“O mal não é nada de espetacular, é sempre humano, divide a cama connosco e ainda come na nossa própria mesa.”
W.H. Auden, Herman Melville (1939)
A história está cheia de exemplos de condutas desumanas de uma pessoa frente a outra. Alguns atos são obras de indivíduos isolados, como o assassino em série Andrei Chikatilo ou do vigarista Bernie Madoff. Muitos males especialmente sinistros foram perpetrados por nações ou grupos: o Holocausto, as purgas estalinistas, e o massacre dos Tutsis no Ruanda. Outros atos horríveis como a escravidão foram estabelecidos e sustentados por sistemas legais e apoiados durante séculos pelos costumes culturais. E ainda há a política. Considero os comentários de muitos candidatos e pessoas que advogam certas medidas políticas tanto enlouquecedores como deprimentes. Fico espantado diante de afirmações que as pessoas pronunciam com a cara limpa — asserções que eu pressuponho que eles têm de saber serem falsas. Finalmente, temos as ações e comentários cotidianos diante de pessoas estranhas, colegas, família ou amigos — coisas que os machucam profundamente. Quando verificamos a história da humanidade, temos que imaginar: como é que pode acontecer que tantos de nós agimos tão insensivelmente — e ocasionalmente de maneira selvagem — frente uns aos outros? Há alguma característica ou traço em nós que explica nosso mau comportamento?
As pessoas ocasionalmente atribuem as más ações aos estados mentais defeituosos dos agentes; o mais comum é citar o caráter moralmente corrompido dos agentes. Os eticistas talvez adotem explicações intelectualmente mais sofisticadas. No entanto, na minha experiência, muitos de nós recorrem às mesmas explicações proferidas pelas pessoas na rua: nós reflexivamente citamos o que eu denomino ‘as explicações de primeira chamada’. Vou descrever quatro variações dessas. Ainda que elas não sejam privadas de mérito explanatório, nenhuma delas explica de maneira adequada muitos erros morais. Nós precisamos de uma explicação diferente e mais robusta.
A procura por essa explicação começa por isolar explicações mais mundanas – e informadas psicologicamente – de comportamentos desviados prudencial e moralmente. Eu mostrarei como um entendimento desses fatores aponta para um traço mais geral que, se reconhecido, nos permitiria entender melhor, diagnosticar, responder e prevenir muitos erros morais comuns e sérios. O vício que eu identifico é uma tendência humana comum e parcialmente controlável que causa ou fundamenta inúmeras más ações, em parte por amplificar os efeitos injuriosos de tais fatores mundanos bem como comportamentos explicados pelas explicações de primeira chamada.
O traço que eu especifico perto do fim deste ensaio não se enquadra nos padrões utilizados para se ranquear os vícios. Deixe-me explicar porque eu evito as abordagens comuns. Alguém pode, com algum humor, propor que identifiquemos o maior vício ao estilo Cartesiano: o maior vício é aquele ao qual nenhum outro pode ser concebido como maior. Esta proposta não funciona. Outros podem julgar vícios pelo grau em que eles expõem as ‘trevas’ do coração dos seus possuidores (o que quer que isso queira dizer). Essa abordagem provavelmente inclui a noção de Milo de ‘perversidade preferencial’ (Milo, R. D. 1984: cap. 3): o desejo de fazer o que é errado porque é errado. Outros podem seguir Judith Shklar (que seguia Hume) ao afirmar que a crueldade é o vício mais desprezível. ‘Crueldade’, como ela define, é a “humilhação deliberada e persistente [de outros] tal que a vítima eventualmente não pode confiar nem nela mesma ou em qualquer outro (Shklar, J. N. 1984, 37; Hume, D. 1978/ 1740: 459). Por mais assustadores que tais traços sejam, eu defendo que eles não são tão comuns como nós supomos e que pessoas tendo tais traços provavelmente não vão superar ou alterá-los. Por fim, poderíamos ranquear os vícios esteticamente, tal que o maior vício é aquele que nós achamos moralmente mais feio. Eu entendo o apelo dessa abordagem, no entanto, ela tem consequências peculiares. Hipocrisia pervasiva é profundamente feia. No entanto, eu duvido que seja a fonte de muitas más ações.
O fato de que há tantas caracterizações diversas mostra que não há uma métrica única para ranquear vícios (por isso meu título acaba com um ponto de interrogação). Eu não tenho dúvidas que essas categorizações familiares possuem serventia. Cada uma isola razões distintivas de porque as pessoas às vezes se comportam mal moralmente. Entretanto, todas ignoram ou obscurecem uma propensão que eu acho ser mais saliente. Podemos ver a importância do vício se nós focamos não no seu caráter nu – sua feiura ou as suas trevas – mas na miríade de modos nas quais ele funciona na nossa vida. O vício que eu identifico é sério porque é um ao qual todos nós estamos suscetíveis; é frequentemente negligenciado no debate ético; ele produz, permite, ou sustenta montanhas de males morais, e é controlável em alguma medida. Enquanto temos poucas chaces de expurgar-nos da perversidade preferencial ou crueldade extrema, muitos de nós podem frear os excessos do vício que eu identifico.
No entanto, eu estou me adiantando. Antes de atingir o clímax do argumento, eu devo engajar em algum exercício acadêmico. Eu devo explorar as explicações de primeira chamada e mostrar porque elas não vão fazer muita diferença moral. Ainda que elas expliquem algumas más ações, elas explicam menos do que muitos supõem. E talvez seja mais importante que aqueles afetados por esses vícios comumente citados não possuem capacidade ou vontade de mudar.
Muitas pessoas, após refletirem, defendem que a má ação de um agente nasce de uma falha no seu caráter moral. Até mesmo eticistas treinados frequentemente preferem essa explicação enquanto agentes individuais morais, mesmo se, quando agindo como profissionais, eles reconheçam as suas inadequações.
Ocasionalmente, as pessoas afirmam ou subentendem que o agente que se comporta mau era insano. Esta explicação é mais comumente usada quando alguém comete algo especialmente horrível. “Poderia (o canibal) Jeffrey Dahmer ser são?” alguém pode perguntar retoricamente. “Ou (o assassino fanfarrão) Adam Lanza?” A resposta assumida por quem pergunta é “Não”. Nesses casos, nosso interlocutor retórico pode estar correto se ele interpreta insanidade segundo algum critério legal ou como uma forma de psicopatologia. No entanto, ainda que insanidade em ambos os sentidos, sem dúvidas, explique algumas más ações muito sérias, a menos que nós interpretemos o termo ‘insano’ trivialmente, não há razão para pensar que muitos, e ainda mais a maioria, dos apoiadores alemães, cambojianos, russos, turcos ou hutus de seus respectivos genocídios eram insanos. Uma vez que essa explicação é plausível em apenas alguns casos, eu não direi nada mais sobre ela. Eu me volto para três variantes da afirmação mais comum de que as más ações de um agente fluem de falhas em seus caráteres, incluindo tanto motivações defectivas e valores morais repreensíveis refletidos em disposições comportamentais.
