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Crítica
1 de Fevereiro de 2007   Ética

Aborto, uma polémica de sempre

Ana Cristina Leonardo

“Um bebé não é um problema metafísico” foi uma frase que encheu as ruas de Paris, há cerca de 20 anos, durante uma campanha em prol da maternidade. Em Portugal, hoje, a discussão diz respeito ao aborto. Paula Teixeira da Cruz, do Movimento Voto Sim, afirmou que “não estamos a discutir nem a vida nem a morte. Recuso-me a discutir o problema nesses termos” (Diário de Notícias, 20/01/2007). A verdade é que muitos insistem em fazê-lo.

Não sendo os bebés, definitivamente, um problema metafísico, há questões levantadas pelos opositores do Sim que nos deixam na dúvida sobre se não o serão o zigoto, o embrião e o feto. Um dos argumentos mais publicitados pelo Não assenta no seguinte raciocínio:

Premissa a: O feto é, em potência, um ser humano; Premissa b: Todos os seres humanos, mesmo os seres humanos em potência, têm direito à vida; Conclusão: O feto tem direito à vida.

Daí se infere que a interrupção voluntária da gravidez (IVG) é atentatória desse direito, logo, um crime, um crime parente próximo do homicídio.

É esta, aliás, a posição oficial da Igreja católica, que classifica o aborto como um dos pecados sujeitos a excomunhão (e isto apesar de algumas vozes discordantes, como a do padre Anselmo Borges, teólogo e professor de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, que propõe a distinção entre vida, vida humana e pessoa humana): “A gravidade moral do aborto provocado aparece em toda a sua verdade, quando se reconhece que se trata de um homicídio (...)” (João Paulo II, Enc. Evangelium Vitae, 25/03/1995, n. 58); e ainda:

“Também a legislação canónica, há pouco renovada, continua nesta linha quando determina que “quem procurar o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae”, isto é, automática” (idem, n. 62).

Mas, a não ser que se faça da vida humana uma leitura religiosa — e essa é uma posição legítima embora, obviamente, impossível de sujeitar a referendo — a argumentação atrás exposta, contrária à IVG, não parece defensável. Porque se o que falta provar é, precisamente, que todos os seres humanos em potência têm direito à vida, não se pode, ao mesmo tempo, afirmá-lo como premissa sem incorrer em falácia. O filósofo Pedro Madeira vai mais longe. Em “Argumentos sobre o Aborto” acrescenta:

“(...) é, de qualquer modo, falso que, se um ser tem potencialmente um direito, então tem, efectivamente, esse direito. Enquanto cidadão português, sou potencialmente presidente da República; o presidente da República é o Comandante Supremo das Forças Armadas; no entanto, daí não se segue que eu seja agora o Comandante Supremo das Forças Armadas”.

Do lado do Sim, insiste-se nas condições sócio-económicas das mulheres desfavorecidas e na realidade dos números, apesar da lei proibitiva. São razões fracas, que pecam por circularidade. Porque do facto de os cidadãos carenciados terem menos condições para contratar um assassino não resulta que o estado deva disponibilizar um serviço grátis de gângsteres ao domicílio. Assim como do facto de existirem ladrões, apesar da lei proibitiva, não se infere que o roubo deva ser legalizado. Note-se que esta contestação aos argumentos do Sim, não implica uma equivalência moral dos exemplos. Apenas se pretende mostrar que, nos casos expostos, a sustentabilidade da argumentação é difícil, se não impossível.

Nada disto é novo. O aborto nunca foi um facto pacífico. No Ocidente, durante a Antiguidade, a sua regulamentação, regra geral, apenas tinha em conta os interesses masculinos e, consequentemente, só era punível quando estes eram lesados: “Estigmatizado como sinal de decadência dos costumes ou visto como atentado à ordem familiar e social, o aborto é considerado uma manifestação de inaceitável autonomia feminina” (in História do Aborto, Giulia Galeotti, Edições 70, 2007). Pelo menos até ao século XVIII, o aborto é encarado como um assunto de mulheres. Rodeado de insondáveis mistérios, à semelhança de tudo quanto dizia respeito ao segundo sexo: não por acaso, durante o longo período da “caça às bruxas”, do século XIV ao XVII, uma das acusações mais recorrentes é a das práticas abortivas.

