Em memória de Sylvia Kristel (1952–2012)
Se você é homem e tem acesso à internet, é certo que já consumiu conteúdo pornográfico ao menos uma vez na vida. É o que afirma um estudo da Universidade de Montreal, no Canadá.1 Além disso, pensa provavelmente que a pornografia é um assunto privado. Portanto, ninguém tem nada a ver com o que você assiste, vê ou escuta e nem com quem produz esse material. E, de mais a mais, não parece existir qualquer problema em acomodar-se na poltrona e acessar um bom site pornográfico após um duro dia de trabalho. Será que as coisas são tão óbvias assim?
Algumas pessoas pensam que não. Dentre elas, especialmente algumas feministas. O que pretendo neste pequeno ensaio é avaliar alguns argumentos feministas contra a pornografia. De acordo com tais argumentos, a pornografia não deveria ser permitida e o fato de o ser é sinal de que as mulheres não são tratadas do modo adequado. São argumentos morais cujas consequências práticas são legais. Tais feministas acreditam que uma vez que a pornografia representa qualquer coisa de inadequado no tratamento dado às mulheres (problema moral), o poder público deveria intervir por meio da imposição de leis restritivas.
Penso que os argumentos aqui tratados não são persuasivos. Assim, pelo menos no que diz respeito a eles, o consumidor de pornografia pode, com boa consciência e mãos limpas, acessar boa parte do oceano de pornografia que recursos como a internet, revistas, televisão e telefone oferecem. É claro que existem argumentos distintos dos que discuto, mas deixo-os para outro ensaio.
De modo geral, as feministas pretendem corrigir certos arranjos sociais que, de acordo com elas, colocam injustificadamente as mulheres em posição de subordinação ou desvantagem em relação aos homens. A sua preocupação primordial é com questões relativas às mulheres, estando as outras causas fora de seu escopo. Uma reivindicação comum das feministas é a igualdade de tratamento dado a homens e mulheres quando o sexo é um fator irrelevante (às vezes o sexo é um fator relevante e, sendo assim, não levanta problemas morais: um exemplo é o caso em que um cineasta procura uma pessoa para fazer o papel de uma aeromoça; é óbvio que homens estão excluídos da busca). Outro exemplo de reivindicação é a de que os homens não devem ter o poder de obrigar suas esposas a serem donas de casa. Quando colocadas em situação de desvantagem ou subordinação, as mulheres são discriminadas. Portanto, o plano feminista é acabar com a discriminação.
Pode haver, no entanto, outra forma de feminismo. Essa forma de feminismo é um machismo invertido e consiste na defesa de privilégios em favor das mulheres (e consequente discriminação em desfavor dos homens) simplesmente pelo fato de as mulheres serem mulheres. O problema é que quem quer que defenda algo desse gênero terá de negar a ideia segundo a qual as pessoas, salvo em situações especiais, não devem ser discriminadas com base no sexo. Vou aceitar que a posição descrita no parágrafo anterior representa o que as feministas realmente defendem, e não a posição que acabei de descrever – que, aliás, sequer deve ser levada a sério.
Como vimos, algumas feministas argumentam que o fato de a pornografia ser permitida é sinal de que as mulheres não são tratadas de modo adequado. E isso porque a pornografia é algo que coloca as mulheres em posição de subordinação ou desvantagem em relação aos homens. Logo, a pornografia discrimina as mulheres.
Pornografia é qualquer coisa que se ache no pornhub.com; pornografia é qualquer coisa que a atriz Mônica Mattos tenha filmado, tais como as obras “Violadas ao Extremo” e “Mulheres que Traem” e pornografia é qualquer foto em que a musa teen Tawnee Stone aparece a partir dos 18 anos de idade (Stone tem 18 anos desde 2001). No entanto, muitas coisas diferentes podem ser classificadas como pornografia, de modo que uma definição mais geral poderá ser útil. Opto pela oferecida pelo filósofo Nigel Warburton, presente no livro Liberdade de Expressão: Uma Breve Introdução (2009).
Segundo Warburton, a pornografia é, na maior parte das vezes, produção de imagens cujo objetivo é excitar sexualmente o espectador por meio da representação de um ato sexual explícito. No entanto, como ele reconhece, nem toda a pornografia envolve imagens: há pornografia escrita (contos, por exemplo) e áudio-pornografia (como os serviços de tele-sexo). A definição de Warburton pode, assim, ser resumida da seguinte forma: a pornografia é todo o tipo de material que estimula os sentidos e cujo objetivo de quem o produz é excitar sexualmente quem o consome.