Algumas pessoas defendem que agentes que cometem más ações são frequentemente indiferentes à moralidade. O amoralismo tem duas formas. A primeira sai das crenças do agente, a segunda, do seu comportamento.
Na primeira, o agente crê – ou afirmar crer – que a moralidade é uma ilusão: não há prescrições morais genuínas. Na segunda, o agente é disposicionalmente indiferente à moralidade (Milo, R. D. 1984: cap. 3; Brink, D. O. 1989: 46). Para o propósito desse artigo, eu vou assumir que o amoralismo no primeiro sentido é falso. Se fosse verdade, o artigo estaria indo na direção errada. Se não houvesse moralidade, então não haveriam vícios morais; se não há vícios morais, não haveria vício maior ou menor. No entanto, eu não vou defender aqui a afirmação de que a moralidade não é uma ilusão.
E sobre a segunda variação? Sem dúvidas, algumas pessoas não se importam se há demandas morais. É intrigante, no entanto, que a maioria daqueles que dizem não se importar com a moralidade agem como se eles se importassem, pelo menos quando eles são prejudicados. Se alguém os prejudica, eles raramente dizem (ou pensam) “Não há nada de errado com o que aquela pessoa fez; eu apenas não gosto disso.” A maioria vai defender que o comportamento do outro é errado. Além disso, quando os outros se objetam moralmente ao seu comportamento – ou se a pessoa antecipa que alguém o faria – ela normalmente profere uma justificação ou explicação para as suas ações. O indivíduo acusado normalmente (a) nega que o evento ocorreu; mais comumente, ele (b) explica porque o comportamento não é o que nós pensamos que é (é lealdade ou patriotismo ou auto-defesa, e não genocídio), ou ele (c) explica porque nós não precisamos responder de modos em que a maioria das pessoas pensa que deveríamos (com repulsa, raiva, desapontamento, culpa, etc.) (Cohen, S. 2001: 7–11). Sem dúvidas, quem oferece essas explicações está simplesmente procurando insular eles mesmos do criticismo. No entanto, uma vez que esses que proferem essas ‘justificações’ frequentemente parecem ser sinceros, eu, caridosamente, concluo que muitas dessas pessoas não adotam um amoralismo comportamental. Há, é claro, alguns que realmente não se importam com a moralidade. Eu estou inclinado a pensar que tais pessoas exemplificam um traço que é melhor descrito como imoralismo.
Quando Jo afirma que Bill agiu mal porque ele tem uma falha no caráter, ela pode simplesmente querer dizer que Bill regularmente age de maneira viciosa e egoísta mesmo se ele não vê, reconhece, ou entende seu comportamento desse modo. Considerarei essas opções depois. Eu foco agora no que Milo chama de ‘perversidade preferencial’ (1984, esp. cap. 2 e 70). Na visão de Milo, Bill é preferencialmente perverso se ele sabe que suas ações são erradas, mas as faz sem o menor receio. Essa visão é similar ao que Stanley Benn simplesmente chama de ‘perversidade’ (1985). Eu suspeito que essa noção também poderia incluir o que Shklar chama de ‘crueldade’ (1984, Cap.1). Nem todas as instâncias de perversidade preferencial são cruéis, mas é plausível que todas as instâncias de crueldade exibam perversidade preferencial.
A crença de que muitos perpetradores de más ações são imoralistas é moeda corrente do julgamento privado e discurso público. Nos Estados Unidos, a maioria dos liberais e conservadores não veem uns aos outros como “[pessoas] essencialmente decentes … que estão ou temporariamente desviados por doutrinas falsas ou forçado a fazerem [as coisas que eles fazem] … contra o seu melhor julgamento e desejo (Gray, J. G. 1998/ 1958: 159). Pelo contrário, muitos liberais pensam que a maioria dos conservadores são intrometidos morais, egoístas e patifes, enquanto muitos conservadores consideram a maioria dos liberais moralmente vazios, pessoalmente irresponsáveis, e tiranos arrogantes. Visões similares permeiam a arena internacional. O ex-presidente Bush identificou quatro regimes nacionais como o “eixo do mal”. Sua afirmação logo ressoou em uma porção significante dos estado-unidenses. Essa visão também motiva as asserções de Goldhagen de que a maioria dos alemães perpetradores do holocausto foram motivados por visões demonstravelmente insidiosas (1996).
Apesar de nosso protesto pelo contrário, a maioria de nós reflete um compromisso inconsciente com o imoralismo quando criticamos aqueles que segundo a nossa opinião maltratam a nós, a nossa família, e aos nossos amigos. Se Katrina diz algo falso para mim ou minha família, eu fico propenso a afirmar ou assumir que ela é desonesta ou manipuladora. Se Rowena é insuficientemente sensível a mim ou minha família, eu fico propenso a afirmar ou assumir que ela é grosseira ou odiosa, etc. Não é apenas que Katrina e Rowena regularmente agem insensivelmente; eu assumo que todos saibam que o que ela fez foi imoral. A tendência de atribuir o comportamento moralmente deficiente dos outros a motivos defectivos é bem documentado na experiência e na literatura psicológica (Watson, D. 1982: 682; Knobe, J. and Malle, B. 2002: 6).
No entanto, os historiadores há muito tempo notaram que imoralismo é uma explicação inadequada até mesmo para muitos males odiosos. Como Tony Judt coloca de maneira pungente (Judt, T. and Snyder, T. 2012: 34):
Nos anos 1980s era uma visão comum entre os especialistas no campo que a história do nazismo, e, de fato, do totalitarismo em todas as suas formas, não poderia ser totalmente compreendida se fosse reduzida a um conto de pessoas malvadas consciente e deliberadamente engajando em atos criminosos com o mal na cabeça.
