Exactamente oitenta anos após o processo de Dayton, Tennessee, que ficou conhecido como o John Scopes “monkey trial”, a história está prestes a repetir-se. Numa sala de audiências em Harrisburg, Pennsylvania, desde fins de Setembro cientistas e criacionistas travam uma luta para saber se e como os estudantes do liceu, em Dover, irão aprender a respeito da evolução biológica. Poder-se-ia presumir que estas batalhas tinham acabado mas isso seria subestimar o furor (e a ingenuidade) dos criacionistas escarnecidos.
O julgamento Scopes dos dias de hoje — Kitzmiller e outros contra Distrito Escolar da Zona de Dover e outros — começou de forma inócua. Na primavera de 2004, a comissão de revisão do manual escolar do distrito recomendou que um novo manual escolar comercial substituísse o obsoleto manual de biologia. Na reunião do conselho de instrução, em Junho, o presidente da comissão curricular, William Buckingham, queixou-se de que o livro proposto para revisão estava “estreitamente ligado ao Darwinismo”. Depois de desafiar a audiência para que recuasse nas suas origens até ao macaco sugeriu que um manual mais apropriado deveria incluir a teoria bíblica da criação. Quando foi questionado sobre se isso poderia ofender aqueles que professassem outras crenças, Buckingham retorquiu: “Este país não foi fundado sobre as crenças muçulmanas ou sobre a evolução. Este país foi fundado a partir da Cristandade e os nossos estudantes devem ser ensinados como tal”. Uma semana mais tarde, defendendo o seu ponto de vista, Buckingham alegadamente argumentou: “Há dois mil anos alguém morreu numa cruz. Será que ninguém pode defendê-lo?”. E acrescentou: “Em lado algum a Constituição exige a separação entre a igreja e o estado”.
Depois de um verão de discussões acaloradas mas inconclusivas, em 18 de Outubro de 2004 o conselho de instrução de Dover aprovou, por seis votos a favor e três contra, uma resolução que diz: “Os estudantes serão postos ao corrente dos problemas/lacunas existentes na teoria de Darwin bem como de outras teorias da evolução incluindo, mas não só, o desígnio inteligente. Nota: A Origem da Vida não é ensinada”. Decorrido um mês, o distrito escolar de Dover emitiu uma nota de imprensa divulgando a forma como a alternativa do “desígnio inteligente” devia ser exposta. Antes de começar a ensinar a evolução, os professores de biologia teriam de ler aos seus alunos do nono ano uma declaração que incluísse as seguintes palavras:
Os Padrões Académicos da Pennsylvania exigem que os estudantes aprendam a Teoria da Evolução de Darwin e que, em tempo oportuno, se submetam a um teste estandardizado do qual a evolução faz parte.
Porque a Teoria de Darwin é uma teoria, continua a ser testada à medida que são descobertas novas provas. A Teoria não é um facto. Na Teoria existem lacunas para as quais não há provas... O desígnio inteligente é uma explicação sobre a origem da vida que difere da perspectiva de Darwin. A obra de consulta, Of Pandas and People, é útil para que os estudantes vejam se gostariam de explorar esta perspectiva num esforço para alcançar uma compreensão do que implica, de facto, o desígnio inteligente. Tal como acontece com qualquer teoria, os estudantes são encorajados a manter o espírito aberto.
Embora previsíveis, os resultados foram dramáticos. Dois membros do conselho de instrução demitiram-se. Os oito professores de ciências do Liceu de Dover enviaram uma carta ao inspector escolar salientando que “o desígnio inteligente não é ciência. Não é biologia. Não é uma teoria científica aceite”. Os professores de biologia pediram para serem dispensados de ler a declaração, alegando que fazê-lo significaria “deturpar, com conhecimento e intencionalmente, as matérias ou o curriculum”, uma violação das normas do seu código profissional. E assim, em Janeiro deste ano, todas as turmas de biologia do nono ano foram visitadas pelo próprio inspector auxiliar, que leu o aviso obrigatório enquanto os professores e alguns alunos abandonaram a sala.
A controvérsia avançou, inevitavelmente, para os tribunais. Onze pais de Dover entraram com uma acção judicial contra o distrito escolar e a sua direcção, exigindo que a política do “desígnio inteligente” seja revogada por incentivar “uma confusão excessiva entre governo e religião, uma educação religiosa coerciva e uma confirmação, por parte do estado, da religião em detrimento da laicidade e de uma perspectiva religiosa sobre as outras”. Os queixosos são representados pela sociedade de advogados de Pepper Hamilton, de Filadélfia, pela Pennsylvania American Civil Liberties Union e pela American United for Separation of Church and State; a defesa é representada pelo Thomas More Law Center, uma organização Cristã conservadora de Ann Arbor, Michigan.
Porquê todo este reboliço em volta de uma declaração aparentemente inofensiva? Quem pôde, porventura, opor-se a que os estudantes tenham um espírito aberto e examinem uma alternativa à evolução que parece merecedora de respeito? A ciência não consiste em testar teorias em confronto umas com as outras? O frenesim apenas faz sentido à luz da tortuosa história do criacionismo na América. Desde que surgiu depois da Primeira Guerra Mundial, o criacionismo fundamentalista Cristão sofreu a sua própria evolução, revestindo-se de novas formas depois de assimilar repetidos reveses da parte dos tribunais. O “desígnio inteligente”, como irei demonstrar, é simplesmente a mais recente encarnação do criacionismo bíblico defendido por William Jennings Bryan em Dayton. Longe de uma respeitável alternativa científica à evolução, é uma hábil tentativa de introduzir furtivamente a religião, mascarada de ciência, nas escolas públicas.
O percurso de Dayton a Dover foi marcado por uma série de decisões judiciais, das quais somente uma, o julgamento Scopes, foi favorável ao criacionismo. Em 1925, John Thomas Scopes, um professor do liceu, foi condenado por violar o Buttler Act1 do Tennessee, o qual proibia o ensino de “qualquer teoria que negue a História da Criação Divina do Homem tal como é ensinada na Bíblia e que, no seu lugar, explique que o homem descende de um animal de ordem inferior”. O veredicto foi revogado por uma questão técnica (quem aplicou a multa de $100 foi o juiz, em vez do júri), pelo que nunca chegou a haver recurso. A reboque do julgamento Scopes foram aprovadas leis anti-evolução no Mississipi e no Arkansas, juntando-se àquelas que, em 1923, tinham sido aprovadas pela Florida e pelo Oklahoma. Embora estas leis raramente fossem aplicadas na prática, a evolução, contudo, desapareceu rapidamente dos manuais de biologia da maior parte dos liceus porque os editores tiveram receio de diminuir drasticamente as vendas no Sul, onde se acirrou o sentimento anti-evolução.
Em 1957 a situação mudou. Com o lançamento do Sputnick, os americanos despertaram para a descoberta de que uma União Soviética cientificamente avançada tinha batido os Estados Unidos no espaço. Isto estimulou rápidas revisões dos manuais de ciências, alguns dos quais deram realce à evolução biológica. Mas as leis anti-evolucionistas ainda estavam em vigor e, portanto, os professores que usavam os novos livros estavam a violar a lei. Um desses professores, Susan Epperson, moveu uma acção judicial contra o Estado do Arkansas por violação da Establishment Clause.2 Ela conquistou o direito de ensinar a evolução e o veredicto do caso Epperson contra Arkansas foi confirmado pelo Supremo tribunal dos Estados Unidos, um ano apenas após o Tennessee ter revogado definitivamente o Buttler Act. Finalmente, era legal ensinar a evolução em toda a América.
Os opositores da evolução trataram de repensar a sua estratégia, decidindo que se não podiam vencer os cientistas então deveriam juntar-se a eles. Assim, reconstituíram-se como “criacionistas científicos”, propondo uma alternativa aparentemente laica à teoria da evolução que pudesse ser aceite na sala de aulas. Mas as afirmações empíricas do criacionismo científico — que a Terra é jovem (entre 6.000 e 10.000 anos de idade), que todas as espécies foram criadas repentina e simultaneamente, que a maior parte das extinções foi provocada por um dilúvio universal — pareciam-se, suspeitosamente, com as histórias da criação Bíblica. Esta estratégia foi delineada principalmente por Henry Morris, um professor de engenharia que dirigiu o influente Institute for Creation Research, em São Diego, e ajudou a escrever o Scientific Creationism. O livro apareceu em duas versões: uma para as escolas públicas, expurgado de referências religiosas; a outra contendo um apêndice relacionado com a Sagrada Escritura, explicando que a ciência teve origem na interpretação da Bíblia.
O criacionismo científico demonstrou ser um fiasco por duas razões. Em primeiro lugar, a “ciência” estava ridiculamente errada. Sabemos há muito tempo que a Terra tem 4,6 milhares de milhões de anos (a pretensão de que tem entre 6.000 e 10.000 tem origem nos relatos bíblicos, incluindo o número de “criações”) e que as espécies não foram criadas repentina e simultaneamente (não só a maior parte das espécies se extinguiu, como grupos diversos aparecem em diferentes épocas no registo fóssil), e temos provas abundantes para as mutações das espécies ao longo do tempo bem como para os fósseis que explicam numerosas transformações morfológicas. Mais ridículo ainda foi o Scientific Creationism tentar explicar o registo geológico como o resultado de um grande dilúvio: de acordo com as suas considerações, os organismos “primitivos” como os peixes deveriam ser encontrados nos níveis mais baixos, enquanto os mamíferos e espécies mais “avançadas” apareceriam em níveis mais elevados por terem trepado às colinas e montanhas para escapar às águas em ascensão. Porque motivo os golfinhos se encontram em estratos superiores juntamente com outros mamíferos é uma das muitas questões que esta fantasia burlesca não consegue explicar.
Do mesmo modo o criacionismo científico sofreu um desastre porque os seus partidários não ocultaram adequadamente as suas bases religiosas. Em 1981, a legislatura do Arkansas aprovou um projecto de lei sobre o sistema “equal time”, estabelecendo um tratamento equilibrado na sala de aulas para a “ciência da evolução” e para a “ciência da criação”. O projecto de lei foi de imediato impugnado num tribunal federal por um grupo de queixosos, quer cientistas quer religiosos, liderados por um pastor metodista chamado William Mclean. A defesa foi esmagada facilmente, com o Juiz William Overton a detectar rapidamente o literalismo bíblico em que se baseavam os argumentos científico-criacionistas. Num parecer histórico (e uma obra prima de argumentação legal) Overton decidiu, em Mclean contra Conselho de Educação do Arkansas, que a lei do tratamento equilibrado era inconstitucional, sustentando que violava a Establishment Clause em três vertentes: carecia de um propósito legislativo laico, a sua principal finalidade era promover a religião e encorajava um envolvimento excessivo do governo com a religião.
Mclean contra Conselho de Educação do Arkansas iniciou uma série de reveses para os criacionistas científicos. Cinco anos mais tarde, em Edwards contra Aguillard, o Supremo Tribunal considerou que o “Creacionism Act” da Louisiana — uma lei que exigia que o ensino da evolução nas escolas públicas fosse equilibrado com lições de “ciência da criação” — era inconstitucional. Nas duas últimas décadas, os tribunais federais também têm utilizado a Primeira Emenda para permitir às escolas que impeçam de ensinar o criacionismo e, desta forma, proibir os distritos escolares de exigir aos professores que leiam avisos sobre a evolução similares àquele que foi utilizado em Dover, Pennsylvania. Para contrariar estas normas, escolas no Alabama, Arkansas e Geórgia começaram a colar nos manuais de biologia etiquetas adesivas de aviso, como se aprender acerca da evolução pudesse pôr em perigo a saúde mental de alguém. Um exemplar recente de Cobb County, Geórgia, diz: “Este manual contem matéria sobre a evolução. A evolução é uma teoria, e não um facto, acerca da origem dos seres vivos. Esta matéria deve ser abordada com um espírito aberto, estudada cuidadosamente e avaliada criticamente”.