Há, no entanto, alguns problemas. Um deles: o que dizer de certos vídeos caseiros de sexo? Consideremos o seguinte exemplo: um marido desconfiado contrata um detetive para seguir a sua esposa. Em um dado momento, o detetive consegue, sabe-se lá como, seguir a mulher e o amante até um quarto de motel. De dentro do armário (deixemos de lado o fato de, tipicamente, os motéis não terem este tipo de mobília) o investigador grava um portentoso vídeo de sexo de vinte minutos de duração como prova da infidelidade da mulher.
Mais tarde, transfere o arquivo de vídeo de seu computador para uma pen drive a fim de dar ao marido traído a prova de que sua esposa não é exatamente fiel. Infelizmente, no entanto, um hacker invade o computador do detetive, rouba o vídeo e o envia para o pornhub.com, que por sua vez o posta na rede, na seção de vídeos amadores, com o título “hot wife gets fucked by horny black fella”. Cinco minutos depois, centenas de adolescentes de 17 anos já estão se entretendo com o vídeo. É ou não um caso de pornografia? Devemos lembrar que o vídeo não foi feito com o objetivo de excitar as pessoas sexualmente, muito menos adolescentes de 17 anos: o objetivo do vídeo era ser prova de algo. Se é assim, não poderia ser classificado como pornografia.
Uma tentativa de resolver o problema (se admitirmos ser um problema um vídeo de sexo no pornhub.com não ser um exemplo de pornografia) poderia ser a seguinte: ampliar a definição dada por Warburton de modo a acomodar casos em que embora o material não tenha sido produzido primariamente com o objetivo de excitar alguém sexualmente, em certos contextos (como o uso ou reprodução em meios pornográficos) o material se torna um exemplo de pornografia.
Penso que a definição de Warburton ampliada com minha sugestão é bastante razoável. Outra vantagem da proposta de Warburton é o fato de ser moralmente neutra: não implica que a pornografia é moralmente aceitável ou moralmente condenável. Para sabermos algo dessa natureza, teremos de elaborar argumentos morais. Nisso não há nada de novo: a melhor forma de resolver problemas morais é raciocinando moralmente. Penso que agora podemos avaliar os argumentos feministas contra a pornografia.
O primeiro argumento é o de que a produção e consumo de pornografia desempenham papel central no aprofundamento da exploração e opressão das mulheres. Dessa forma, uma vez que é papel do poder público intervir diretamente no que contribui para a exploração e opressão das mulheres, é papel do poder público intervir de alguma forma na produção e consumo de pornografia. Feministas como Andrea Dworkin e Catharine MacKinnon ofereceram esse argumento publicamente quando, em 1984, elaboraram um decreto que, caso aprovado, tornaria a publicação, produção e venda de pornografia ilegais na cidade americana de Indianápolis.
Há uma sutileza nesse argumento: Dworkin e MacKinnon oferecem uma definição não neutra de pornografia (até o fim desta seção, o termo “pornografia” terá o significado proposto por ambas). Para elas, a pornografia é todo o material que apresenta as mulheres como indivíduos desumanizados; como objetos sexuais; como mercadorias; reduzidas às partes do corpo; tendo prazer em serem humilhadas e feridas; exibidas em situações degradantes; etc. (MacKinnon, 1987). Portanto, o mero fato de um vídeo ter cenas de sexo não é suficiente para barrá-lo, pois pode não ter as propriedades listadas e não ser, assim, pornografia. É bom mencionar que elas admitem que, tal como as mulheres, os homens podem ser vítimas da pornografia.
Podemos entender o argumento de duas formas: a primeira é supor que a mera circulação das ideias sugeridas pela pornografia já é, por si, uma forma de exploração e opressão. Portanto, se quisermos viver em uma sociedade que não discrimina as mulheres, há ideias que não podem circular. Penso que a aplicação de dois argumentos de John Stuart Mill, presentes em Sobre a Liberdade (1859), são suficientes para rejeitar o argumento assim encarado. Eis a aplicação: é bom para todos que as ideias inaceitáveis sobre as mulheres circulem. A razão é a seguinte: quando permitimos que as pessoas digam disparates, temos a oportunidade de refutar esses disparates e eventualmente iluminar as pessoas que pensavam tal e qual os atarantados. Além disso, a causa do direito das mulheres será mais forte se pudermos defender as ideias que a sustentam de forma robusta. E uma das melhores formas de defender uma ideia de forma robusta é lidar com as objeções dos opositores, objeções muitas vezes duras e de péssimo gosto.