Judt está correto. Ainda que o imoralismo seja, por vezes, uma atribuição apropriada, sozinho ele não pode explicar adequadamente muito do comportamento imoral. Mesmo aqueles que cometem genocídios raramente consideram suas ações serem imorais. Ainda menos fazem-no porque é imoral. Hitler certamente não o fez (Snyder, T. 2015). Muitos alemães que participaram ativamente ou apoiaram passivamente o holocausto pensavam que ao emprisionar e matar judeus eles estavam protegendo suas famílias e defendendo a pátria. Nós achamos as crenças dessas pessoas misteriosas e seu comportamento objecionável, independentemente de como eles explicam as suas ações para eles mesmos. Além disso, nós temos razões para pensar que eles deveriam ter sabido que estavam agindo imoralmente. Albert Speer admitiu que no fim da guerra ele deveria ter sabido (Van der Vat, D. 1997). Entretanto, dizer que alguém deveria ter sabido não é dizer que ele sabia, e, ainda menos, que sabia conscientemente. A melhor explicação para as más ações dessas pessoas não é que elas eram preferencialmente perversas. Como Christopher Browning e outros defenderam, muitas atrocidades foram perpetradas por pessoas aparentemente ordinárias e geralmente decentes, pessoas que não tiveram os meios cognitivos e morais de ver que o que eles estavam fazendo era errado… e de resistir as pressões da sociedade para agir de maneira ultrajante (1992). Eu não tenho dúvidas que nós deveríamos considerar a sua negligência um defeito moral. No entanto, não é isso que a maioria das pessoas normalmente querem dizer quando eles atacam os caráteres dos outros. Essa é a primeira indicação do que eu devo identificar como o maior vício.
O mesmo é verdade para Pol Pot que foi responsável pela morte de um milhão de cambojianos nos ‘campos matadores’. Quando ele foi entrevistado vinte anos depois, ele disse que apesar de ter cometido erros, “Ainda agora, você pode olhar para mim: eu sou uma pessoa selvagem? Minha consciência está tranquila” (Mydans, S. 1997). A afirmação de Pot exemplifica seu compromisso com a crença de que apenas uma pessoa selvagem cometeria genocídio. Ele assumiu que uma vez que ele não era selvagem conscientemente, então ele não poderia ser preferencialmente perverso. Isso é um erro. Seu comportamento foi moralmente ultrajante por causa do que ele fez, não porque ele escolheu agir perversamente com consciência. Isso sugere porque imoralismo é incapaz de explicar até mesmo muitos males grotescos.
A falha do imoralismo em explicar as más ações é ainda mais óbvia quando avaliamos os servidores da inquisição. Por centenas de anos, oficiais da igreja torturaram ou mataram milhares de supostos hereges. É implausível pensar que a maioria desses oficiais eram conscientemente motivados pela imoralidade. Na verdade, parece mais provável que a maioria deles pensava que estava agindo virtuosamente. A igreja, e até mesmo alguns dos que foram torturados, interpretavam a tortura como uma forma de purificação espiritual (Glucklich, A. 2001: especialmente pp.16-32). Achar difícil de entender como é que eles possuíam tais posições não mostra que eles não as possuíam. Nós devemos tentar entender como pessoas ordinárias e geralmente decentes puderam endossar crenças odiosas e agir de modos moralmente monstruosos. Conseguir explicar isso ajuda a isolar o que é possivelmente o maior vício.
Finalmente, nós vimos o mesmo fenômeno operando nos maus tratos sistemáticos dos Estados Unidos aos afro-americanos. Isso começou antes da independência estado-unidense, continuou pela escravidão sancionada pela constituição, e era ainda um traço dominante da maioria das vidas dos afro-americanos por, pelo menos, cem anos após o fim oficial da escravidão. No entanto, eu não vejo razão para pensar quem a maioria dos perpetradores eram movidos conscientemente por más intenções. A maioria desses cidadãos pensava que a constituição, as leis, as decisões do supremo tribunal, e as práticas locais eram, pelo menos, permissíveis e talvez moralmente necessárias. Eu admito timidamente que isso era o que eu pensava enquanto eu crescia. Nós brancos tínhamos uma explicação pronta para as nossas práticas e políticas discriminatórias. Admitidamente, nossas pretensas justificações eram ridículas. Mesmo assim, nós as aceitávamos.
Isso explica porque eu penso que o comportamento de muitos nazistas, inquisidores, e sulistas ordinários – não importa o quão moralmente objecionável – não pode ser explicado pelo imoralismo. Essas ações mui familiares devem ser explicadas diferentemente. Talvez essas pessoas fossem apenas egoístas.
Muitas pessoas defendem que o mau comportamento das outras pessoas advém da sua decisão de promover seus próprios interesses sobre aquele dos outros, para fazer uma exceção não justificada para eles mesmos. Isso é, sem dúvidas, uma causa comum de más ações. No entanto, descrever o comportamento das pessoas desse modo mascara uma diferença moral crucial entre egoismo consciente e inconsciente. Muitas pessoas falam como se as pessoas egoístas fossem conscientemente cientes de que elas estão sendo egoístas. Eu duvido que seja assim. Quando é verdade, eu acho que é mais acurado dizer que essas pessoas exibem uma forma de imoralismo.
Mais comumente, as pessoas que se comportam egoisticamente não são conscientemente egoístas. Se alguém os critica, eles rapidamente redescrevem as circunstâncias ou o seu comportamento tal que as ações deles pareçam não ter sido egoístas ou, pelo menos, permissivelmente egoístas. É claro que isso pode ser apenas uma racionalização para inoculá-los da censura moral. Muitas vezes, no entanto, isso reflete uma crença sincera, ainda que má direcionada, de que eles não são egoístas.
As justificações, explicações, e desculpas que as pessoas usam para explicar (evitar) seu egoísmo aparente – como explicações e desculpas que as pessoas usam quando são acusadas de todas as formas de más ações – são variações de casos moralmente plausíveis. Se não fossem, os agentes não as usariam e ninguém as aceitaria. Os aparentes realizadores de más ações raramente citam justificações demonstradamente irrelevantes ou moralmente repugnantes. Quando Jo é perguntada sobre por que ela traiu Beth, ela não diz, “porque quadrados têm quatro lados” ou “porque eu queria seu dinheiro”. Quando Pol Pot foi perguntado sobre por que ele mandou milhões de moradores urbanos para áreas rurais incapazes de os sustentá-los, ele não disse “por anos a tinta continha chumbo” ou “eu não gostava dos seus olhos”. Essas não são explicações que Jo, Pol Pot ou Ratko Mladic usariam porque nenhuma pessoa razoável ou moralmente sensível iria aceitá-las. As pessoas aprendem razões “aprendidas por transmissão cultural ordinária”, retirada de uma “fonte bem estabelecida e coletivamente disponível” (Cohen, S. 2001: 59; inspirado por Mills, C. W. 1940: 905-7). Por exemplo, aqueles que cometem genocídio ou descriminavam as pessoas negras afirmavam que estavam removendo ameaças, promovendo a segurança pública, ou tratando os outros como eles mereciam. Cada justificativa pretendida é plausível em alguns contextos (Mills, C. W. 1940). Nós todos usamos justificativas como eles; às vezes as achamos plausíveis. As justificativas proferidas não possuem valor moral nesses casos não porque elas são do tipo errado, mas porque seus elementos factuais são falsos naqueles contextos: judeus não estavam ameaçando a Alemanha; os cambojianos urbanos não estavam destruindo uma sociedade asiática ideal; afro-americanos não eram sub-humanos.