Para os leigos — principalmente quem não está familiarizado com o estatuto científico da evolução que é, na verdade, uma teoria e um facto — a linguagem pode parecer inofensiva. Mas em 2005 um juiz federal ordenou que as etiquetas autocolantes fossem retiradas. Escolhendo a evolução como claramente controversa entre as teorias científicas, as etiquetas alimentaram preconceitos religiosos e, portanto, violaram a Primeira Emenda.
Mas os criacionistas não perderam a esperança. Afinal de contas são estimulados pela fé. E têm mesmo muitos expedientes. Surgiram com o desígnio inteligente.
O desígnio inteligente, ou DI, é a recentíssima encarnação pseudocientífica do criacionismo religioso, habilidosamente arquitectada por um novo grupo de entusiastas para rodear restrições legais recentes. O DI assenta em dois aspectos. O primeiro é uma simples crítica da teoria da evolução no sentido de que o Darwinismo, enquanto explicação da origem, desenvolvimento e diversidade da vida, é totalmente inadequado. O segundo é a afirmação de que as principais características da vida se compreendem melhor como o resultado da criação por um autor sobrenatural inteligente. Portanto, para entender o DI, temos de perceber primeiro a moderna teoria da evolução (frequentemente chamada “neo-Darwinismo” para englobar as modificações pós-Darwinianas).
É importante compreender, desde já, que a evolução não é “apenas uma teoria”. É, repito, uma teoria e um facto. Embora muitas vezes os não cientistas equiparem “teoria” a “palpite” ou “especulação”, o Oxford English Dictionary define uma teoria científica como
“um conjunto ou sistema de ideias ou afirmações que se considera uma explicação ou justificação de um grupo de factos ou fenómenos; uma hipótese que foi confirmada ou ratificada por observação ou experimentação e é defendida ou aceite como suporte para os factos conhecidos”.
Em ciência, uma teoria é uma explicação convincente para a diversidade de informações dadas pela natureza. Assim, os cientistas falam da “teoria atómica” e da “teoria da gravidade” como explicações para as propriedades da matéria e para a atracção mútua dos corpos físicos. Faz tão pouco sentido duvidar da factualidade da evolução como duvidar da gravidade.
A teoria neo-Darwiniana não é uma proposição, mas várias. A primeira proposição é que as populações de organismos evoluíram (Darwin, que usou a palavra “evoluíram” apenas uma vez em A Origem da Espécies, apelidou este princípio de “descendência com modificação”). Isto é, as espécies hoje existentes na terra são os descendentes de outras espécies que viveram previamente, e a mudança nestas linhagens foi gradual, demorando de milhares a milhões de anos. Os seres humanos, por exemplo, evoluíram a partir de organismos claramente diferentes que tinham cérebros mais pequenos e provavelmente viviam nas árvores.
A segunda proposição é que se produzem continuamente novas formas de vida através da divisão de uma linhagem única em duas ou mais linhagens. Isto é conhecido como “especiação”. Há cerca de cinco milhões de anos uma espécie de primatas dividiu-se em duas linhas diferentes: uma que conduziu aos actuais chimpanzés e outra aos actuais humanos. E este antepassado primata partilhou ele próprio um antepassado comum com primatas mais antigos que, por sua vez, partilharam um antepassado comum com outros mamíferos. O mais antigo antepassado de todos os mamíferos partilhou um ainda mais antigo antepassado com os répteis e assim sucessivamente até à origem da vida. Uma tal divisão sucessiva permite a metáfora frequente de uma “árvore da vida” evolutiva, cuja raiz foi a primeira espécie a surgir e cujas rebentos são os milhões de espécies vivas. Cada duas espécies existentes partilham um antepassado comum, que pode, em princípio, ser encontrado recuando nesse par de rebentos, através dos ramos, até ao nó onde se juntam (naturalmente, a extinção suprimiu alguns ramos — pterodáctilos, por exemplo — que representam grupos que morreram sem deixar descendentes). Nós somos mais estreitamente aparentados com os chimpanzés do que com os orangotangos porque os antepassados que temos em comum com os primeiros viveram há cinco milhões de anos, ao passo que os antepassados que temos em comum com os segundos viveram há dez milhões de anos. (É importante frisar que apesar de partilharmos um antepassado comum com os macacos, nós não evoluímos a partir dos macacos existentes, mas de uma espécie antropóide que já não existe. Analogamente, eu sou aparentado com o meu primo, mas os antepassados que partilhamos são dois avós extintos).
A terceira proposição é que a maior parte (embora nem toda) da mudança evolutiva foi provavelmente estimulada por selecção natural: indivíduos portadores de genes que os fazem adaptar-se melhor ao meio envolvente deixam mais descendência do que os portadores de genes que os tornam menos adaptados. Ao longo do tempo, a composição genética da população muda, melhorando a sua “adaptação” ao meio. Esta crescente adaptação é o que dá aos organismos a aparência de desígnio; contudo, como veremos, o “desígnio” pode ser invalidado.
Estas três proposições foram enunciadas pela primeira vez por Darwin em 1859, em A Origem das Espécies, e não mudaram substancialmente, embora tenham sido aperfeiçoadas e complementadas por trabalho recente. Mas Darwin não apresentou estas ideias como pura “teoria”. Também forneceu provas extensas e convincentes para elas. O peso destas provas foi tão esmagador que arrasou o criacionismo. Num período de quinze anos, quase todos os biólogos, até então adeptos da “teologia natural”, abandonaram aquela perspectiva e aceitaram as duas primeiras proposições de Darwin. A ampla aceitação da selecção natural surgiu muito mais tarde, por volta de 1930.
As provas esmagadoras da evolução encontram-se em muitos livros (e em muitos websites). Quero apresentar aqui apenas algumas considerações que não só sustentam a causa neo-Darwinista como, ao fazê-lo, refutam a teoria alternativa do criacionismo — que Deus criou especificamente os organismos e os seus atributos. Atendendo à semelhança entre as pretensões do desígnio inteligente e do criacionismo, não é surpreendente que estas considerações refutem igualmente os princípios fundamentais do DI.
O registo fóssil é o sítio mais óbvio para procurar as provas da evolução. Embora no tempo de Darwin o registo fóssil fosse escasso, havia já achados que sugeriam a evolução. Os tatús existentes na América do Sul tinham semelhanças surpreendentes com os gliptodontes fossilizados, um mamífero couraçado cujos fósseis foram encontrados na mesma região. Isto deu a entender que gliptodontes e tatús partilharam uma ascendência Sul-americana comum. E o registo revelou claramente mudanças nas formas de vida presentes no decurso de extensos períodos de tempo, com os sedimentos mais profundos e antigos a mostrar invertebrados marinhos, com peixes a aparecer muito mais tarde e, ainda mais tarde, anfíbios, répteis e mamíferos (juntamente com a persistência de alguns grupos encontrados em períodos mais primitivos). Esta sequência de mudança foi, de facto, estabelecida por geólogos criacionistas muito antes de Darwin e considerava-se repetidamente que reflectia centenas de actos de criação divina (isto não é propriamente compatível com o relato do Génesis).
Acresce que a evolução não prevê apenas séries de formas, mas também linhas evolutivas genéticas de antepassados para descendentes. A ausência de tais séries de transição no registo fóssil incomodou Darwin, que chamou a isto “a mais óbvia e séria objecção que pode ser brandida contra a teoria”. (Ele atribuiu os elos em falta, muito razoavelmente, à imperfeição do registo fóssil e à escassez de colecções paleontológicas.) Mas esta objecção já não é válida. Desde 1859, os paleontólogos descobriram as provas que faltavam: fósseis em profusão, com muitas sequências a mostrarem a mudança evolutiva. Em grandes e pequenos organismos, podemos identificar, através de sucessivas camadas do registo fóssil, mudanças evolutivas ocorridas nas linhagens. As diatomáceas tornam-se maiores, as conchas das ostras ficam mais duras, os cavalos tornam-se maiores e mais dentados e a linhagem humana desenvolve cérebros maiores, dentes mais pequenos e aumenta a eficiência de caminhante bípede. Além disso, temos agora formas de transição que ligam os principais grupos de organismos, incluindo peixes com tetrápodes, dinossauros com aves, répteis com mamíferos e mamíferos terrestres com baleias. Darwin previu que tais formas seriam encontradas e a sua descoberta deu-lhe completa razão. Tal descoberta também destrói a concepção criacionista de que as espécies foram criadas na sua actual forma e depois disso permaneceram inalteradas.
A segunda linha de provas a favor de Darwin consistiu em vestígios de desenvolvimento e de estruturas de ascendências antigas que encontramos em espécies existentes — aqueles traços que Stephen Jay Gould apelidou de “absurdos sinais da história”. Os exemplos abundam. Quer aves quer papa-formigas desdentados desenvolvem germes dentários enquanto embriões, mas os dentes são abortados e nunca irrompem; os germes são vestígios do antepassado reptiliano das aves e do antepassado dentado dos papa-formigas. O quivi não voador da Nova Zelândia, que nos é familiar por causa das latas de graxa para os sapatos,3 tem vestígios ténues de asas escondidos debaixo da plumagem; são completamente inúteis, mas confirmam que os quivis, à semelhança de todas as aves não voadoras, evoluíram a partir de antepassados voadores. Alguns animais das cavernas, que descendem de antepassados visuais que as invadiram, têm olhos rudimentares que não podem ver. Os olhos degeneraram depois de não serem necessários durante longo tempo. Um criador, sobretudo um criador inteligente, não conferiria germes dentários, asas ou olhos inúteis a um grande número de espécies.
O corpo humano é, igualmente, um palimpsesto da nossa ascendência. O nosso apêndice é o resíduo vestigial de um saco intestinal utilizado para fermentar as dietas vegetais de difícil digestão dos nossos antepassados. (Os orangotangos e os animais de pastagens têm um apêndice côncavo em vez de um pequenino e vermiforme como o nosso.) Um apêndice é simplesmente uma coisa má para se ter. Não é, certamente, o produto do desígnio inteligente: quantos seres humanos morreram de apendicite antes de a cirurgia ser descoberta? E consideremos também o lanugo. Cinco meses após a concepção, os fetos humanos desenvolvem uma fina camada de pelugem, chamada lanugo, que cobre todo o seu corpo. Parece não ter qualquer utilidade — apesar de tudo estão uns confortáveis 37 graus dentro do útero — e a pelugem é habitualmente largada imediatamente antes do nascimento. Esta característica somente faz sentido como vestígio evolutivo da nossa ascendência primata; os fetos dos macacos também desenvolvem uma tal cobertura, mas não a largam.
Estudos recente do genoma humano forneceram mais provas de que não fomos criados do nada. O nosso genoma é uma verdadeira amálgama de ADN inútil, incluindo muitos “pseudogenes” inactivos que foram funcionais nos nossos antepassados. Porque é que nós, seres humanos, diferentemente da maior parte dos mamíferos, necessitamos de vitamina C na nossa dieta? Porque os primatas não conseguem sintetizar este nutriente essencial a partir de químicos mais simples. Apesar de transportarmos todos os genes necessários à sintetização da vitamina C. O gene utilizado para o último passo nesta via de biossíntese foi desactivado por mutações há quarenta milhões de anos, provavelmente porque não era necessário nos primatas frugívoros. Mas ainda subsiste no nosso ADN, um dos muitos vestígios inúteis que dão testemunho da nossa ascendência evolutiva.