Pode-se ponderar que só ideias apresentadas de forma polida deveriam entrar no rol de discussão. Minha resposta é dizer que quando permitimos intervenções grosseiras, ganhamos por aprender, com a experiência, a lidar com tais intervenções. Logo, a permissão tanto de ideias apresentadas de forma polida quanto de forma grosseira acaba por nos dar mais recursos para refutar as variadas formas de ideias disparatadas a respeito das mulheres. Penso, portanto, que não devemos restringir a pornografia mesmo que aceitemos que expressa ideias inaceitáveis expostas de forma grosseira.
Em todo o caso, há uma grande diferença entre explorar e oprimir as mulheres de forma direta e inequívoca (por meio de costumes sociais que excluem as mulheres de direitos cívicos como o voto, por exemplo) e produzir material cujas ideias são ofensivas às mulheres. No primeiro caso, a legitimidade da intervenção do poder público parece óbvia; no segundo, não é tão óbvia assim. Embora possamos admitir que a propagação de mensagens discriminatórias contra as mulheres por meio da pornografia seja uma atitude lamentável, temos razões para rejeitar a censura, pois o argumento de que a mera circulação de certas ideias constitui opressão e exploração soa como um exagero retórico. Em países como os EUA, as mulheres têm uma vida razoavelmente rica e dotada de perspectivas. Mesmo assim, é um dos grandes bastiões da produção pornográfica mundial. Aparentemente, a boa vida das americanas (e especialmente das californianas) não é significativamente afetada pelas ideias propagadas especificamente pela pornografia. Ficamos, assim, na bizarra situação em que afirmamos haver opressão e exploração sem conseguir apontar para os explorados e oprimidos.
A segunda forma é atribuir ao argumento um caráter consequencialista. Encarado desse modo, o argumento nos diz que a permissão da pornografia tende a tornar mais numerosos os casos de opressão e exploração real das mulheres do que a proibição. Sendo assim, devemos proibi-la. Em primeiro lugar, não é claro que a pornografia funcione como um incentivo realmente efetivo cujo resultado seja tratar as mulheres de modo inadequado. É plausível supor que o tratamento que a esmagadora maioria dos homens que consome pornografia dispensa às mulheres é independente da pornografia com que têm contato. Há, é claro, o problema de saber qual o efeito que a pornografia tem sobre homens que já têm tendência a serem violentos com mulheres. Trata-se de um problema parecido com o de saber o efeito que os filmes violentos têm sobre pessoas agressivas. De qualquer maneira, um princípio razoável em discussões morais é que o ônus da prova cabe aos defensores da proibição. Cabe às feministas a apresentação de provas empíricas de que a formulação consequencialista do argumento é convincente.
Embora não pretenda citar o fato como um argumento decisivo, sabe-se que os EUA são os maiores produtores e consumidores de pornografia do mundo (e boa parte do que se produz nos EUA é precisamente aquilo que Dworkin e MacKinnon reprovam). Mesmo assim, o país não faz parte do rol de locais com problemas especialmente graves de violência e outras formas de destrato contra as mulheres. Outro bom exemplo é a Suécia. Este país escandinavo tem há décadas uma legislação liberal a respeito do consumo de pornografia e ao mesmo tempo ostenta o honroso título de ser um dos países com mais igualdade de gênero. Menciono estes fatos apenas para tornar minha posição mais plausível, pois as feministas ainda poderiam objetar que o baixo grau de violência contra as mulheres nesses lugares se deve a características sociais benéficas independentes, e que é justamente a pornografia a responsável por parte da pouca, porém existente, violência contra as mulheres. Por fim, há o problema empírico de separar casos isolados de tendências gerais. Embora em certos casos possamos dizer que um filme pornográfico influenciou uma atitude reprovável qualquer, essa facilidade desaparece quando tentamos estabelecer alterações estatísticas gerais.