Formas inconscientes de ‘egoísmo’ são poderosas exatamente porque o agente não reconhece que as possui mesmo para si mesmo (Pronin, E., Lin, D. Y. Et al. 2002; Pronin, E. 2009). Se o agente estivesse vividamente ciente do que estava fazendo e porque estava fazendo, então ele poderia agir diferentemente. Basicamente, nós deveríamos é compreender por que as pessoas falham em entender de maneira acurada as suas ações e motivações com tanta frequência.
O lugar mais proveitoso para procurar para uma explicação é por explorar fontes comuns de comportamento imprudente e inapropriado. Esses são familiares para a maioria dos adultos reflexivos; muitos também foram estudados extensivamente por cientistas sociais.
A maioria dentre as pessoas que agem imoralmente não são preferencialmente perversas: elas não fazem o que elas conscientemente sabem ser mal; certamente elas não o fazem porque é mal. Muitos não são conscientemente egoístas. Mesmo se eles fossem maus ou egoístas, eles não o seriam do modo em que a maioria das pessoas supõem quando eles bradam essas explicações de primeira chamada. O comportamento desses agentes é melhor explicado como saindo de uma multiplicidade de defeitos cognitivos que o agente não vê ou reconhece. Esses levam as pessoas a se fiar em premissas dúbias, a descrever mau as situações nas quais eles agem, a entender mau os seus motivos, e a ser cegos às prováveis consequências das suas ações. Ao examinar com cuidado o nosso comportamento e o comportamento dos outros, nós podemos identificar e entender a natureza e o poder desses defeitos. Entendê-los abre uma rota para identificar, e, subsequentemente, limitar, controlar ou corrigir esses defeitos morais e cognitivos.
Por vezes, nós fazemos boas escolhas sendo ignorantes; mas se o fazemos, temos sorte. Nós podemos fazer escolhas sábias de maneira confiável apenas se estamos cientes do conhecimento relevante para se adquirir e usar. No entanto, nós não precisamos ser enciclopédias ambulantes. A maioria de nós, na maior parte do tempo, pode navegar a vida com sucesso mesmo se somos ignorantes de muitos detalhes. Com a exceção de raras circunstâncias, eu não preciso saber de quantos quilômetros é a distância entre Los Angeles e Tóquio ou o nome do nono presidente dos Estados Unidos. Esta informação seria relevante em decisões importantes apenas raramente. Mas, por vezes, a ignorância leva a decisões abissais.
Há cinco tipos amplos de ignorância que podem desviar escolhas morais e prudenciais com frequência ao nos permitirmos inventar (para nós e para os outros) explicações menos do que convincentes de porque as nossas ações não são o que os outros as consideram ser. Um, eu posso não ter uma informação que define o contexto no qual eu ajo. Se eu compro cem acres no deserto do Arizona para plantar uma macieira, eu terei perdido meu dinheiro. Se eu erroneamente penso que alguém está ameaçando a mim ou a minha família, eu posso inapropriadamente prejudicá-los “em autodefesa”.
Dois, eu posso ser ignorante sobre a história relevante. Se eu, sem saber, produzo uma criança com uma irmã biológica, nosso bebê tem uma chance aumentada de desenvolver uma deficiência leve ou severa. Se, como chefe de um departamento acadêmico, eu não entendo que a baixa produtividade de pesquisa de uma docente resulta de anos de discriminação sistemática pelo chefe anterior, então eu posso inapropriadamente negar-lhe licença para pesquisar. Se eu não sei que os Estados Unidos ajudaram na derrocada de um primeiro-ministro do Irã eleito democraticamente, e então apoiou financeira e militarmente a ditadura armada do Shah por mais de três décadas, eu não vou compreender porque muitos iranianos desconfiam dos Estados Unidos; eu posso subsequentemente apoiar decisões má direcionadas sobre a política exterior apropriada em relação ao Irã.
Três, se eu sou ignorante da motivação e psicologia humanas, eu posso ter dificuldades em entender os comportamentos dos outros; assim, eu posso ter menos chances de me relacionar com eles apropriadamente. Se eu penso que todas as pessoas (além de mim) estão sempre tentando promover seus interesses egoístas, então eu não vou confiar neles; portanto, eu não vou nunca ter relacionamentos genuinamente íntimos. Se eu assumo que todos os muçulmanos são terroristas e que todos ateus são imorais, então eu provavelmente não vou ser amigo de ambos e serei ineficaz ao educá-los; eu também provavelmente vou apoiar políticas que os prejudicarão.
Quatro, se eu não entendo a natureza e a importância das instituições em determinar o que as pessoas acreditam, o que e quem eles vão gostar ou não gostar, e o que eles fazem, eu vou tomar decisões prudenciais má informadas ou decisões morais prejudiciais. Se eu não entendo os modos que as minhas preferências e crenças são moldadas pela minha classe social, ordem econômica, ou filiação religiosa, então eu não posso controlar ou contrariar suas influências perniciosas (Mill, J. S. 1985/ 1885: 39). Eu posso então escolher uma carreira por causa do seu alto status apenas para descobrir que eu acho aquela carreira desagradável. Ou um homem dos anos 1950 pode ter assumido que mulheres eram instintivamente dóceis, desatentas aos modos pelos quais as ordens do dia políticas, econômicas, sociais e religiosas as desencorajavam de expressar suas visões abertamente.
Cinco, se eu sou ignorante das informações ou habilidades necessárias para prever razoavelmente as consequências prováveis das minhas ações (e das dos outros), eu vou frequentemente agir de maneira inapropriada. Eu vou provavelmente fazer previsões mal guiadas se eu não possuo entendimento dos conceitos básicos da teoria da probabilidade, sou ignorante da informação de pano de fundo relevante, ou me faltam habilidades de raciocínio crítico para usar a informação disponível para fazer previsões plausíveis. Se em 2010 eu gastei minhas economias de vida comprando ações gregas assumindo que eu iria colher dividendos imensos a longo prazo, eu terei desperdiçado os meus rendimentos de aposentadoria. Se sou ignorante dos perigos da radiação, eu posso tomar a decisão nada sábia de viver (ou não viver) perto de uma estação de força nuclear. Eu também posso fazer más escolhas sobre apoiar a construção de outras duas novas estações perto do Grand Canyon ou da Floresta de Dean.
Há mais uma consideração adicional que não devemos esquecer. Nos casos mencionados até aqui, os agentes eram ignorantes simpliciter. No entanto, normalmente as pessoas ignorantes são ignorantes da sua ignorância. Ou pior, muitas pessoas pensam que eles sabem “o que simplesmente não é assim” (Billings, J. 1876). Então, frequentemente, não é a pura ignorância que nos desvia (Judt, T. and Snyder, T. 2012: 265); é a ignorância adicionada da falsa crença de que nós possuímos conhecimento.