A terceira linha de provas a favor de Darwin vem da biogeografia, o estudo da distribuição geográfica das plantas e dos animais. Já mencionei aquilo que Darwin chamou de “Lei da Sucessão”: os organismos existentes numa região assemelham-se mais estreitamente aos fósseis encontrados no mesmo sítio. Isto implica que evoluíram a partir deles. Mas Darwin encontrou as suas mais sólidas provas nas “ilhas oceânicas” — aquelas ilhas que, como o Hawai ou as Galápagos, nunca estiveram ligadas a continentes mas se ergueram, desprovidas de vida, a partir do fundo do mar.
O que impressionou Darwin nas ilhas oceânicas — por contraste com os continentes ou as “ilhas continentais” como a Grã-bretanha, que já estiveram ligadas a continentes — foi a natureza bizarra das suas flora e fauna. As ilhas oceânicas estão simplesmente desprovidas ou depauperadas relativamente a muitos tipos de animais. O Hawai não tem mamíferos, répteis ou anfíbios nativos. Estes animais, bem como peixes de água doce, também faltam em Santa Helena, uma remota ilha oceânica no meio do Oceano Atlântico Sul. Parece que o autor inteligente se esqueceu de abastecer as ilhas oceânicas (mas não as continentais!) com uma diversidade suficiente de animais. Poder-se-ia dizer que foi uma estratégia do criador, dado que aqueles organismos poderiam não sobreviver nas ilhas. Mas esta alegação falha, porque tais animais muitas vezes se dão espectacularmente bem quando introduzidos pelos humanos. O Hawai foi invadido por bufos-marinhos e mangustos que foram lá introduzidos, em detrimento da sua fauna nativa.
Espantosamente, os grupos nativos presentes nestas ilhas — principalmente plantas, insectos e aves — existem em profusão, sendo formados por aglomerados de numerosas espécies similares. O arquipélago das Galápagos abriga vinte e três espécies de aves terrestres, das quais catorze são tentilhões. Em nenhuma outra parte do mundo encontrareis uma região na qual dois terços das aves são tentilhões. O Hawai tem “difusões” similares de moscas da fruta e de plantas argirofilas, enquanto Santa Helena está sobrecarregada de fetos e gorgulhos. Em comparação com os continentes ou com as ilhas continentais, portanto, as ilhas oceânicas têm fauna e flora desequilibradas, carecendo de muitos grupos familiares mas tendo uma sobre-representação de algumas espécies.
Além disso, os animais e plantas que povoam as ilhas oceânicas apresentam uma maior semelhança com as espécies encontradas nos continentes mais próximos. Como Darwin frisou quando descreveu as espécies das Galápagos, esta semelhança ocorre apesar da grande diferença no habitat, uma realidade que milita contra o criacionismo:
Por que razão as espécies que supostamente foram criadas no Arquipélago das Galápagos, e em nenhuma outra parte, hão-de apresentar tão claramente uma marca de afinidade com as que foram criadas na América? Nada existe nas condições de vida, na natureza geológica das ilhas, na sua altitude ou clima, ou nas proporções nas quais diferentes classes estão associadas umas às outras, que se pareça estreitamente com as condições da costa Sul-americana: na verdade, há uma considerável diferença em todos estes aspectos.
Como marco final no argumento biogeográfico de Darwin, ele observou que as classes de organismos geralmente encontradas nas ilhas oceânicas — aves, plantas e insectos — são aquelas que podem lá chegar facilmente. Insectos e aves podem voar (ou ser soprados pelos ventos), e as sementes das plantas podem ser transportadas pelos ventos ou correntes oceânicas, ou no estômago das aves. O Hawai pode não ter mamíferos terrestres nativos, mas as ilhas abrigam um mamífero aquático nativo, a foca monge, e um mamífero voador nativo, o morcego branco. Num desafio directo aos criacionistas (e agora também aos defensores do DI), Darwin formulou esta pergunta retórica:
Embora não se encontrem mamíferos terrestres nas ilhas oceânicas, aparecem mamíferos aéreos em quase todas as ilhas. A Nova Zelândia tem dois morcegos que em nenhuma outra parte se encontram. A Ilha de Norfolk, o Arquipélago de Viti, os Arquipélagos de Carolina e Mariana e das Ilhas Maurícias, têm todos os seus morcegos peculiares. Por que razão, poder-se-á perguntar, a alegada força criadora produziu morcegos nas ilhas remotas e não outros mamíferos?
A resposta é que a força criadora não produziu morcegos, nem quaisquer outras criaturas, nas ilhas oceânicas. Todas as observações de Darwin acerca da biogeografia insular apontam para uma explicação: nas ilhas oceânicas as espécies descendem de indivíduos que as colonizaram com sucesso a partir dos continentes e subsequentemente evoluíram para novas espécies. Somente a teoria da evolução explica a escassez de mamíferos, aves, répteis, anfíbios e peixes de água doce nas ilhas oceânicas (não conseguem lá chegar), a irradiação de alguns grupos para muitas espécies (as poucas espécies que alcançam as ilhas encontram nichos ecológicos despovoados e especiam profusamente), e a semelhança das espécies insulares com as dos continentes vizinhos (é mais provável que um colonizador insular tenha vindo da origem mais próxima).
Nos últimos 150 anos foram recolhidas enormes quantidades de novas provas a respeito da biogeografia, da embriologia e, principalmente, do registo fóssil. Todas elas sustentam a evolução. Mas o suporte para a ideia da selecção natural não foi tão forte e Darwin não teve provas directas para ela. Alternativamente, apoiou-se em dois argumentos. O primeiro foi lógico. Se os indivíduos numa população variaram geneticamente (o que fizeram) e algumas destas variações afectaram a possibilidade do indivíduo deixar descendentes (o que parece provável), então a selecção natural pôde funcionar automaticamente, enriquecendo a população com genes que adaptaram melhor os indivíduos ao seu meio.
O segundo argumento foi analógico. A selecção artificial utilizada pelos criadores provocou imensas alterações em plantas e animais, uma realidade familiar a todos. A partir do antepassado lobo, os seres humanos fizeram a selecção de formas tão diversas como Chihuahuas, São Bernardos, poodles e buldogues. Partindo da couve selvagem, os criadores produziram couve doméstica, brócolos, rábano, couve lombarda, couve-flor e couves de Bruxelas. A selecção artificial é quase idêntica à selecção natural, com a excepção de que são os seres humanos, em vez do meio ambiente, quem determina quais as variedades que deixam descendência. E se a selecção artificial pode produzir uma tal diversidade de animais e plantas domesticados em mil e poucos anos, a selecção natural pôde, obviamente, fazer muito mais ao longo de milhões e anos.
Mas nós não precisamos mais de sustentar a selecção natural apenas com analogia e lógica. Os biólogos, agora, já observaram centenas de casos de selecção natural, começando pelos bem conhecidos exemplos da resistência das bactérias aos antibióticos, da resistência dos insectos ao DDT e da resistência do HIV aos medicamentos antivirais. A selecção natural explica a resistência de peixes e ratos aos predadores tornando-os mais camuflados, bem como a adaptação das plantas aos minerais tóxicos existentes no solo. (Uma longa lista de exemplos pode ser encontrada em Natural Selection in the Wild, de John Endler). Além disso, a eficácia da selecção observada na natureza, quando extrapolada para longos períodos, é mais do que suficiente para explicar a diversificação da vida na Terra.
Desde 1859 as teorias de Darwin têm sido desenvolvidas e agora sabemos que algumas mudanças evolutivas não podem ser causadas por forças diferentes da selecção natural. Por exemplo, as mudanças fortuitas e não adaptativas nas frequências de diferentes variantes genéticas — o equivalente genético da “moeda ao ar” — produziram mudanças evolutivas nas sequências de ADN. Se bem que a selecção natural seja ainda a única força evolutiva conhecida que pode produzir o ajustamento entre o organismo e o meio envolvente (ou entre organismo e organismo), isto faz a natureza parecer “projectada”. Como sublinhou o geneticista Theodosius Dobzhansky, “nada faz sentido na biologia a não ser à luz da evolução”.
E, deste modo, a evolução tem avançado de teoria para facto. Sabemos que as espécies de hoje na terra descendem de mais antigas e diferentes espécies e que cada par de espécies teve um antepassado comum que existiu no passado. A maior parte da mudança evolutiva nas características dos organismos é, aliás, quase de certeza o resultado da selecção natural. Mas temos também de nos lembrar de que, como acontece com todas as verdades científicas, a verdade da evolução é provisória: pode, de forma concebível, ser deitada abaixo por futuras investigações. É possível (mas improvável!) que possamos encontrar fósseis humanos coexistindo com dinossauros, ou fósseis de aves subsistindo lado a lado com os dos primitivos invertebrados de há 600 milhões de anos. Ou a observação poderá afundar o neo-Darwinismo para sempre.
Quando aplicada à evolução, a errónea distinção entre teoria e facto mostra por que razão tácticas como as do aviso de Dover e da etiqueta adesiva do manual de Cobb County são duplamente perniciosas. Ensinar que uma teoria científica é equivalente a uma “suposição” ou a um “palpite” é profundamente enganador e afirmar que “a evolução é uma teoria, não um facto” é simplesmente falso. E por que motivo deveria a evolução, sozinha entre várias teorias científicas, ser discriminada com o aviso “Esta matéria deve ser abordada com um espírito aberto, estudada cuidadosamente e avaliada criticamente”? Por que razão os conselhos de instrução não têm posto avisos similares nos manuais de física, observando que gravidade e electrões são apenas teorias, não factos, e devem ser avaliados criticamente? Apesar de tudo, ninguém alguma vez viu a gravidade ou um electrão. A razão pela qual a evolução está numa posição isolada é clara: as outras teorias científicas não ofendem sensibilidades religiosas.
Atendendo às abundantes provas da evolução, parece inverosímil que venha a ser substituída por uma teoria alternativa. Porém, é exactamente isso que os criacionistas do desígnio inteligente pretendem. Haverá, então, quaisquer novas provas espectaculares, ou alguma insuficiência do neo-Darwinismo, que justifiquem o derrube da teoria da evolução?
A pergunta merece ser formulada, mas a resposta é “Não”. O desígnio inteligente mais não é do que a terceira tentativa dos criacionistas para transformarem as nossas crianças em prosélitos à custa da boa ciência e do pensamento livre. Tendo falhado em proscrever a evolução das escolas e, mais tarde, em conseguir um sistema de “equal time” na sala de aulas para o criacionismo científico, levaram a cabo ligeiros ajustamentos concebidos para fazer passar furtivamente a cosmogonia cristã pelo filtro da Primeira Emenda. E estes ajustamentos deram ao DI uma popularidade de que as primitivas formas de criacionismo nunca tinham gozado. Até o presidente dos Estados Unidos prestou uma atenção compreensiva: George W. Bush disse recentemente aos jornalistas, no Texas, que o desígnio inteligente devia ser ensinado nas escolas públicas ao lado da evolução porque “a função da educação é expor as pessoas a diferentes escolas de pensamento”. Artigos escritos por DIistas(4), ou sobre a sua “teoria”, aparecem regularmente em publicações de referência, como o The New York Times.
