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Crítica
26 de Junho de 2008   Filosofia

Psicofoda

Vítor Guerreiro

O termo inglês “mindfuck” coloca um interessante problema de tradução. É um termo com menor circulação do que “bullshit”, cuja análise foi feita por Harry Frankfurt no texto intitulado On Bullshit, já traduzido para português com o título Da Treta (Livros de Areia, 2006). O livro Não me F**** o Juízo, de Colin McGinn, cujo título original é Mindfucking: A Critique of Mental Manipulation, vem na sequência do texto de Frankfurt e tem por objectivo a clarificação de um conceito distinto mas que pertence à mesma família que os conceitos de mentira e de treta: o conceito de mindfucking ou psicofoda. Compreender aquilo que distingue a psicofoda da treta e da mentira é em parte compreender aquilo que torna difícil a tradução do termo. A primeira dificuldade é o facto de mindfuck ser uma palavra composta. Várias expressões em português captam parcialmente o sentido de mindfuck mas à excepção de “psicofoda” nenhuma delas forma uma única palavra composta de dois elementos que preservem a literalidade da expressão inglesa e a tensão entre ambos — um termo “mental” e um termo “físico”, cuja união tem uma ressonância quase oximórica.

A segunda dificuldade é que, ao contrário da treta, que tem apenas um sentido negativo, a psicofoda tem dois sentidos: um positivo e um negativo; a psicofoda como experiência perturbante embora benigna (a experiência de uma obra de arte, uma obra de ficção ou um filme podem ser instâncias de psicofoda) e a psicofoda como manipulação mental, acção invasiva e mesmo violenta sobre o estado psicológico de uma pessoa, um aproveitamento hábil das suas fraquezas e susceptibilidades. Invariavelmente, as expressões portuguesas alternativas a “psicofoda” captam ou o sentido positivo ou o negativo, mas não ambos.

Terceira dificuldade: mindfuck tanto pode designar o processo através do qual se obtém um certo estado como pode designar esse mesmo estado, nomeadamente, o processo pelo qual algo ou alguém provoca uma alteração na psique de um ser humano de modo a obter controlo sobre as suas emoções e crenças, explorando as suas fraquezas e susceptibilidades, e o estado em que alguém fica quando este tipo de acção foi exercido sobre si. McGinn explora as variantes deste processo: a psicofoda individual, exercida por um indivíduo sobre outro (da qual o modelo clássico indicado por McGinn é a acção de Iago sobre Otelo na peça de Shakespeare), a psicofoda colectiva — tipicamente, a lavagem ao cérebro ligada a crenças religiosas ou políticas — e a psicofoda reflexiva, ou o acto exercido por uma mente sobre si própria (autopsicofoda?). Nenhuma das expressões portuguesas que captam parcialmente o sentido de mindfuck consegue referir simultaneamente o processo e o estado resultante desse processo, excepto “psicofoda”. Uma dessas expressões mostra-se mesmo inadequada por se subsumir na noção de psicofoda colectiva, ou seja, por ser uma instância de psicofoda, logo, por ter uma extensão menor do que o termo a traduzir: “lavagem ao cérebro”. Além disso, esta expressão também não consegue captar o sentido positivo de mindfuck. A expressão “foda mental” admite uma ressonância positiva e negativa, captando quer a associação entre o intenso, o inócuo e o agradável, quer a associação entre o invasivo e o violento. Contudo, não funciona por sugerir demasiado um acto físico imaginário em vez de qualificar uma acção cujo alvo primário é a mente, as emoções e as crenças do indivíduo. A psicofoda não é um acto físico imaginado, idealizado ou execrado, é um acto mental com características análogas às de um acto físico, embora aqui não se trate de uma divisão estrita: nenhum dos actos é estritamente mental ou estritamente físico — por motivos óbvios, a manipulação mental e as variantes colectivas da psicofoda não podem ignorar a importância da estética no modo como o indivíduo se relaciona com o mundo, no modo como adquire as suas crenças e no modo como a sua imaginação é afectada. A ritualização do poder, das paradas militares à iconologia e à propaganda, da música marcial aos cartazes ideológicos, são exemplos suficientemente eloquentes disto. O objectivo deste tipo de arte é manifestamente o de causar um género de excitação ou “tesão” nas suas vítimas. Um tipo de excitação que faz os indivíduos colaborar activamente na exploração das suas fraquezas, silenciar as suas faculdades críticas, aderir ou harmonizar-se com uma perspectiva do mundo invariavelmente dualista (os bons contra os maus) e irracional (onde o pensamento já não tem outra função a não ser a de justificar a violência, defender o indefensável).