Às vezes temos acesso fácil à informação relevante, mas falhamos em apreendê-la, recorrer a ela, ou empregá-la ao tomar uma decisão. Em outras palavras, a informação está disponível, mas não é motivacionalmente poderosa. É melhor discutir esses soluços cognitivos de maneira separada da ignorância pura.
Desatenção ocorre quando nós não damos atenção ao conhecimento relevante em alguma ocasião. Eu sei dos perigos de andar em uma beirada de montanha rochosa ou secar a louça. No entanto, quando estou realizando essas atividades, eu, por vezes, não presto atenção no que estou fazendo. Por conseguinte, eu vou distender os ligamentos do meu tornozelo ou quebrar uma vasilha. Ou, então, eu posso sentir uma dor prolongada na minha boca. Ainda que eu abstratamente saiba que tais dores são sinais iniciais de câncer, eu não dou atenção a eles até o meu próximo exame médico, nesse ponto, eu percebo que eles ocupavam a minha boca por sete meses. Como outros soluços cognitivos, a desatenção pode ser moralmente carregada. Um amigo me pergunta se eu vou participar de um encontro profissional específico; ele quer conversar. Sem perguntar a mim mesmo por que ele faria uma pergunta desse tipo, eu recuso: eu lhe digo que estou muito atribulado. Mais tarde eu descobri que ele tinha uma doença fatal debilitadora. Ele queria se lamentar com um velho amigo. Eu senti que tinha sido um esnobe. Eu ainda sinto. Ele poderia, é claro, ter sido mais insistente. No entanto, se eu fosse mais observador e sensível, ele não precisaria fazê-lo.
Se ele tivesse insistido e eu, ainda assim, tivesse recusado, então nós poderíamos concluir que eu tinha sido egoísta. Entretanto, se eu soubesse que ele estava doente, eu teria muito provavelmente participado do encontro. Isso sugere que o meu vício não foi ter sido conscientemente egoísta, mas foi não ter me preocupado em pensar sobre o porquê de ele ter feito aquela pergunta. Saber isso não me faz sentir melhor sobre mim mesmo. Porém, ajudar a localizar mais claramente o problema e, assim, me dá um meio de evitar erros similares no futuro.
Um outro primo cognitivo da ignorância é a vista curta. Nós podemos saber o que deveríamos fazer para promover nossos interesses de longo prazo, no entanto, em vez disso, focalizamos nos nossos desejos imediatos. Queremos uma segunda porção de batatas, uma bola extra de sorvete, ou uma quarta cerveja; nós guiamos as nossas ações por nossos desejos imediatos e não pela busca da nossa saúde a longo prazo. Nós nos sentimos cansados e saltamos os nossos planejados exercícios cardiovasculares, físicos ou de alongamento um dia sem considerar que, ao fazê-lo, aumentamos um pouco as chances de não fazê-los amanhã.
Nós também podemos tomar decisões de vista curta moralmente carregadas. No desejo de estarmos a salvo de criminosos ou terroristas, nós podemos apoiar políticas imprudentes e imorais a longo prazo. Por medo de crimes, os Estados Unidos agora têm a taxa de encarceramento mais alta do que qualquer país no mundo e o nosso sistema de justiça criminal faz muito pouco para reabilitar os criminosos ou para readmiti-los completamente na sociedade após terem cumprido o seu tempo (LaFollette, H. 2005). Não deveria nos surpreender que a taxa de reincidência do país é alta em níveis vergonhosos e objecionáveis.
Psicólogos defendem que a vista curta vem de vários vieses cognitivos, especialmente as heurísticas da disponibilidade e da representatividade (Tversky, A. e Kahneman, D. 1974: 1125-28). Esses vieses foram identificados originalmente como explicações de porque os humanos frequentemente fazem julgamentos falhos de probabilidade. Por exemplo, a maioria das pessoas é indevidamente otimista ao assumir que nem eles nem um membro da sua família vai ter uma doença séria (Dunning, D., Heath, C. Et al. 2005: 72); mesmo assim, muitos possuem um medo injustificado de que vão morrer em um acidente de avião. Mais tarde, os psicólogos usaram esses mecanismos para explicar porque nós frequentemente focalizamos nas consequências a curto prazo e em eventos dramáticos recentes ao decidir o que fazer.
Atenção seletiva é um outro primo da desatenção na qual a informação não só está disponível, mas também está pronta para ser usada. No entanto, nós abstraímos os fatos relevantes e focalizamos nos insignificantes. Quando um estudante nos critica e um outro nos elogia, nós frequentemente aceitamos o elogio de maneira acrítica e então procuramos modos de desconsiderar os comentários negativos do outro estudante. Nas suas versões mais comuns, a atenção seletiva é um tipo de viés frequentemente descrito na literatura como o ‘viés da confirmação’ (Lord, C. G., Ross, L. et al. 1979) ou a ‘anulação de informação’ (Melnyk, D. e Shepperd, J. A. 2012).
Somo enviesados não apenas no sentido de que tendemos a fazer julgamentos previsíveis sobre os outros e sobre nós mesmos. Como somos agentes habituais, todos fazemos isso. Algumas vezes, a ação habitual é inocente; ocasionalmente, ela é fortuita (e até louvável) – se, por exemplo, eu repetidamente conto a verdade (LaFollette, H. 2007: capítulo 14). No entanto, isso não é o que eu – ou a maioria das pessoas – quer dizer quando se diz ‘enviesado’. A maioria de nós age enviesadamente ao fazermos alguns julgamentos morais importantes sem as provas relevantes. Em outros casos, as provas estão facilmente disponíveis, mas nós somos indiferentes a elas ou não as procuramos.
Nós não somos apenas enviesados, nós somos enviesados sobre os nossos vieses (Ehrlinger, J., Gilovich, T. et al. 2005: 2). Até mesmo aqueles de nós que estão cientes da propensão humana a sermos enviesados assumem que nós escapamos dessa tendência a qual os outros estão vulneráveis. Nós assumimos que saberíamos se fôssemos enviesados. No entanto, vieses são potentes porque eles estão amplamente fora da nossa visão. Eles operam inconscientemente ao moldar como nós vemos e interpretamos eventos e pessoas. Geralmente, eles não deixam pistas diretamente acessíveis por introspecção (Nisbett, R. E. e Wilson, T. D. 1977; Pronin, E., Lin, D. Y. Et al. 2002: 372-3; Ehrlinger, J., Gilovich, T. et al. 2005: 7). Vieses são uma forma especialmente potente da fonte final comum das más ações: a ignorância de si mesmo.