Porque é que a nova imagem e a nova abordagem têm sido mais bem-sucedidas? Para começar, os DIistas têm enganado muita gente porque, além do mais, apagaram deus da fotografia ou, pelo menos, esconderam-no atrás da moldura. Os criacionistas já não mencionam uma divindade, ou mesmo um criador, mas simplesmente um vago “autor inteligente”, como se isso não fosse a mesma coisa. Este autor poderia, em princípio, ser Brama, ou o Taoista Pan Ku, ou mesmo um extraterrestre; mas os criacionistas do DI, como será evidente para qualquer pessoa que preste atenção a tudo o que eles dizem, têm em mente apenas uma entidade: o Deus bíblico. O problema deles é que invocar esta divindade nas aulas de ciências nas escolas públicas é inconstitucional. Os DIistas, portanto, nunca se referem a Deus abertamente e as pessoas que não estão familiarizadas com a sua doutrina criacionista podem acreditar que há uma nova teoria científica real a caminho. Eles têm o hábito de abusar de novos termos, tais como “complexidade irredutível”, o que faz os seus argumentos pareceram mais sofisticados do que os dos primitivos criacionistas.
Além disso, muitos DIistas têm credenciais académicas mais impressionantes do que os criacionistas científicos originais, cujos discursos e atitudes grotescas sempre lhes deram um ar de reuniões revivificadoras(5). Diferentemente dos criacionistas científicos, muitos DIistas trabalham em instituições laicas em vez de o fazerem em escolas bíblicas. Os DIistas trabalham, falam e escrevem como académicos disciplinados; não se apresentam como pobres evangelistas deprimidos. As suas fileiras incluem Phillip Johnson, o mais proeminente porta-voz do DI e professor de direito reformado da Universidade da Califórnia, Berkeley; Michael Behe, professor de bioquímica na Universidade de Lehigh; William Bembski, matemático-filósofo e director do Centro para a Teologia e a Ciência no Seminário Teológico Baptista do Sul; e Jonathan Wells, que tem um doutoramento em biologia por Berkeley.
Todos estes proponentes, excepto Johnson, são associados sénior do Centro para a Ciência e Cultura [Center for Science and Culture: CSC], uma divisão do Instituto da Descoberta, que é um “think tank” conservador de Seattle (Johnson é o “consultor de programas” do CSC). O CSC é o centro nervoso do movimento do desígnio inteligente. As suas origens são incontestavelmente religiosas: de acordo com a descrição do Instituto da Descoberta, o CSC foi explicitamente arquitectado para “derrotar o materialismo científico e os seus destrutivos legados moral, cultural e político” e “para substituir as explicações materialistas pelo entendimento teísta de que a natureza e os seres humanos são criados por Deus”. No seu conjunto, estes DIistas publicaram mais de uma dúzia de livros sobre o desígnio inteligente (Johnson sozinho produziu oito), os quais provocaram, por sua vez, numerosas respostas da parte dos cientistas. Examinemos uma das suas mais influentes obras, o manual chamado Of Pandas and People. Este é o livro recomendado pelo distrito escolar de Dover como “obra de consulta” para os estudantes interessados em aprender acerca do desígnio inteligente.
Of Pandas and People é um manual arquitectado como um antídoto para a secção de evolução das aulas de biologia do liceu. Foi publicado pela primeira vez em 1989. Ao reembrulhar e actualizar os argumentos tradicionais dos criacionistas da “terra jovem”, enquanto evita tomar uma posição em alguns problemas que poderiam dividir os criacionistas (tais como a idade da Terra), o livro marcou o início do moderno movimento do desígnio inteligente. Ao apresentar a defesa do desígnio inteligente, foi presumivelmente projectado para dar aos estudantes uma “perspectiva equilibrada” acerca da evolução. Embora a segunda edição do Pandas tenha agora doze anos (uma terceira edição, chamada Design of Life, está em preparação), apresenta aos estudantes, minuciosamente, os principais argumentos a favor do desígnio inteligente.
O Pandas evita cuidadosamente referir Deus (excepto sob pseudónimos tais como “autor inteligente”, “inteligência dominante”, etc.); mas uma pequena pesquisa mais minuciosa revela as profundas raízes religiosas do livro. Um dos seus autores, Percival Davis, escreveu explicitamente acerca das suas crenças religiosas no seu livro A Case for Creation, em co-autoria com Wayne Frair:
A verdade como Deus a vê é revelada nas páginas da Escritura e essa revelação é, por esse motivo, seguramente mais verdadeira do que qualquer racionalismo humano. Para o criacionista, a verdade revelada controla a sua maneira de ver o universo pelo menos a um nível tão elevado quanto aquele que tenha sido proposto utilizando o método científico.
O outro autor do Pandas, Dean Kenyon, tem escrito de uma forma aprovadora sobre o criacionismo científico.
O Pandas é publicado pela Haughton Publishing Company of Dallas, uma editora de livros agrícolas, mas os direitos são detidos pela Fundação para o Pensamento e a Ética [Foundation for Thought and Ethics: FTE] de Richardson, Texas. Embora o website da FTE evite escrupulosamente referir-se à religião, os seus artigos de incorporação frisam com total clareza que o
objectivo fundamental é não só religioso mas também pedagógico, o que inclui (mas não se limita a) proclamar, pregar, ensinar, promover, radiodifundir, espalhar e por qualquer meio tornar conhecida a inquestionável verdade e entendimento cristãos da Bíblia e a luz que ela derrama sobre os problemas académicos e sociais dos nossos dias.
Numa carta para recolha de fundos para a projectada terceira edição do Pandas, John Buell, presidente da FTE, é igualmente franco acerca dos seus propósitos:
Iremos continuar energicamente a publicar e a impulsionar estas ferramentas estratégicas na batalha para conquistar os espíritos e os corações da nossa juventude... Sim, a maior parte dos jovens Americanos são expostos a numerosas apresentações evangélicas. Mas a névoa da estranha maneira de ver o mundo enfraquece as suas respostas. Esta é a razão pela qual temos de os inundar com uma perspectiva do mundo judaico-cristã racional, defensável, bem fundamentada. Os livros da FTE, fruto de cuidadosa investigação, fazem precisamente isso.
Charles Thaxton, o “editor académico” do Pandas, é o director do programa de investigação da FTE e um associado do CSC. Num livro proto-DI sobre a origem da vida, Thaxton argumentou que a “Criação Específica por um Criador que está para além do cosmos é uma perspectiva plausível da origem da ciência”.
Atendendo à genealogia do Pandas e às filiações dos seus autores, não é surpreendente que o livro nada mais seja do que criacionismo disfarçado. O que é surpreendente é a transparência deste disfarce. Apesar dos esforços dos DIistas para aparecerem com novos argumentos anti-Darwinistas, o Pandas demonstra nada mais ser do que criacionismo científico reciclado, com a maior parte dos argumentos retocados e exibidos como novos. (Contudo, diferentemente do criacionismo científico, o Pandas adopta uma neutralidade deliberada para com as realidades da astronomia e da geologia, em vez de as negar abertamente).
O discurso do Pandas acerca da idade da Terra é um excelente exemplo das raízes criacionistas do livro e da sua atitude anti-científica. Se a Terra fosse jovem — digamos entre os 6 000 e os 10 000 anos postulados pelos criacionistas bíblicos da “terra jovem” — então a evolução seria falsa. A vida simplesmente não poderia ter surgido, evoluído e diversificado num espaço de tempo tão curto. Mas agora nós sabemos, a partir de várias linhas de prova independentes e mutuamente corroborantes, que a Terra tem 4,6 milhares de milhões de anos. Todos os geólogos estão de acordo quanto a isto. Então, qual é a posição do Pandas em relação a esta questão decisiva? O livro refere simplesmente que os proponentes do desígnio “estão divididos quanto ao problema da idade da terra. Alguns adoptam a perspectiva de que a história da terra pode ser condensada num modelo de milhares de anos, enquanto outros aceitam a cronologia canónica da “terra antiga”. Bom, qual é a verdade? Este subterfúgio é uma tentativa de encobrir um forte desacordo entre criacionistas da “terra jovem” e criacionistas da “terra antiga”, que têm ambos marchado juntos sob a bandeira do DI. É típico dos criacionistas explorar discordâncias entre evolucionistas como prova de que o neo-darwinismo está morto enquanto, ao mesmo tempo, escondem do público o seu próprio desacordo.
Este subterfúgio acerca da realidade fundamental da idade da Terra não é bom presságio para o tratamento dado pelo livro ao registo fóssil. De facto, nesta área os autores continuam as suas falsidades. A sua premissa fundamental é o velho argumento criacionista de que os organismos apareceram ao mesmo tempo e têm permanecido consideravelmente inalterados desde então. O Pandas diz do registo fóssil que “organismos inteiramente formados aparecem de repente, separados por diferentes hiatos”. Isso não é propriamente verdade. Diferentes grupos de organismos aparecem numa sequência distinta corroborando a evolução. Os primeiros fósseis de organismos vivos, as bactérias, aparecem há 3,5 milhares de milhões de anos, seguidos, dois milhares de milhões de anos mais tarde, pelas algas, os primeiros organismos a ter verdadeiras células com um núcleo contendo distintos cromossomas. Então, há 600 milhões de anos, vemos o aparecimento de animais rudimentares com conchas, e de muitos organismos marinhos de corpo mole. Mais tarde, no período câmbrico, há cerca de 543 milhões de anos, um grande número de grupos surgiu num período de tempo relativamente curto, a comummente chamada “explosão do câmbrico”. (“Período curto” aqui significa geologicamente curto, neste caso de 10 milhões a 30 milhões de anos). Os grupos câmbricos abrangem moluscos, estrelas-do-mar, artrópodes, vermes e cordados (incluindo vertebrados). E em alguns casos, tais como os vermes, os grupos modernos não só se desenvolvem para novos seres, mas também intensificam a sua complexidade ao longo de milhões de anos.
Os criacionistas sempre tiraram grande partido da “explosão do câmbrico” e os DIistas não são excepção. O aparecimento relativamente súbito de muitos grupos parece sustentar a perspectiva da criação do Génesis. Mas os DIistas — e o Pandas — falham ao realçar vários factos. Em primeiro lugar, a explosão Cambriana não foi “súbita”; demorou muitos milhões de anos. (Ainda não compreendemos por que razão muitos grupos surgiram neste curto período de tempo, ainda que apenas relativamente curto, embora isso possa ser um artefacto6: a evolução de partes duras facilmente fossilizáveis fez repentinamente os organismos susceptíveis de serem fossilizados.) Além disso, as espécies do câmbrico já não estão entre nós, ainda que os seus descendentes o estejam. E ao longo do tempo, quase todas as espécies que alguma vez existiram (mais de 99% delas), extinguiram-se sem deixar descendentes. Finalmente, grande quantidade de animais e plantas não se mostram como fósseis até bem depois da explosão do câmbrico: os peixes com espinhas e as plantas terrestres apareceram pela primeira vez há aproximadamente 440 milhões de anos, os répteis há cerca de 350 milhões de anos, os mamíferos há volta de 250 milhões de anos, as plantas florescentes aproximadamente há 210 milhões de anos e os antepassados dos seres humanos há cerca de 5 milhões de anos. O desconcertante aparecimento de grupos que se tornaram tão diferentes durante os últimos 500 milhões de anos não dá sustentação à noção de espécies criadas instantaneamente que depois permanecem praticamente inalteradas. Se o registo reflecte os esforços de um autor inteligente, ele estava aparentemente insatisfeito com quase todas as suas criações, destruindo-as repetidamente e voltando a criar uma nova série de espécies que por acaso parecem descendentes daquelas que ele tinha destruído.