Outra das razões pelas quais “foda mental” não funciona é que embora mindfuck tenha uma conotação sexual, não esgota o sentido do termo nem tem uma importância primária. Trata-se de uma analogia com a cópula física, não de uma identificação (mindfuck e não a fuck in the mind). Assim, talvez a expressão portuguesa mais próxima de captar o significado de mindfuck seja “lixar a mente”. Contudo, também esta só capta o sentido negativo do original. Não se descreveria uma experiência intensa, perturbadora mas agradável, com a palavra “lixar”. Além de captar ambos os sentidos, positivo e negativo, “psicofoda” tem ainda outra vantagem patente: trata-se precisamente de foder a psique do indivíduo e não apenas de alterar algumas das suas crenças acerca do mundo. De igual modo, a psicofoda em sentido positivo não visa a meramente alterar algumas crenças do indivíduo mas o todo da sua vida mental: a experiência de uma peça musical arrebatadora, uma teoria científica ou filosófica capaz de subverter as nossas crenças mais básicas, um filme com uma sequência de acontecimentos que resulta num final de todo inesperado embora em retrospectiva seja perfeitamente lógico, dando ao espectador a sensação de ter sido explorado na sua ingenuidade e credulidade...

Dito isto, devo agora referir aquela que me parece ser a única fraqueza de “psicofoda” como opção para traduzir mindfuck: o termo inglês, apesar de ser mais recente do que bullshit (treta), tem ainda assim alguma circulação. McGinn afirma mesmo que se trata de um termo bastante corrente em inglês. “Psicofoda”, contudo, tanto quanto sei, é uma palavra ainda não usada. Pelo menos uma busca preliminar no Google não mostrou quaisquer resultados, nem uma única página que use o termo. Escusado será dizer que tão-pouco os dicionários a registam. O mesmo não se aplica ao termo inglês, que está já registado em dicionários e acusou 737 000 ocorrências no Google. Permita-se-me então converter esta fraqueza num ponto forte: se não há palavra anterior, temos a vantagem de poder escolher o melhor termo possível sem enfrentar o preconceito favorável a palavras consagradas mas que talvez não sejam as melhores. Isto torna mais importante o apresentar de razões para sustentar a escolha do termo, pois estamos simultaneamente a preencher um espaço em branco no nosso vocabulário e a evitar aquela que é a opção mais comum: ignorar a potencialidade do léxico nativo e adoptar a expressão no original, introduzindo uma nova palavra quando já dispomos de uma que funciona, mas não sabemos ou não pensámos o suficiente para a descobrir.

Para concluir esta digressão sobre o texto de McGinn, vamos expor a diferença fundamental entre a psicofoda e os outros dois conceitos da mesma família, embora distintos, a treta e a mentira. Em primeiro lugar, o elemento comum aos três conceitos é o engano. Todos diferem, contudo, no modo como enganam. Tanto a treta como a mentira se dirigem a uma crença ou conjunto de crenças do sujeito a quem se mente ou prega uma treta. A mentira tem por objectivo incutir crenças falsas acerca de um estado de coisas no mundo e acerca das crenças do sujeito que mente. Pela mentira pretende-se convencer alguém que uma certa crença falsa (ou crenças falsas) acerca de um estado de coisas no mundo é verdadeira e que as crenças do mentiroso acerca desse estado de coisas no mundo são diferentes do que na verdade são. A treta é indiferente à diferença entre a verdade e a falsidade. O objectivo da treta é produzir uma alteração nas crenças de outrem, contudo a força da treta não está em produzir uma aparência de verdade mas na sugestão. Ao passo que uma mentira não pode ser por definição verdadeira, algo pode ser verdadeiro e ser à mesma uma treta. A treta pode conter falsidades ou verdades, desde que uma ou outra sirvam para alcançar o objectivo. Quando se tenta dar a impressão de que se sabe muito sobre determinado assunto também se procura alterar as crenças de outrem, mas neste caso uma verdade irrelevante pode ter um poder sugestivo superior ao de uma mentira. Para o pregador de tretas, a verdade e a falsidade têm o mesmo valor instrumental.