Algumas formas de ignorância e seus primos cognitivos são instâncias de autoconhecimento limitado. Outras nascem dele. Todas são exacerbadas por ele. Na medida em que somos ignorantes de nós mesmos, nós frequentemente: (a) não sabemos o que sabemos e não sabemos, (b) não sabemos o que nós fazemos e porque nós fazemos, (c) não entendemos como e porque julgamos os outros como fazemos, e (d) não vemos ou reconhecemos nossos próprios vieses. É claro que poucas pessoas são completamente ignorantes delas mesmas. No entanto, nosso conhecimento de si é seletivo. Há comportamentos e traços que nós todos ocasionalmente perdemos; alguns de nós sequer os vê. A maioria de nós pensa que os nossos traços negativos são menos sérios e menos numerosos que eles são. Nós, então, focalizamos nos nossos traços positivos (percebidos), e, mesmo assim, focalizamos nos traços negativos (percebidos) dos outros, especialmente das pessoas que não gostamos.
No entanto, a maioria de nós reconhece que algumas pessoas não têm autoconhecimento, nós pensamos que diferente dos hoi polloi (a populaça), nós sabemos quem nós somos, o que fazemos, e porque fazemos. Nós pensamos que se alguém não conhece a si mesmo, deve ser intelectualmente preguiçoso. A crença de que autoconhecimento é a norma se confronta com o famoso dito de Ben Franklin: “Há três coisas extremamente duras: ferro, diamante e conhecer a si mesmo”. Também não combina com uma quantidade volumosa de estudos empíricos (Dunning, D., Heath, C., et al. 2005: 69-70):
Em geral, a visão de si das pessoas tem apenas uma relação de tênue a modesta com seu comportamento e performance real…. As avaliações gerais das pessoas sobre as suas habilidades e caráteres … [não estão] estão em correspondência muito firme com as performances objetivas em tarefas que deveriam refletir tais habilidades e traços de caráter… [Além disso], quando as pessoas oferecem previsões específicas sobre como elas vão se comportar em uma situação futura particular, elas fazem previsões que diferem sistematicamente do seu comportamento real quando aquela situação chega.
Eis alguns exemplos específicos das visões errôneas das pessoas sobre elas mesmas:
E não é difícil ver como essas formas de ignorância podem levar a ações moralmente odiosas.
Nós somos ignorantes de nós mesmos porque a maioria de nós adquire muitas crenças sobre nós mesmos por introspecção. Introspecção pode ser valorosa, mas apenas quando foi treinada por experiência, comentários sinceros, e exame rigoroso. Introspecção pura tem valor epistemológico limitado. Suponha que após ‘olhar para dentro’ eu concluo que sou humilde pois eu não passo horas pensando conscientemente em o quão incrível eu sou. No entanto, se os outros verificam que eu regularmente anuncio meus feitos pessoais e profissionais e me comporto de maneira arrogante diante dos outros, então eu não sou humilde.
Se eu afirmo que sou generoso simplesmente porque eu contemplo – e tenho pensamentos agradáveis sobre – ajudar os outros, mas todos veem que eu sou sovina e sem consideração, então minha afirmação não tem fundamento e os limites da minha introspecção são expostos. Nossos caráteres são definidos não por um estado interno ao qual cada pessoa tem acesso direto, mas pelos modos pelos quais nos comportamos regulamente. Existem, é claro, circunstâncias excepcionais na qual os traços disposicionais profundos não são exemplificados no comportamento diário. No entanto, essas exceções não são a matéria com a qual uma explicação adequada do caráter é construída.
Não há controvérsia sobre isso ao se atribuir traços não-morais aos outros. Todos reconhecem que Joana acreditar sinceramente que ela é inteligente, atlética ou esforçada não a faz sê-lo. Se ela tem o costume de fazer afirmações ignorantes e fúteis, ela não é inteligente. Se ela não consegue levantar treze quilos, caminhar 800 metros ou nadar uma volta em uma piscina pequena, então ela não é atlética. Se a maioria das pessoas que trabalha com ela a considera preguiçosa, então ela não é esforçada. Esses traços não morais são determinados por aquilo que ela faz e não por pensamentos perambulando na sua mente. Por que pensaríamos que seria diferente no caso dos traços com alguma carga moral?
Nós todos vemos isso ao avaliar os traços morais dos outros. Ninguém seriamente considera que Pol Pot era um santo porque ele, por introspecção, não descobriu uma ‘pessoa selvagem’ dentro de si. Quando nós queremos entender os outros moralmente, nós observamos o seu comportamento e atribuímos traços baseados nas nossas “crenças de pano de fundo sobre motivos, razões, habilidades, e vieses.” Mesmo assim, de algum modo, quando nós pensamos sobre nós mesmos, a maioria de nós ignora ou diminui o valor dessas fontes comuns e indiscutíveis de auto-informação. A tendência de se fiar irrefletidamente na introspecção e a falha em ativamente nos proteger da ignorância e seus primos cognitivos não está limitada aos bobos ou não educados (Pronin, E. 2009: esp. pp. 5-9). Professores têm essa tendência em profusão. Noventa e quatro por cento de nós afirma ser um professor ‘acima da média’ (Dunning, D. 2005: 7).
Como explicar esses erros? Não é apenas que muitos de nós é ruim ao realizar a introspecção – ainda que isso seja verdade. O problema central é que nós esperamos que a introspecção vai prover o que ela não pode suprir de maneira confiável (Ballantyne, N. 2015: esp. 149-52). Muito do que nós queremos saber sobre nós mesmos simplesmente não está acessível pela introspecção. Nosso comportamento e nossos motivos são frequentemente moldados por atitudes implícitas e preferências que não podemos detectar diretamente. Nós não podemos “ver as origens das nossas crenças ou as causas dos nossos motivos” (Pronin, E. 2009: 18). Isso leva muitos de nós a pensar que enquanto outros são suscetíveis à manipulação, nós somos relativamente imunes a isso. Nós também assumimos que nós conhecemos os outros melhor do que eles nos conhecem (Pronin, E. 2009: 17). É um dentre os muitos vieses aos quais nós somos todos suscetíveis.
Algumas pessoas possuem considerações mais sofisticadas do autoconhecimento. Elas reconhecem os limites da introspecção. Elas veem que também devem observar o seu comportamento. Eu gostaria de pensar que eu sou esse tipo de pessoa. No entanto, eu (e muitos como eu) sou frequentemente cego ao que eu faço porque eu privilegio a minha própria introspecção com frequência e não presto atenção suficiente ao meu comportamento.