O Pandas também faz muito caso da alegada ausência de formas de transição: os elos “perdidos” entre as principais formas de vida que, de acordo com a teoria da evolução, devem ter existido como antepassados comuns. A sua ausência, defendem os criacionistas, é o principal obstáculo para a biologia evolutiva. O influente livro de Phillip Johnson Darwin on Trial, que apareceu em 1993, dá particular ênfase a estes hiatos, os quais, pensam os DIistas, reflectem a criação, pelo autor inteligente, das principais formas de vida a partir “do nada”. E há, com efeito, alguns animais, como os morcegos, que aparecem no registo fóssil repentinamente, sem antepassados óbvios. Contudo, na maior parte dos casos estes hiatos são certamente devidos à imperfeição do registo fóssil. (A maior parte dos organismos não ficam soterrados em sedimentos aquáticos, o que é um requisito prévio para a fossilização.) E as espécies que têm corpos moles ou ossos frágeis, como morcegos, degradam-se antes de poderem fossilizar. Os paleontólogos estimam que temos fósseis que representam somente cerca de uma milésima parte de todas as espécies que alguma vez viveram.
No seu tratamento das transições evolutivas, o Pandas é, de novo, culpado de distorção. Os paleontólogos descobriram muitas formas de transição entre os principais grupos, quase mais do que as que temos o direito de esperar. O Pandas simplesmente ignora — ou rejeita — estes “elos não perdidos”, proclamando que “nós não podemos construir séries de transição regulares e inequívocas ligando, digamos, o primitivo pequeno cavalo ao cavalo de hoje, os peixes aos anfíbios ou os répteis aos mamíferos”. Isto é absolutamente errado. Todas as três citadas transições (e outras) estão bem documentadas com fósseis. Além disso, as formas de transição aparecem no registo fóssil exactamente no tempo certo: depois de as formas ancestrais já terem existido, mas antes de o grupo seguinte da “cadeia” ter evoluído.
Consideremos um exemplo: O elo entre répteis primitivos e mamíferos, os comummente chamados répteis “semelhantes aos mamíferos”. Há trezentos e cinquenta milhões de anos, o mundo estava cheio de répteis, mas não havia mamíferos. Há perto de 250 milhões de anos os mamíferos apareceram em cena. (Os répteis fossilizados distinguem-se facilmente dos mamíferos fossilizados por um conjunto de traços esqueléticos incluindo as características dos dentes e do crânio.) Há cerca de 275 milhões de anos, aparecem formas que, em termos de traços esqueléticos, eram intermédias entre répteis e mamíferos, em alguns casos tão intermédias que os animais não podem ser classificados, inequivocamente, quer como répteis quer como mamíferos. Estes répteis “semelhantes aos mamíferos” que, com o tempo, se tornaram menos répteis e mais mamíferos, são os elos “não mais perdidos” entre as duas formas, importantes não só porque têm traços de ambas as formas, mas também porque aparecem exactamente no momento certo.
Vale a pena examinar em detalhe um destes traços porque está entre os mais admiráveis exemplos de uma transição evolutiva. Este traço é a charneira de “mastigação” onde a mandíbula se junta com o crânio. Nos répteis primitivos (e nos seus descendentes reptilianos modernos), a mandíbula inferior compreende vários ossos e a charneira é formada pelo osso quadrado do crânio e pelo osso articular da mandíbula. À medida que os répteis “semelhantes aos mamíferos” se tornam mais mamíferos, estes ossos charneira tornam-se mais pequenos e, finalmente, a charneira da mandíbula transfere-se para um par de ossos diferentes: o dentário (o nosso “osso maxilar”) e o esquamosal, outro osso do crânio. (O quadrado e o articular, muito reduzidos, deslocaram-se para o ouvido médio dos mamíferos, constituindo dois dos ossos que transmitem os sons do tímpano para o ouvido médio.) A articulação dentário-esquamosal aparece em todos os mamíferos modernos, a quadrado-articular nos répteis modernos; e esta diferença é muitas vezes utilizada como a característica definidora destes grupos.
À semelhança dos panfletos dos criacionistas primitivos, o Pandas pura e simplesmente nega que esta evolução da charneira da mandíbula tenha ocorrido. Ele afirma que “não existe registo fóssil de tão espantoso processo” e mais adiante frisa que tal transição seria “extraordinária”. Isto reproduz o velho argumento criacionista de que uma transição adaptativa de um tipo de charneira para outro por meio da selecção natural seria impossível. Os membros de uma espécie não poderiam comer durante o período evolutivo em que as suas mandíbulas estivessem a ser desarticuladas e depois rearticuladas. (A insinuação é de que o autor inteligente deve ter feito este trabalho instantânea e miraculosamente.) Mas nós temos um amplo conhecimento da forma como esta transição aconteceu. Foi facilmente realizada pela selecção natural. Em 1958, Alfred Crompton descreveu o fóssil decisivo: o réptil “semelhante aos mamíferos” Diarthrognathus broomi. O D. Broomi tinha, de facto, uma mandíbula dupla ligada com duas charneiras — a reptiliana e a dos mamíferos! Este animal pôde, obviamente, mastigar. Que melhor “elo perdido” poderíamos ter encontrado?
O facto de tantos elos perdidos referidos pelo Pandas como prova de uma intervenção sobrenatural não mais estarem perdidos deveria embaraçar os DIistas. Os criacionistas cometem um erro grave ao utilizar a ausência de fósseis de transição como prova da existência de um autor inteligente do desígnio. Na última década, os paleontólogos descobriram uma série evolutiva de baleias razoavelmente completa, começando pelos animais totalmente terrestres que se tornaram cada vez mais aquáticos no decurso do tempo, com os seus membros anteriores evoluindo para barbatanas e os seus membros posteriores e pélvis reduzindo-se gradualmente a ténues vestígios. Quando tais fósseis são encontrados, como o são muitas vezes, os criacionistas têm então de desistir e de mudar a sua ênfase para outros elos perdidos, retrocedendo continuamente face ao avanço da ciência.
Quanto a outra formas de transição, os DIistas ignoram-nas simplesmente como fósseis aberrantes. O Pandas caracteriza o Homo erectus e outros prováveis antepassados dos seres humanos como “pouco mais do que macacos”. Mas isto é falso. Embora o Homo erectus tenha um crânio com extensas arcadas supraciliares e uma caixa cerebral muito mais pequena do que a nossa, o resto do esqueleto é quase idêntico ao dos modernos seres humanos. O famoso fóssil Arqueoptérix, uma pequena criatura “semelhante aos dinossauros” com dentes e um esqueleto basicamente reptiliano mas também com asas e penas, é provavelmente próximo ou estreitamente relacionado com a linha de dinossauros que evoluiu para aves. Mas o Pandas ignora este fóssil como uma mera espécie “excêntrica” e lamenta, em vez disso, a falta do que não é fossilizável:
se ao menos pudéssemos encontrar um fóssil que mostrasse sequências de desenvolvimento das propriedades das penas, ou pulmões que fossem intermédios entre os tão diferentes pulmões reptilianos e aviculares, então poderíamos ter mais alguma coisa para seguir em frente.
É, de novo, uma típica estratégia criacionista de, quando aparecem inesperadamente esqueletos de elos perdidos, os criacionistas os ignorarem e insistirem, em alternativa, que devem ser procuradas provas de intermediação em partes móveis que raramente fossilizam. Em resumo, no Pandas o tratamento das provas fósseis da evolução é de má qualidade e enganador e não apresenta progressos em relação aos desacreditados argumentos do criacionismo científico.
Em contraste com o fastidioso tratamento e rejeição do registo fóssil, o Pandas ocupa-se muito pouco das provas da evolução a partir de traços vestigiais e de desenvolvimento. O melhor que consegue fazer é notar que as características rudimentares podem ter uma função e, portanto, não são realmente vestigiais. Os ossos pélvicos e as pernas vestigiais da baleia transacional Basilosaurus, que não estavam ligados ao esqueleto, podem ter funcionado como um guia para o pénis durante o acasalamento. Uma tal utilização, de acordo com os autores do Pandas, significa que as pernas e a pélvis “não eram vestigiais como se pensou inicialmente”. Mas este argumento está errado. Nenhum evolucionista nega que os vestígios de traços ancestrais podem conservar alguma funcionalidade ou serem cooptados para outros usos. O “guia do pénis” tem todos os ossos da pélvis e da perna traseira dos mamíferos em ponto pequeno (fémur, tíbia, perónio e dedos). No Basilosaurus, quase todas estas estruturas estão no interior da parede do corpo e a maior parte era imóvel. Aparentemente, o autor inteligente teve um rasgo de engenho extravagante, escolhendo construir um auxiliar sexual que parecia exactamente como que uma pélvis degenerada e um conjunto de membros posteriores.
E quanto às provas da evolução a partir da biogeografia? Em relação a isto o Pandas, à semelhança de todos os livros criacionistas, não diz nada. A omissão é estratégica. Seria muito difícil os DIistas darem razões plausíveis para o motivo pelo qual um autor “inteligente” abasteceu as ilhas oceânicas somente com uns poucos grupos de animais e plantas — e precisamente os grupos com a capacidade para se espalharem a partir do continente mais próximo. A biogeografia tem sido sempre o calcanhar de Aquiles dos criacionistas, portanto ignoram-na, simplesmente.
Embora o desígnio inteligente rejeite muitas das provas da evolução, ainda admite que se verifica alguma mudança evolutiva através da selecção natural. Esta mudança é aquilo que o Pandas chama de “microevolução” ou “mudanças genéticas em pequena escala, observáveis nos organismos”. Tais mudanças microevolutivas incluem a evolução da resistência aos antibióticos nas bactérias, as mudanças na proporção das diferentes cores das borboletas nocturnas devidas à predação por parte das aves e todas as mudanças induzidas pela selecção artificial. Mas o Pandas apressa-se a acrescentar que a microevolução não oferece provas para a origem de diversas espécies de organismos, porque
“estas mudanças limitadas não atingem a dimensão que a teoria evolucionista Darwinista requer para produzir macromudanças. O processo que produz mudanças macroevolutivas (definido aqui como “mudanças em larga escala, conduzindo a novos níveis de complexidade”) tem de ser diferente de tudo o que os geneticistas estudaram até agora”.
Assim, ainda que possamos utilizar a selecção para transformar um lobo quer num Chihuahua quer num São Bernardo, isso é apenas microevolução: eles continuam todos a ser cães. E uma mosca resistente ao DDT é, apesar de tudo, uma mosca. Por conseguinte, o Pandas reproduz a afirmação do DI de que a selecção natural mais não pode fazer do que criar mudanças microevolutivas: “Não pode produzir novos atributos. Somente pode actuar sobre os traços que já existem”. Mas isto é argumentação capciosa. Conforme frisámos, os fósseis já mostram que esta “macromudança”, conforme é definida pelo Pandas, tem ocorrido no registo fóssil (a evolução de peixes para anfíbios, etc.). E se os criadores não transformaram um cão noutra espécie de animal é porque a criação de cães tem ocorrido apenas há alguns milhares de anos, enquanto as diferenças entre cães e gatos, por exemplo, se desenvolveram no decurso de mais de dez milhões de anos. Nenhum princípio da evolução prescreve que as mudanças evolutivas observadas durante o período de uma vida humana não podem ser extrapolados para períodos muito mais longos.
