correcto, não é uma conclusão tão preocupante como poderíamos pensar. Mesmo que estejamos nessa matrix, o mundo não deixa por isso de ser tão real como pensamos que é. É apenas um mundo com uma natureza fundamental surpreendente.