Após estas investigações, nós podemos retornar à questão com a qual começamos: como é que pode tantas pessoas perpetrarem, ou ser complacentes com, más ações ordinárias ou extremas? Como é que tantos alemães aparentemente decentes acabaram por apoiar o massacre de judeus e outras minorias? Como é que tantos sulistas estado-unidenses puderam manter afro-americanos como escravos? Como eles e suas crianças apoiavam linchamentos e outros aspectos da Jim Crow? Como puderam líderes devotos da igreja matar e torturar pessoas porque eles falharam em aceitar a fé ‘correta’ ou tiveram a audácia de sugerir que a terra gira em torno do sol? Como e por que um veterano como Timothy McVeigh detonou uma bomba em frente ao prédio federal na cidade de Oklahoma matando 168 pessoas e ferindo quase 700 mais?
Nenhum desses fenômenos é primariamente, e ainda menos inteiramente, capturado por explicações de primeira chamada. É bem duvidoso que muitos desses perpetradores fossem insanos, ou que muitos deles pensasse que o que eles estavam fazendo era moralmente errado; não é muito plausível que a maioria deles fosse conscientemente egoísta. Isso não significa que o seu comportamento não foi imoral ou egoísta. Dá para dizer que muitos, provavelmente a maioria, pensava que o que eles fizeram era moralmente permissível; alguns pensavam que era moralmente exigido. Do nosso ponto de vista, nós achamos as suas crenças incompreensíveis. Nós queremos saber: como é que alguém poderia acreditar nisso? A resposta, retirada da nossa experiência ordinária e da história e dos estudos psicológicos, é que eles foram ignorantes quando eles deveriam saber; eles não viram o que estava na frente deles; eles não notaram que eles estavam focalizando nos seus próprios interesses; eles eram desatentos aos seus próprios vieses.
Colocado de maneira geral, eles não pensaram cuidadosamente sobre o que eles acreditaram, o que eles fizeram, e porque eles fizeram. Frequentemente, eles aceitaram sem questionar as afirmações fatuais e morais da sua cultura, dos seus pais, professores, amigos, líderes ou do seu comentarista político favorito. Eles foram desatentos ao poder de instituições de criar e sustentar preferências e crenças. Eles fizeram pouco – e talvez nenhum – esforço para se protegerem dessas fontes de erro previsíveis.
Nós gostaríamos de pensar que nós somos diferentes: que nós não poderíamos ter feito o que eles fizeram. Mas nós temos alguma razão para pensar que nós somos peculiares? A maioria – e provavelmente todos – de nós é inadequadamente auto-reflexiva. O problema é que enquanto a maioria de nós reconhece a nossa ignorância de maneira abstrata (Mill, J. S. 1985/ 1885: 17),
poucos [de nós (sic)] pensa que é necessário tomar qualquer precaução contra sua própria falibilidade, ou admitir a suposição de que qualquer opinião da qual eles sentem ter muita certeza pode ser um desses exemplos de erro aos quais eles reconhecem que eles mesmos estão sujeitos.
A intuição de Mill provê um caminho para estruturar um pensamento mental inquietante. A maioria de nós imagina como os nossos pais ou avós ou professores ou empresários ou oficiais do governo poderiam ter acreditado no que acreditaram e fazer o que fizeram. Sem dúvida, eles quase certamente tiveram pensamentos similares sobre seus pais e avós. O que nós deveríamos perguntar a nós mesmos é: o que é que os nossos filhos ou netos vão achar igualmente incompreensível sobre as nossas ações e crenças? Esse pensamento me dá calafrios morais.
Se eu estou correto, não deveríamos recorrer às explicações de primeira chamada em nossas reflexões: más ações não são frequentemente o resultado de insanidade, amoralismo, perversão preferencial, ou egoísmo consciente. É mais comum que as más ações resultem de ignorância (da história, da informação de pano de fundo, e do poder de instituições sociais, econômicas e religiosas), egoísmo inconsciente, ignorância de si, e vieses (inconscientes). Estas falhas cognitivas nos cegam para as dimensões morais relevantes das nossas ações. Elas levam pessoas relativamente ordinárias a engajar em comportamento moralmente objecionável e até horrendo. É isso que Hannah Arendt queria dizer com a “banalidade do mal” e o que Aleksandr Solzhenitsyn quis dizer ao proclamar que “a linha dividindo bem e mal atravessa o coração de todo ser humano” (Solzhenitsyn, A. I. 1973: 168).
Se temos alguma esperança de estar no lado moralmente apropriado dessa linha, nós devemos engajar em auto-reflexão frequente, honesta e rigorosa. Se entendermos a nossa ignorância, nós poderemos corrigi-la. Se reconhecermos o nosso egoísmo, poderemos contê-lo. Se nós reconhecermos os nossos vieses, temos alguma chance de restringir o seu movimento (Kahneman, D. 2011: 722-68).
É claro que autoconhecimento não vem simplesmente via introspecção. Eu espero que isso esteja claro por agora. Nós podemos identificar o meio de obter autoconhecimento ao refrasear levemente a descrição de uma pessoa sábia feita por Mill (1985/ 1885):
No caso de qualquer pessoa cujo julgamento [sobre si mesma] é realmente merecedor de confiança, como é que isso se deu? Porque ela manteve sua mente aberta ao criticismo das suas opiniões e condutas. Porque foi uma prática sua escutar tudo que poderia ser dito contra [suas opiniões sobre si mesmo] … Porque ela sentiu que o único modo pelo qual um ser humano pode se aproximar de conhecer [a si mesmo] … é escutando o que pode ser dito sobre [as suas ações e motivações] … por pessoas de toda variedade de opinião e estudando [elas todas]. Nenhum homem nunca adquiriu [autoconhecimento] … em nenhum modo além desse, nem é da natureza do intelecto humano … adquirir [autoconhecimento] de outra maneira…
Não sou o primeiro a pedir que reconheçamos essa falha moral. O bispo Butler fez o mesmo a quase duzentos anos atrás (1827: 127):
Muitos homens parecem ser perfeitos estranhos aos seus próprios caráteres. Eles pensam, e raciocinam, e julgam muito diferentemente sobre qualquer questão relacionada a eles, do que quando o fazem no caso de outros que não lhes interessa. Por isso escutamos as pessoas expondo loucuras alheias pelas quais eles mesmo são eminentes, e falando com grande severidade contra vícios particulares, dos quais, se todo o mundo não estiver errado, eles mesmos são notoriamente culpados.
Eu proponho que o maior vício é a nossa falha em engajar em autoexame frequente, honesto e rigoroso. Nós escrutinamos nosso próprio comportamento de maneira insuficiente; nós desculpamos nosso comportamento insensível muito facilmente. Por que eu sugeriria ser este um vício tão sério? Relembrem os meus critérios propostos no início deste ensaio. Primeiro, o “maior” vício seria um ao qual nós todos sucumbimos; segundo, ele recebe pouca atenção dos filósofos e das pessoas da arena pública. Terceiro, ele explica direta e indiretamente muitas más ações. Quarto, é uma fonte de más ações que está dentro do nosso controle. Se somos loucos, provavelmente não vamos nos curar. Se somos amorais ou preferencialmente maus, provavelmente não vamos mudar. No entanto, se nós reconhecemos a nossa ignorância, visão curta, desatenção, e vieses, temos algumas chances de cercar, controlar, e corrigir esses erros (Montmarquet, J. A. 1993).