No caso da psicofoda, contudo, não se trata de alterar uma crença ou conjunto de crenças em particular, mas o conjunto dos estados emocionais do indivíduo, de modo a obter controlo sobre a sua mente, as suas emoções, e consequentemente, sobre o tipo de crenças de que o indivíduo é capaz. O mindfucker (psicoviolador?) tem de ganhar a confiança e a colaboração das suas vítimas. Num certo sentido, a psicofoda tem de ser voluntária (servidão voluntária?) na medida em que a vítima, através das suas vulnerabilidades, de uma perspectiva da realidade distorcida pelos seus medos e desejos, pela imaginação, participa activamente na destruição das suas faculdades críticas e encara a submissão como o caminho fácil para a redenção e a pacificação, que obviamente nunca chegam, dando apenas origem a maior ansiedade e sofrimento, que exige cada vez mais submissão. Neste sentido, a psicofoda é a operação mais complexa das três e há uma assimetria entre elas. Um mentiroso e um pregador de tretas não são necessariamente psicovioladores, mas um psicoviolador tem necessariamente de ser um bom mentiroso além de ter um talento invulgar para a treta. O psicoviolador é um artista do irracional. O objectivo de uma psicofoda não é convencer alguém da verdade de uma proposição falsa, mas exercer controlo sobre o tipo de crenças de que esse indivíduo será capaz e sobre o modo como certas proposições o irão afectar independentemente de quaisquer considerações racionais. Isto é ilustrado, por exemplo, no facto de as vítimas de lavagem ao cérebro serem incapazes de discutir criticamente as suas crenças. A pessoa a quem se mentiu com êxito continua a ser capaz de detectar a falsidade da proposição que aceitou enganosamente, quem caiu numa treta retém a capacidade de se libertar da treta, ao passo que a psicofoda é muito mais difícil de superar, pois a adesão a proposições falsas que gera não se instala através da aparência de verdade mas das fraquezas emocionais do indivíduo que o psicoviolador aprende a explorar.

Na vertente positiva que a semântica do conceito admite, McGinn conclui a sua reflexão com uma questão importante: será a filosofia uma instância de psicofoda? Contudo, para não matar a curiosidade do leitor e aumentar a intensidade da experiência proporcionada pela leitura (a eficácia da psicofoda?), vamos deixar esta questão em aberto para quem queira deter-se sobre o próprio texto. Podemos contudo mencionar o seguinte, para abrir o apetite: a contenda entre aquilo a que chamamos filosofia analítica e o pós-modernismo deixa-se captar pela seguinte pergunta: o projecto socrático de obter a verdade através do questionamento das nossas crenças mais básicas sem recorrer a qualquer autoridade que não a da argumentação e da razão é uma psicofoda em sentido negativo, uma espécie de sofística? O pós-modernismo será a posição para a qual tudo é psicofoda negativa, mera expressão de relações de poder, excepto a própria perspectiva que diagnostica este estado de coisas.

Concluo com uma referência ao que me pareceu ser as duas fraquezas do livro: uma certa transigência por parte do autor com a ideia dos memes, de Richard Dawkins, e a ideia kuhniana de “paradigma”. Ambas são apresentadas como ilustrações de um aspecto da psicofoda. Aqui não é o lugar para discutir as fraquezas de ambas as ideias ou pelo menos aquilo que as torna altamente discutíveis, mas podemos dizer em abono de McGinn que não é necessário pensarmos que são adequadas ou correctas para que funcionem como ilustrações, do modo que ele pretende. McGinn usa a analogia que Dawkins imaginou entre a propagação de informação e a reprodução genética (o meme como réplica mental do gene) para explorar a conotação sexual, invasiva, da psicofoda: a ideia de itens de informação que se propagam de mente para mente, como o refrão tolo de uma canção comercial. A “mudança de paradigma” kuhniana, tal como é descrita por Kuhn, é uma instância de “psicofoda” em sentido positivo. Podemos aceitar esta ideia e apreender o que se pretende ilustrar com ela sem aceitar implicitamente que há paradigmas.

Creio, contudo, que McGinn podia ter recorrido a um exemplo mais fértil: Por um lado, toda a ciência tem um potencial de “psicofoda” na medida em que subverte as nossas crenças básicas acerca do mundo, mesmo quando não estamos num período “revolucionário” à Kuhn; por outro lado, a diferença entre a ciência e a pseudociência ilustram na perfeição os dois sentidos de “psicofoda” naquilo que os distingue um do outro. A pseudociência é actualmente uma das mais poderosas instanciações da psicofoda negativa e a que faz um uso mais prolífico da treta e da mentira em todas as suas variedades. A pseudociência obedece a um padrão que McGinn identifica na psicofoda: esta torna-se cada vez mais intensa à medida que aumenta a exposição potencial das suas vítimas à diferença de opinião e ao livre fluxo de informação. Podemos observar isto no facto de os símbolos terem muita força quando já não fazem qualquer sentido, a ideologia torna-se mais agressiva quando se torna mais facilmente perceptível como ideologia, quando o seu poder de se fazer passar por conhecimento genuíno é menor. Nestas circunstâncias a única forma de manter a ideologia é através de doses maciças de psicofoda, para contrariar a exposição crescente à informação e aos efeitos salutares da dissonância cognitiva.

Vítor Guerreiro

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ISSN 1749-8457