Na verdade, o Pandas admite que as moscas da fruta do Hawai — um grupo variado de mais de 300 espécies — evoluíram todas a partir de um antepassado comum. Sabemos agora que este antepassado comum viveu há cerca de 20 milhões de anos. As espécies de moscas havaianas diferem em muitas particularidades, incluindo o tamanho, a forma, a relação com o meio, o padrão de cor, o modo de acasalamento, etc. Pode-se, de facto, sustentar que algumas das espécies de moscas diferem mais umas das outras do que os seres humanos diferem dos chimpanzés. Por que razão, então, os DIistas afirmam que os chimpanzés e os seres humanos (cujo antepassado viveu apenas há 5 milhões de anos) têm de ter resultado de actos separados de criação por parte do autor inteligente, enquanto admitem que as moscas da fruta evoluíram a partir de um antepassado comum que viveu há 20 milhões de anos? A resposta é que os seres humanos têm, a todo o custo, de não ser metidos no mesmo saco com outras espécies, de modo a proteger o estatuto bíblico de seres inequivocamente criados à imagem de Deus.
De acordo com o Pandas, a teoria dos “limites da evolução” é uma teoria científica:
“A ideia do desígnio inteligente não exclui a possibilidade de que se verifique a variação no interior das espécies, ou de que novas espécies sejam formadas a partir de populações existentes [...] a teoria do desígnio inteligente sugere que há limites para a magnitude da variação que os mecanismos da selecção natural e da mudança fortuita podem produzir”.
Mas não existe nada na teoria do desígnio inteligente que nos diga quão longe pode ir a evolução. Esta perspectiva da evolução de “até aqui e não mais além” não se baseia em quaisquer descobertas científicas do DI; baseia-se no antepassado do DI, o criacionismo científico. O Scientific Creationism frisa que “o modelo da criação [...] reconhece somente a espécie como a unidade básica criada, neste caso, a espécie humana”, e uma tabela pondo em contraste a evolução e o “modelo da criação” diz que a primeira prevê que “aparecerão novas espécies” enquanto a última afirma que “não aparecerão novas espécies”.
Mas o que é uma “espécie”? Nenhum criacionista alguma vez a definiu, embora todos estejam muito seguros de que os seres humanos e os macacos são “espécies” diferentes. De facto, a noção de que a evolução e a criação têm funcionado em conjunto, com a última a criar “espécies” distintas, foi primorosamente refutada por Darwin em A Origem das Espécies:
Vários naturalistas eminentes [...] admitem que elas (as espécies evolutivas) foram produzidas por mutação, mas recusam-se a alargar a mesma perspectiva a outras formas insignificantemente diferentes. Apesar disso, não fingem que podem definir, ou sequer presumir, quais são as formas de vida criadas e quais são aquelas que foram produzias por leis secundárias. Admitem a mutação como verdadeira causa num caso e rejeitam-na arbitrariamente no outro, sem especificar qualquer distinção entre os dois casos. Lá virá o dia em que isto será apresentado como um curioso exemplo da cegueira das ideias preconcebidas. Estes autores parece não estarem mais surpreendidos com um milagroso acto de criação do que com um vulgar nascimento. Contudo, acreditam eles realmente que em inumeráveis períodos da história da Terra a certos átomos elementares foi subitamente ordenado que desabrochassem em tecidos vivos? Acreditam mesmo que por cada alegado acto de criação um ou muitos indivíduos foram produzidos? Todas as infinitamente numerosas espécies de animais e plantas foram criadas como ovo ou semente, ou como crescidos? E, no caso dos mamíferos, foram eles criados aparentando as falsas marcas de alimentação desde o útero materno? Embora os naturalistas peçam muito justamente uma explicação completa para todas as dificuldades aos que acreditam na mutabilidade das espécies, no que respeita ao seu próprio campo ignoram a questão global do primeiro aparecimento das espécies numa atitude que consideram de silêncio respeitoso.
Na verdade, o apêndice bíblico do Scientific Creationism mostra que o termo “espécie” provém da noção bíblica de espécies criadas:
As Escrituras são muito claras no seu ensinamento de que Deus criou todas as coisas como Ele queria que elas fossem, cada uma com a sua estrutura peculiar, de acordo com os Seus supremos desígnios. O relato de Génesis 1, por exemplo, indica pelo menos dez categorias principais de vidas orgânicas intencionalmente criadas “conforme a sua espécie” [...] Finalmente, a “espécie” humana foi criada como outra categoria completamente separada. A frase “conforme a sua espécie” aparece dez vezes no primeiro capítulo do Génesis.
Existe, portanto, uma clara linha de descendência histórica do Génesis até à noção dos limites evolutivos do DI, uma linha desenhada pelo que Darwin apelidou de “cegueira das ideias preconcebidas”. Até que os DIistas nos digam quais são os limites da evolução, como podem ser confirmados e que provas sustentam estes limites, esta noção não pode ser considerada uma afirmação genuinamente científica.
Os DIistas fazem uma afirmação que apregoam como verdadeiramente original, uma afirmação que se tem tornado bastante popular. É a ideia de que os organismos revelam algumas adaptações que não poderiam ser originadas pela selecção natural, implicando, por conseguinte, a necessidade de uma força criadora sobrenatural tal como um autor inteligente. Estas adaptações partilham uma propriedade chamada “complexidade irredutível”, uma característica debatida no Pandas mas definida mais explicitamente por Michael Behe em 1996 no seu livro Darwin's Black Box: The Biochemical Challenge to Evolution:
“Com irredutivelmente complexo quero referir-me a um sistema único composto por várias partes bem ajustadas, interagindo, que contribuem para a função básica, em que a remoção de qualquer uma das partes faz com que o sistema efectivamente deixe de funcionar”.
Muitos objectos manufacturados apresentam esta propriedade: Behe cita a ratoeira, a qual não funcionaria se uma única parte fosse removida, tal como a mola, o cordel, a base, etc. O Pandas menciona o motor do carro, o qual não funcionaria se alguém lhe retirasse a correia da ventoinha, as velas, o cabo do distribuidor, ou qualquer uma das numerosas partes individuais. Um exemplo famoso de um sistema irredutivelmente complexo no domínio biológico é a “câmara” do olho dos seres humanos e de outros vertebrados. O olho tem muitas partes cuja remoção individual tornaria o órgão inútil: o cristalino, a retina e o nervo óptico.
A razão pela qual os DIistas adoram as características “irredutivelmente complexas” dos organismos é porque a selecção natural é impotente (ou eles assim o defendem) para criar tais características. Como Behe frisa:
Um sistema irredutivelmente complexo não pode ser produzido directamente [...] por modificações suaves e sucessivas de um sistema percursor, porque qualquer percursor de um sistema irredutivelmente complexo a que falte uma parte é não funcional por definição [...] Visto que a selecção natural apenas pode escolher sistemas que já estão a funcionar, se um sistema biológico não pode ser produzido gradualmente então teria de surgir como uma unidade integrada, de repente, para que a selecção natural tenha algo sobre que possa agir.
“De repente”, é claro, implica que essa característica teve de ser produzida pela intervenção miraculosa do autor inteligente.
Mas este argumento para o desígnio inteligente tem uma falha fatal. Temos verificado durante décadas que a selecção natural pode de facto produzir sistemas que, ao longo do tempo, se tornam integrados ao ponto de parecerem irredutivelmente complexos. Mas estes atributos não evoluem através de sucessivos acrescentos de partes a um atributo que se torna funcional apenas no fim. Evoluem acrescentando, através da selecção natural, cada vez mais partes a um sistema originalmente rudimentar mas funcional, com estas partes por vezes cooptadas de outras estruturas. Cada passo deste processo melhora a sobrevivência do organismo e, portanto, é evolutivamente possível pela via da selecção natural.
Examinemos o olho. Os criacionistas têm defendido continuamente que ele não poderia ter resultado da selecção natural citando uma frase de A Origem das Espécies:
“Supor que o olho com todos os seus inimitáveis dispositivos para ajustar a focagem para diferentes distâncias, para deixar entrar diferentes quantidades de luz, e para a correcção das distorções esféricas e cromáticas pôde ter sido formado por selecção natural, parece, confesso voluntariamente, absurdo ao máximo”.
Mas na passagem seguinte, invariavelmente omitida pelos criacionistas, Darwin responde de uma forma engenhosa à sua própria objecção:
A razão diz-me que, se se pode demonstrar que existem numerosas gradações desde um olho simples e imperfeito até um complexo e perfeito, sendo cada grau vantajoso para o seu possuidor, como é certamente o caso; se posteriormente o olho se altera sempre e as variações são herdadas, como é também certamente o caso, e se tais variações puderem ser úteis para qualquer animal sujeito a mudança das condições de vida, então a dificuldade de acreditar que um olho perfeito e complexo pôde ser formado por selecção natural, embora insuperável para a nossa imaginação, não deve ser considerada como subversora da teoria.
Por conseguinte, os nossos olhos não apareceram subitamente como “câmaras” ópticas perfeitas, mas evoluíram a partir de olhos mais simples, tendo menos componentes, nas espécies ancestrais. Darwin ocupou-se brilhantemente deste argumento, estudando cuidadosamente as espécies existentes para ver se se poderiam encontrar olhos funcionais mas menos complexos que não só fossem úteis mas também pudessem ser ligados entre si numa hipotética sequência que mostrasse como a câmara ocular pôde evoluir. Se isto puder ser feito — e pode — o argumento da complexidade irredutível desaparece, porquanto os olhos das espécies existentes são obviamente úteis e cada passo na hipotética sequência pôde, portanto, evoluir por selecção natural.
Uma possível sequência de tais mudanças começa com manchas oculares pigmentadas (como se vêem nos platelmintas), seguidas por uma invaginação da pele para formar uma concavidade para proteger a mancha ocular e permitir localizar melhor a imagem (como nas lapas), seguida por um posterior estreitamento da abertura da concavidade para produzir uma imagem melhorada (o náutilo), seguido pela evolução de uma cobertura protectora transparente para proteger a abertura (poliquetas), seguida pela coagulação de parte do líquido do globo ocular no cristalino para ajudar a focar a luz (haliotes), seguida pela cooptação de músculos próximos para mover o cristalino e diversificar a focagem (mamíferos). A evolução de uma retina, de um nervo óptico e assim por diante poderia verificar-se por selecção natural. Cada passo desta “série” transicional confere uma adaptação acrescida ao seu possuidor, porque habilita o animal a colher mais luz ou a formar melhores imagens, ajudando ambos os aspectos à sobrevivência. E cada passo deste processo é exemplificado pelo olho de uma espécie existente diferente. No fim desta sequência, temos a câmara ocular, que parece irredutivelmente complexa. Mas a complexidade é redutível a uma série de pequenos passos adaptativos.
Actualmente não conhecemos a ordem precisa pela qual as componentes da câmara ocular evoluíram — mas a questão é que a aparência de “complexidade irredutível” não pode ser um argumento contra o neo-darwinismo se podemos documentar uma sequência plausível na qual a complexidade pode provir de uma série de passos adaptativos. O argumento da “complexidade irredutível” não é, de facto, completamente novo. Descende, com adaptações, do teólogo Britânico William Paley, que em 1802 construiu o famoso “argumento do desígnio” no seu livro Teologia Natural. Paley argumentou que exactamente como encontrar um relógio no chão implica um criador intencional (o relojoeiro), também encontrar um organismo complexo implica um autor cósmico (Deus).