As falhas cognitivas e vieses sobre os quais eu falei são parte de quem somos. Algumas vezes, eles servem até propósitos evolutivos importantes (Kahneman, D. 2011: 45-46). Nessa medida, nossa suscetibilidade pura a essas falhas não é o vício do qual eu falei. O vício é não realizar, ou realizar sem convicção, tentativas de escrutinar nossas próprias motivações e comportamento. Nem todo mundo é imoral ou amoral ou majoritariamente egoísta. No entanto, todo mundo tem uma inclinação para ser insuficientemente autocrítico; é por isso que nós todos ocasionalmente agimos mal sem reconhecer o nosso mau comportamento (Butler, J. 1827: 128):
Há simplesmente, na humanidade em geral, uma ausência de dúvida ou desconfiança, em uma grande medida, no que concerne o seu caráter moral e o seu comportamento … [isso nasce de] não se refletir e não exercer seu julgamento sobre si mesmo.
Nós não podemos combater o vício do qual Butler fala simplesmente ao realizar mais introspecção. Devemos observar, com cuidado, o que falamos e o que fazemos. Devemos ouvir os criticismos de ou os comentários sobre nós, e então tomar precauções ativas contra essas propensões desagradáveis. Uma vez que entendemos a nossa suscetibilidade a esse vício, nós deveríamos detectar meios através dos quais as deficiências cognitivas distorcem os nossos motivos, escolhas, e ações. Só assim teremos alguma chance de contrariar essas deficiências: diretamente, ao mudar a nós mesmos; e indiretamente, ao alterar as circunstâncias externas (incluindo as instituições) nas quais nós pensamos, escolhemos e agimos (Doris, J. M. 2002, 2015). Essa última rota para a mudança explica porque a minha proposta é compatível com o situacionismo: Às vezes, o meio mais eficaz de mudar o comportamento não é a vontade bruta, mas antes mudar os nossos ambientes para reforçar disposições comportamentais mais laudatórias (LaFollette, H. 2007: capítulo 14).
Se o fazemos, podemos mudar como vemos, entendemos, e nos relacionamos com os outros. Nós temos mais chances de sermos mais caridosos ao interpretar o comportamento deles. Nós teríamos menos chances de, irrefletidamente, recorrer a assunções imoralistas sobre eles; nós recorreríamos a tais afirmações apenas se fôssemos impelidos pela preponderância de provas. Em vez disso, nós iríamos procurar um entendimento mais sofisticado do comportamento e das motivações dos outros agentes. Isso vai informar a nossa busca por modos mais eficazes de mudar o comportamento deles. Se nós assumimos que eles são mal-informados, negligentes ou de vista curta, nós podemos explicar porque nós pensamos que eles estão enganados. Eles não vão querer ouvir as nossas explicações, especialmente se eles são não apenas ignorantes, mas também convencidos de que eles sabem indiscutivelmente a verdade, e, de fato, muitas pessoas não irão (relembrem a citação de Billings acima). Nós devemos buscar, com vigor, meios para expor a sua ignorância e liberá-los do seu conhecimento falso. Isso não será simples ou fácil. Eu não tenho ilusões de que eles vão gostar de ouvir as nossas análises. Mesmo assim, a maioria das pessoas vai preferir isso a ataques brutais ao seu caráter.
Ademais, se nós concretamente admitíssemos a nossa propensão a fazer esses erros morais, nós seríamos menos arrogantes moralmente. Isso não quer dizer que vamos ser indiferentes à moralidade. Isso tampouco quer dizer que nós precisamos ser tão céticos ou preocupados sobre erros a ponto de ter medo de agir. O que isso quer dizer é nós deveríamos admitir a nossa falibilidade; nós deveríamos nos vigiar como gaviões morais. Nós deveríamos reconhecer e considerar genuinamente os criticismos morais que os outros nos dirigem. Nós deveríamos estar dispostos a nos mudarmos de maneira adequada.
Eu proponho que cada um de nós deveria escrutinar a nós mesmos tanto quanto – e até mais do que – nós escrutinamos os outros. Nosso controle sobre os outros é sempre indireto. Nosso controle sobre nós mesmos, ainda que circunscrito, é mais direto e mais vasto. Nós temos uma oportunidade de encontrar maneiras para nos relacionar melhor com família, amigos, colegas, clientes, estudantes, e estranhos, maneiras de criar e sustentar um mundo mais civil e civilizado.
Nada disso nega que algumas pessoas sejam insanas, preferencialmente perversas ou conscientemente egoístas. No entanto, seria melhor que essas fossem explicações de último recurso em vez de atribuições de primeira chamada. É claro, há os Bernie Madoffs que vão fraudar as economias da vida inteira das pessoas sem o menor sinal de preocupação. No entanto, aqui eu não trato primeiramente do caráter ou ações dos monstros morais. Me concerne muito mais as fontes comuns de más ações das quais nós somos todos culpados, mais frequentemente do que ousamos admitir para os outros ou nós mesmos.
O que eu sugeri é tanto radical quanto ordinário. É radical na medida em que revela os limites das explicações dadas de maneira irrefletida às más ações. É ordinário na medida em que nós estamos todos vividamente conscientes de modos em que as ações não auto-refletidas dos outros causam um mal significativo. Na verdade, é tão lugar-comum que a afirmação pode parecer beirar o trivial. Mas espere por uma coisa. Mesmo quando a maioria de nós reconhece no abstrato o quão perigoso é a falta de auto-reflexão, nós tendemos a esquecer ou ignorar esse fato em situações concretas.
Ainda que este possa não ser o vício mais desprezível, ou o maior vício que possa ser concebido, diante dos tipos de criaturas que somos, esse vício causa um mal enorme, e, provavelmente, mais mal do que o amoralismo, imoralismo, ou egoísmo consciente. Assim, ainda que nada que sacode a terra dependa de ele realmente ser o maior vício, reconhecer a importância desse vício é um corretivo necessário ao pensamento moral comum, um corretivo com efeitos significativos na prática da ética.
Agradeço os comentários e sugestões dos revisores do jornal, e dos participantes do Seminário de Filosofia Moral da Universidade de Oxford e da conferência Anual da Sociedade de Filosofia Aplicada. Eu agradeço especialmente Daniel Brudney, Ingmar Persson, Dominic Wilkinson, e Michael Woodruff para os comentários sucintos e úteis às primeiras versões desse artigo.