O argumento agora tratado é oferecido como uma objeção àqueles que defendem a pornografia com base na ideia de que censurá-la é uma forma de tolher a liberdade de expressão de ideias. Segundo o argumento, a pornografia não é um caso de expressão e portanto não deve ser protegida como tal. Bom, se a pornografia não é um caso de expressão, não faria sentido condená-la pelo que ela expressa. E se não expressa coisa alguma, não se pode supor que as ideias presentes nesse tipo de material têm potencial para prejudicar a generalidade das mulheres. Assim, o passo seguinte é afirmar que as mulheres, ao fazerem pornografia, são submetidas a um tratamento humilhante. Dessa forma, é papel do poder público intervir na produção de pornografia. Uma resposta ao argumento pode ser formulada da seguinte maneira: podemos coibir eventuais humilhações sofridas por, digamos, atrizes pornô, sem arranhar a produção e o consumo de pornografia porque é simplesmente falso que as mulheres sempre serão humilhadas na produção de material pornográfico. Muitos produtores são extremamente profissionais e oferecem aos atores um bom ambiente de trabalho.
Podemos coibir os abusos da mesma forma que estabelecemos punições a crimes como assédio moral e sexual em escritórios, lojas e fábricas. Pode-se, no entanto, reabilitar a tese de que há ideias em materiais pornográficos e ponderar que as formas de sexo ali representadas (como transar com três homens ao mesmo tempo ou levar tapas) retratam as mulheres no papel de humilhadas. No entanto, há uma diferença significativa entre retratar uma situação em que a mulher é humilhada e ela o ser de fato, tal como há uma diferença entre retratar uma situação em que um homem apanha na rua e uma em que ele de fato apanha. Temos, como vimos, recursos para coibir a humilhação real em sets pornográficos. Por isso, não parece uma boa ideia patrulhar cenas pornográficas desempenhadas em comum acordo entre as partes devido à maneira como as mulheres são retratadas. Quem não gostar de uma maneira particular de retratar as mulheres não precisa de assistir à obra.
De mais a mais, nem sempre é fácil estabelecer quais tipos de práticas sexuais retratariam uma forma humilhante de tratamento. Desconfio que muito do que se considera humilhante reflete a falta de imaginação sexual de quem ajuíza. Basta visitar uma casa de swing para perceber que a imaginação humana no que diz respeito ao sexo parece ser ilimitada. E sim, isso inclui tapas, chicotes, puxões de cabelo, bukkake, anal giratório, dupla penetração (no caso das mulheres mais experientes, tripla) e outras saudáveis formas de socialização.
Por fim, há o seguinte argumento: devemos acabar com a pornografia porque um dos principais fatores que fazem as mulheres se dedicarem a essa atividade é a falta de perspectiva econômica. Como fazer isso? Dando às mulheres hipóteses de ascensão social. Trata-se, portanto, de uma ação indireta contra a pornografia. Penso que embora seja uma boa ideia possibilitar a ascensão social das mulheres, o argumento inclui uma ideia de fundo que é falsa. A ideia é que uma das razões pelas quais devemos dar às mulheres melhores condições é incentivá-las a não entrar na indústria pornográfica, presumivelmente porque o ofício de profissional da pornografia é digno de reprovação. Por quê? O que faz que o trabalho de uma atriz pornô seja menos digno do que o desempenhado por um padeiro, coveiro, professor de filosofia ou padre? Penso haver aqui um caso de racionalização de preconceitos. Além disso, o argumento negligencia um fator importante: pode ser que, tal como a atriz Mônica Mattos, a maioria das mulheres do ramo façam o que fazem porque assim escolheram. 2
E da mesma forma que as mulheres podem procurar a pornografia por razões econômicas, podem se dedicar ao estimulante ofício de atendentes do McDonald’s (não deixa de ser um fato curioso não haver um argumento sobre as mulheres e o McDonald’s). Devemos apoiar as mulheres porque os interesses delas em uma vida plena, realizada e feliz contam. Possibilitar a ascensão social nada tem a ver com a pornografia em particular.
Cf. The Telegraph. Algumas estatísticas relacionadas à pornografia e respectivas fontes primárias podem ser achadas no seguinte endereço: http://internet-filter-review.toptenreviews.com/internet-pornography-statistics.html. ↩︎︎
A entrevista de Mônica Mattos em que ela afirma que é atriz pornô porque assim o quis livremente foi dada ao apresentador Jô Soares e está no seguinte endereço: http://www.youtube.com/watch?v=OTjOtQiyric. ↩︎︎