Mas o olho não é um relógio. O olho humano, se bem que superiormente funcional, é imperfeito — certamente não o género de olho que um engenheiro criaria a partir de um esboço. A sua imperfeição surge precisamente porque o nosso olho evoluiu utilizando quaisquer componentes que estivessem à mão ou que produziu por mutação. Uma vez que a nossa retina evoluiu a partir de uma parte evertida do cérebro, por exemplo, os nervos e vasos sanguíneos que ligam as nossa células fotoreceptoras estão localizados na parte interior do olho em vez de estarem na parte exterior, passando por cima da superfície da retina. O derrame destes vasos sanguíneos pode obliterar a visão, um problema que não sucederia se os vasos alimentassem a retina por detrás. Do mesmo modo, para levar os impulsos dos nervos das fotocélulas até ao cérebro, os diferentes nervos têm de trabalhar em conjunto e mergulhar através do olho, formando o nervo óptico. Este buraco na retina cria um ponto de cegueira no olho, uma falha que de novo seria evitável com um plano a priori. O sistema inteiro é semelhante a um carro no qual todos os fios para o painel de instrumentos estão pendurados dentro do compartimento do condutor em vez de estarem acondicionados com segurança longe da vista. A evolução difere do plano a priori porque é forçada a operar modificando quaisquer atributos que tenham evoluído previamente. Assim, a evolução produz espécies mais ajustadas que muitas vezes têm falhas. Estas falhas infringem racionalmente os fundamentos do desígnio inteligente.
Os DIistas têm tendência para se concentrarem mais na bioquímica do que em órgãos como o olho, mencionando sistemas moleculares “irredutivelmente complexos” tais como o mecanismo da coagulação do sangue e o sistema imunitário. Da mesma maneira que o olho, estes sistemas não puderam supostamente ter evoluído, já que a remoção de um qualquer passo nestas vias de biossíntese tornaria a via biossintética não funcional. (Esta complexidade bioquímica é o tema do livro de Behe Darwin's Back Box.) Examinando o sistema de coagulação do sangue no seu capítulo sexto (escrito parcialmente por Behe), o Pandas afirma que “à semelhança de um motor do carro, os sistemas biológicos só podem funcionar depois de terem sido montados por alguém que sabe qual irá ser o resultado final”. Isto é um disparate. Como vimos no caso do olho, os sistemas biológicos não são úteis apenas no fim de um longo processo evolutivo, mas sim durante cada passo desse processo. E os sistemas bioquímicos — como todas as adaptações criadas pela selecção natural — não são montados com presciência. Quaisquer mutações úteis que por acaso surjam ficam integradas no sistema.
Não há duvida de que muitos sistemas bioquímicos são assustadoramente complexos. Um diagrama da via de biossíntese da coagulação do sangue parece um painel de complicados circuitos, com dúzias de proteínas interagindo umas com as outras para um só fim: curar uma ferida. E o sistema parece irredutivelmente complexo, porque sem alguma das várias proteínas-chave o sangue não coagularia. Contudo, tais sistemas evoluíram da mesma forma que o olho evoluiu, acrescentando, sucessiva e adaptativamente, partes a sistemas funcionais mais simples. É mais difícil reconstituir a evolução de vias bioquímicas do que a de estruturas anatómicas, porque as vias metabólicas ancestrais já não estão presentes. Mas os biólogos estão a começar a fornecer cenários plausíveis sobre como terão evoluído as vias bioquímicas “irredutivelmente complexas”. Como se esperava, estes sistemas compreendem a utilização de bocados cooptados de outras vias de biossíntese tendo inicialmente funções diferentes. (Assim, uma das enzimas no sistema de coagulação do sangue tem um papel na digestão e na divisão das células). Face ao nosso progresso na compreensão da evolução bioquímica, é simplesmente irracional dizer que porque não entendemos completamente o modo como evoluíram as vias bioquímicas deveríamos desistir de tentar e invocar o autor inteligente. Se a história da ciência nos mostra alguma coisa, é que não chegamos a parte alguma chamando “Deus” à nossa ignorância.
Na medida em que a teoria do desígnio inteligente pode ser testada cientificamente, tem sido refutada. Os organismos simplesmente não parecem terem sido criados inteligentemente. Um autor inteligente criaria milhões de espécies e depois fá-las-ia extinguirem-se apenas para as substituir por outras espécies, repetindo este processo vezes sem conta? Um autor inteligente produziria animais portadores de uma mistura de traços de mamíferos e de répteis, exactamente no momento em que se pensa que os répteis estavam a evoluir para mamíferos? Porque é que o autor deu asas minúsculas e não funcionais às aves quivis? Ou olhos inúteis aos animais das cavernas? Ou uma camada transitória de pelugem ao feto humano? Ou um apêndice, um órgão prejudicial que por acaso parece uma versão vestigial de um saco digestivo existente em organismos aparentados? Por que iria o autor dar-nos uma via biossintética de produzir vitamina C e a destrói entretanto tornando inapta uma das suas enzimas? Porque é que o autor inteligente não abasteceu as ilhas oceânicas de répteis, mamíferos, anfíbios e peixes de água doce, apesar da adequação de tais ilhas para estas espécies? E por que razão faria a fauna e a flora naquelas ilhas parecerem as do continente mais próximo, mesmo quando os meios ambientes são muito diferentes? Por que razão, há cerca de um milhão de anos, produziria o autor criaturas que têm um crânio semelhante ao dos macacos, colocado no topo de um esqueleto semelhante ao de um ser humano? E por que razão iria ele então substituir sucessivamente estas criaturas por outras tendo uma ainda mais próxima semelhança com os modernos seres humanos?
Há somente duas respostas a estas questões: ou a vida resultou não de um desígnio inteligente, mas da evolução; ou o autor inteligente é um traquinas cósmico que projectou todas as coisas para as fazer parecer como se, entretanto, tivessem evoluído. Pouca gente, religiosa ou não, achará agradável a segunda alternativa. É a versão moderna do velho argumento de que Deus colocou fósseis nas rochas para pôr à prova a nossa fé.
O golpe final para a afirmação de que o desígnio inteligente é científico é o reconhecimento, por parte dos seus proponentes, de que nós não podemos entender os objectivos ou métodos do autor inteligente. Behe reconhece-o em Darwin's Black Box: "As características que nos surpreendem por serem estranhas num desígnio podem ter sido lá colocadas pelo autor por qualquer razão — por motivos artísticos, para exibição, para algum objectivo prático como que indetectável, ou por qualquer razão não adivinhável — ou podem não o ter sido”. E examinando as diferenças esqueléticas entre mamíferos placentários e marsupiais, o Pandas frisa:
Porque é que aos placentários norte-americanos não foram dados os mesmos ossos? Poderia um autor inteligente sonegar estas estruturas aos placentários se elas fossem superiores ao sistema placentário? No momento não sabemos. No entanto, todos reconhecemos que um engenheiro pode escolher algumas de entre várias soluções diferentes de engenharia para superar um único problema de projecto. Pode, razoavelmente, esperar-se que um autor inteligente também use uma diversidade (se for uma diversidade limitada) de aproximações para produzir uma só solução de engenharia. Mesmo que se admita que um autor inteligente teve certamente uma boa razão para todas as decisões que tomou, e para incluir todos os traços em cada organismo, não se segue que tais razões serão óbvias para nós.
Bom, se admitimos que o autor teve uma pluralidade de recursos e motivos, os quais podem ser contraditórios entre si, arbitrários, repentistas e “não adivinháveis”, então ficamos com uma teoria que não pode ser rejeitada. Todas as observações concebíveis da natureza, incluindo as que sustentam a evolução, tornam-se compatíveis com o DI, visto que as vias do autor do desígnio são insondáveis. E uma teoria que não pode ser rejeitada não é uma teoria científica. Se os DIistas querem ter uma teoria genuinamente científica, deixemo-los propor um modelo que possa ser rigorosamente testado.
Dada a sua falta de rigor, poder-se-ia esperar que a teoria do DI não iria inspirar muita investigação científica. E não há, realmente, nenhuma. Apesar das afirmações de que o DI é um programa de investigação, os seus aderentes publicaram apenas um ensaio arbitrado sustentando o DI numa revista científica: uma recapitulação do DI da autoria Stephen C. Mayer, o director do Centro para a Ciência e Cultura do Instituto da Descoberta, que apareceu na Proceedings of the Biological Association of Washington. Este ensaio apenas apresenta sob nova forma os argumentos do DI a favor da razão pela qual a selecção natural e a evolução não podem explicar a diversidade da vida e, em seguida, assevera que o desígnio inteligente é a única alternativa. Deturpa a bibliografia evolucionista que pretende rever e nem avança novos argumentos científicos nem propõe qualquer via pela qual o DI explique melhor os padrões da natureza. Sem surpresa, mais tarde o Conselho da Associação de Biologia de Washington repudiou o ensaio por “não satisfazer os padrões científicos da Proceedings”.
O padrão de referência da descoberta científica moderna é a publicação de novos resultados numa revista científica sujeita a “peer-review” [arbitragem entre pares]. De acordo com este padrão, os DIistas têm falhado miseravelmente. Como o próprio William Dembski frisou: “Existem boas e más razões para ser céptico acerca do desígnio inteligente. Talvez a melhor razão é que o desígnio inteligente ainda tem de se afirmar como um programa de investigação científica bem-sucedido”. Os DIistas desejam desesperadamente respeitabilidade científica, mas é a sua própria teoria que os impede de a alcançarem. Assim, enquanto os DIistas exigem que os evolucionistas apresentem milhares de fósseis de transição e centenas de cenários pormenorizados acerca da evolução das vias bioquímicas, eles não apresentam factos baseados na observação que sustentem a plausibilidade de um autor sobrenatural, nem demonstram como invocar um tal autor poderia explicar melhor do que o neodarwinismo o registo fóssil, a embriologia e a biogeografia. Herbert Spencer poderia estar a descrever o DI quando declarou que “aqueles que arrogantemente rejeitam a teoria da evolução por não ser adequadamente sustentada pelos factos parecem esquecer que a sua própria teoria não é, de todo, sustentada pelos factos. Como a maioria dos homens que professam uma determinada crença, exigem a mais rigorosa prova para qualquer crença contrária, mas admitem que a sua própria crença não precisa de nenhuma”.
Por último, a confiança do DI na intervenção sobrenatural significa que a iniciativa não pode ser vista, estritamente falando, como científica. Na sua rejeição do criacionismo científico em McLean contra o Arkansas, o Juiz Overton enumerou as características da boa ciência:
Ao invocar a ocorrência repetida da intervenção sobrenatural por parte de um autor inteligente para criar novas espécies e novos traços, o DI viola os critérios 1 e 2; e na sua confiança suprema no dogma cristão e em Deus viola os critérios 3, 4 e 5.
Em momentos de franqueza, normalmente quando escrevem ou falam para uma audiência religiosa, os DIistas admitem não só a existência de acções sobrenaturais como parte da sua teoria, mas também a de acções sobrenaturais cristãs. Num prefácio a um livro sobre o criacionismo, Johnson escreveu: “O movimento do desígnio inteligente começa com o reconhecimento de que “No princípio era o Verbo” e “No princípio Deus criou”. Assentar nesse ponto não é suficiente, mas é absolutamente essencial à sustentação da mensagem evangélica”. E eis Dembski, escrevendo na Touchstone, uma revista cristã: “O mundo é um espelho que representa a vida divina [...] O desígnio inteligente adopta de bom grado a natureza sacramental da realidade física. Na verdade, o desígnio inteligente é exactamente a teologia da Palavra Divina do Evangelho de João exposta em linguagem da teoria da comunicação”. Com efeito, no rascunho manuscrito da primeira edição do Pandas os termos “criacionismo”, “criacionista” e “criação” são utilizados repetidamente em vez dos termos equivalentes do DI, e “criacionismo” é definido de forma idêntica a “desígnio inteligente” na versão publicada. Nada dá uma indicação mais clara de que um antepassado deste manual foi a Bíblia.
Por conseguinte, é claro que o desígnio inteligente não surgiu devido a quaisquer problemas persistentes com a teoria da evolução, ou porque novos factos tenham posto em causa o neodarwinismo. O DI existe por uma única razão — funcionar como um Cavalo de Tróia suspenso diante das escolas públicas: um receptáculo aparentemente laico mas pronto para injectar a sua mensagem religiosa no programa de ciência. Os conteúdos do Pandas, e de outros escritos DIistas, são simplesmente uma habilidade pedagógica para tornear restrições legais contrárias ao desígnio inteligente. (Com alguma sorte, contudo, a publicidade poderá fazer sair o tiro pela culatra. No mês passado o The York Dispatch na Pennsylvania noticiou que a Fundação para o Pensamento e a Ética, o grupo que publica este manual e outros arquitectados para apresentar “uma perspectiva cristã”, quiz intervir na acção judicial de Dover. De acordo com John Buell, o presidente da fundação, a associação do DI com o criacionismo “poderia tornar o manual radioactivo” e a sua equipa de trabalho poderá perder qualquer coisa como $525.000 em vendas).
O DI é parte daquilo que Johnson chama candidamente de “estratégia da cunha”, um plano cuidadosamente engendrado que começa com a adopção do desígnio inteligente como uma alternativa à teoria da evolução, após o que o DI irá alcançar a vitória sobre a evolução até que ele seja a única perspectiva que reste, após o que se tornará em criacionismo bíblico na sua plenitude. O objectivo último é substituir a ciência naturalista pelo pensamento espiritualista e o método é fazer entrar a cunha do DI dentro da ciência no seu ponto mais vulnerável: a educação pública. Nas próprias palavras de Johnson:
Portanto, a questão é: “Como vencer?” Foi quando eu comecei a desenvolver aquilo que agora vedes reflectido na estratégia da “cunha”: “persistir na coisa mais importante”, o mecanismo e a reconstrução da informação. Mantende a Bíblia e o Livro do Géneses fora do debate, porque não quereis dar lugar à chamada dicotomia Bíblia-ciência. Formulai o argumento de tal modo que possais fazer que seja escutado na academia laica e num sentido que contribua para unificar os dissidentes religiosos. Isto quer dizer: concentrai-vos na questão “precisais de um criador para fazer a criação, ou pode a natureza fazê-lo por si própria?” e recusai ser desviados para outros assuntos, o que as pessoas estão sempre a tentar fazer.
Johnson foi ainda mais explícito em 1999 nas notas finais a uma conferência intitulada “Reclamar a América para Cristo”. Rob Boston noticiou os comentários de Johnson na revista “Igreja e Estado”:
Johnson chama ao seu movimento “A Cunha”. O objectivo, disse, é convencer as pessoas de que o darwinismo é intrinsecamente ateísta deslocando, deste modo, o debate de criacionismo contra evolução para existência de Deus contra não existência de Deus. A partir daí as pessoas são iniciadas na “verdade” da Bíblia e, em seguida, na “questão do pecado” e, finalmente, “iniciadas em Jesus”.
Outras figuras de proa no movimento do DI têm sido igualmente claras acerca das suas motivações religiosas. Eis Dembski:
Mas existem motivações mais profundas. Eu penso que a um nível fundamental, em termos do que me guia nisto, é que eu julgo que a glória de Deus está a ser roubada por estas aproximações naturalistas à evolução biológica, à criação, à origem do mundo e à origem da complexidade e diversidade biológicas. Quando se atribuem as maravilhas da natureza a estes estúpidos mecanismos naturais, a glória de Deus está a ser roubada.
E aqui está Jonatham Wells, um membro da Igreja da Unificação do Reverendo Moon:
As palavras do Pai (do Reverendo Moon), os meus estudos e as minhas orações convenceram-me de que deveria consagrar a minha vida a destruir o darwinismo, exactamente como muitos dos meus companheiros Unificadores já dedicaram as suas vidas a destruir o Marxismo. Quando o Pai me escolheu (juntamente com cerca de uma dúzia de outros diplomados do seminário) para entrar num programa de Doutoramento em 1978, recebi com prazer a oportunidade de me preparar para a batalha.
Acreditam estas pessoas efectivamente no desígnio inteligente? Não há motivo para pensar de outro modo. Não estão a mentir pela sua causa; julgam sinceramente que a vida na Terra reflecte uma sucessão de milagres realizados por um agente sobrenatural. Na verdade, encaram os evolucionistas como autênticos trapaceiros. Numa entrevista ao The Sacramento Bee em 1991, Johnson proclamou que “os cientistas sabem há muito tempo que o darwinismo é falso. Têm-se agarrado ao mito por interesse próprio e por um desejo ardente de suprimir Deus”. Não interessa que muitos cientistas, incluindo evolucionistas, sejam religiosos.
Atendendo às provas esmagadoras da evolução e à falta de provas do DI, como podem pessoas inteligentes sustentar tais pontos de vista? A sua fé é tão forte que as torna cegas perante todas as provas? É um bocadinho mais complicado do que isso. Apesar de tudo, muitos teólogos e pessoas religiosas aceitam a evolução. As verdadeiras questões por detrás do desígnio inteligente — e praticamente do criacionismo — são o propósito e a moral: claramente, o medo de que se a evolução é verdadeira, então não somos diferentes dos outros animais, não somos os objectos excepcionais da criação de Deus, mas um produto contingente da selecção natural e, portanto, carecemos de propósito genuíno e a nossa moral é somente a lei da selva. Tom DeLay deu um extravagante exemplo desta perspectiva na sala da Câmara dos Representantes em 16 de Junho de 1999. Explicando as causas do massacre do Liceu de Columbine leu uma carta sarcástica publicada num jornal do Texas que sugeria que “não pôde ter sido porque o nosso sistema escolar ensina às crianças que elas não são mais do que macacos transfigurados que evoluíram a partir de um caldo primitivo7 de lama”.
A noção de que naturalismo e materialismo são os inimigos da moral e uma interpretação do propósito do ser humano, e de que a religião é o seu único aliado, predomina nos escritos dos DIístas. Como Johnson frisou, “Se Deus é culturalmente determinado pelo imaginário, então a moral de Deus perde os seus fundamentos e definha”. Nancy Pearcey, uma associada sénior do Centro para a Ciência e Cultura do Instituto da Descoberta, sintetiza a razão pela qual a evolução incomoda tantos Americanos:
Porque é que o público se interessa tão apaixonadamente por uma teoria da biologia? Porque as pessoas percebem intuitivamente que está em jogo muito mais do que uma teoria científica. Elas sabem que quando a evolução naturalista é ensinada na sala de aulas de ciência, então uma perspectiva naturalista da ética será ensinada na sala de aulas de história, na sala de aulas de sociologia, na sala de aulas da “vida em família”,8 e em todas as áreas do currículo.
Mesmo alguns pais em Dover, embora contrários ao ensino do DI na escola, receiam que ensinar a evolução vá corroer os valores cristãos que estão a tentar incutir nos seus filhos.
Mas a aceitação da evolução não exige que se elimine a moral ou o propósito. A evolução é simplesmente uma teoria acerca do processo e dos padrões de diversificação da vida, não é um grandioso sistema filosófico acerca do sentido da vida. Os filósofos têm discutido durante anos sobre se a ética deveria ter uma base na natureza. Não há, certamente, conexão lógica entre evolução e imoralidade. Nem existe uma ligação causal: na Europa, a religião é muito menos predominante do que na América e a crença na evolução está muito mais difundida, mas de qualquer modo o continente continua civilizado. A maioria dos cientistas religiosos, leigos e teólogos não têm sentido que a aceitação da evolução impeça de viver uma vida recta e com sentido. E a ideia de que a religião fornece o único sustentáculo para o sentido da vida e a moral também não pode estar correcta: o mundo está cheio de cépticos, agnósticos e ateus que vivem vidas dignas e cheias de sentido.
Salvo um milagre, o Distrito Escolar da Zona de Dover irá perder o seu processo. Qualquer pessoa que se dê ao trabalho de estudar o DI e o seu progressivo desenvolvimento a partir das formas de criacionismo primitivas e mais manifestamente religiosas irá considerá-lo uma teoria anti-científica, baseada na fé e apoiando-se, afinal de contas, nas doutrinas da cristandade fundamentalista. A sua introdução nas escolas viola, portanto, não só a Constituição mas também os princípios da verdadeira educação. Não existe nenhum motivo laico pelo qual a biologia evolucionista, entre todas as ciências, devesse ser escolhida para ser objecto de um aviso ordenado pela escola. Mas os verdadeiros perdedores serão as pessoas de Dover, que irão provavelmente ser sobrecarregadas com enormes custas judiciais e, ou com um corte substancial no orçamento escolar ou com uma significativa subida no imposto sobre o património. Também podemos esperar que, se perderem, os DIístas irão reagrupar-se e regressar com um novo disfarce ainda menos obviamente religioso. Eu fico à espera da formação do Movimento pelo Direito a Ensinar os Problemas Existentes com a Evolução.
Os DIístas têm sido ajudados pelas persistentes dúvidas dos Americanos acerca da exactidão da evolução. De acordo com uma sondagem da Gallup efectuada o ano passado, 45 por cento dos Americanos concordam com a afirmação “Deus criou os seres humanos quase na sua forma actual, simultaneamente, nos últimos 10.000 anos”. Inquiridos sobre se a evolução é bem sustentada por provas, 35 por cento responderam sim, 35 por cento responderam não e 29 por cento disseram que não tinham conhecimentos para responder. Enquanto racionalista eu não posso ajudar, mas acredito que o primeiro grupo poderia engrossar caso as provas da evolução fossem cabalmente ensinadas aos Americanos, o que raramente é feito nos liceus públicos. Tenho visto estudantes criacionistas tornarem-se evolucionistas quando aprendem sobre biogeografia ou examinam os crânios dos répteis “semelhantes aos mamíferos”. O que precisamos não é de ensinar menos a evolução, mas sim de ensiná-la mais.
Afinal, muito Americanos podem ainda rejeitar a evolução, considerando a alternativa criacionista mais confortável psicologicamente. Mas a emoção devia ser distinguida do pensamento e (a necessidade de) um “nível de conforto” não devia prejudicar aquilo que é ensinado na sala de aulas de ciência. Como o Juiz Overton escreveu na sua magistral decisão que revogou o Arkansas Act 590, o qual instituíra um sistema de “equal time” na sala de aulas para o “criacionismo científico”:
A aplicação prática e a justificação dos princípios da Primeira Emenda não são determinadas por inquéritos à opinião pública ou por um voto maioritário. Se os proponentes do Act 590 constituem a maioria ou a minoria é perfeitamente irrelevante num sistema de governo constitucional. Nenhum grupo, não importa quão grande ou pequeno, pode utilizar os órgãos do governo, dos quais as escolas públicas são o mais proeminente e influente, para impingir aos outros as suas crenças religiosas.