Com o cristianismo a impor-se como religião do estado, o aborto ganhará o estatuto de “crime abominável”, um pecado que atenta contra a acção criadora de Deus, destruindo uma criatura que Lhe pertence. Apesar deste princípio geral, a posição sobre o momento em que o feto passa plenamente a pessoa não será unânime. Embora contrário ao aborto, é Santo Agostinho quem avança com a posição mais tolerante, alicerçada na teoria da animação diferida, que faz atrasar o aparecimento da alma em relação ao momento da concepção: “não é homicida quem provoca o aborto antes da infusão da alma no corpo”, sugerindo-se que esta surge nos rapazes aos 40 dias e nas raparigas aos 80. A polémica atravessará séculos: em 1558, o Papa Sisto V publica a bula Effraenatam, que condena à excomunhão todos os que provocarem o aborto, sem fazer distinção entre feto animado ou não animado. Em 1591, Gregório XIV retoma a posição agostiniana. Em 1679, Inocêncio XI vem reafirmar que o nascituro é pessoa desde o momento da concepção... Como se vê, a discussão sobre o estatuto do zigoto, do embrião e do feto (embora sob outros nomes) é coisa antiga.

A ciência acabaria por ser chamada à colação, na medida exacta em que se interessa cada vez mais pelos segredos da vida intra-uterina. Quando, em 1762, Charles Bonnet propõe, em defesa do preformismo, que qualquer organismo já contém em si os futuros seres pré-formados a que dará origem, o naturalista suíço crê estar, não só a contribuir para o avanço da ciência como a confirmar a Génese bíblica. De acordo com o preformismo, desde o momento da concepção, ou o espermatozóide transporta em si um “homunculus” (animaculismo), ou este já está contido no óvulo (ovismo). A polémica entre preformismo e epigénese — hipótese proposta em 1759 pelo embriologista alemão Kaspar Friedrich Wolff, que, ao invés de Bonnet, defendia que as novas estruturas se iam formando progressivamente — foi um dos debates intelectuais mais acesos do século XVIII, só resolvido com a teoria celular, já no século seguinte.

Para todos os efeitos, é interessante sublinhar que então, como agora, as posições contrárias ao aborto, mesmo quando assentes em princípios religiosos mais ou menos assumidos, nunca deixaram de tentar credibilizar-se através da ciência. Vejam-se, por exemplo, as declarações actuais de Nuno Vieira, da Plataforma Não Obrigada, um dos muitos portugueses católicos que responderam à chamada do bispo de Leiria para ir a Fátima “celebrar a vida”, esclarecendo que o movimento a que pertence está empenhado em dotar a sua campanha de “dados científicos”, procurando utilizar uma “linguagem moderada e esclarecedora”.

Se a religião sempre se pronunciou sobre o aborto, e também a ciência viria a intervir no debate, caberá ao estado e ao direito legislar sobre o tema. Aquilo a que alguns autores, nomeadamente Elisabeth Badinter, chamaram “a invenção da maternidade”, ideia romântica que começa a propagar-se em finais do século XVIII e que desenha uma mulher plenamente realizada no seu papel de mãe, toda ela bondade e sentimentalismo, cruzar-se-á com os desígnios do poder político, que, pela primeira vez, irá defender o feto, agora não por motivos de fé mas por razões de estado. A demografia torna-se ideologia (então, como agora, era necessário fazer aumentar a natalidade), a maternidade é explicitamente regulamentada e o aborto voluntário declarado contrário ao patriotismo nascente. Em 1810, o artigo 317 do Código Penal francês é claro: “Quem provocar aborto de uma mulher grávida com ou sem o seu consentimento (...) é punido com prisão”. Em Portugal, o Código Penal de 1886 considera o aborto ilícito em todas as situações e, já no século XX, a tendência mantém-se, embora o Projecto da Parte Especial do Código Penal de 1966, do Prof. Eduardo Correia, previsse, como excepção, o aborto terapêutico (acrescente-se, a título de curiosidade, que a tese apresentada por Álvaro Cunhal em 1940 para o exame de 5.º ano da Faculdade de Letras de Lisboa versava o tema: O Aborto: Causas e Soluções, Campo das Letras, 1997). O que se verifica, portanto, é que após séculos a tecer, como Penélope, no recato das casas, as mulheres e, consequentemente, a maternidade, ganham uma exposição cada vez maior no espaço público, com todas as consequências daí decorrentes.

A grande alteração ao estado das coisas — tendencialmente repressivo da IVG (em França, por exemplo, em 1942, o aborto é considerado “crime contra o estado” e sujeito à pena capital — ficará tristemente célebre o caso de Marie-Louise Giraud, guilhotinada a 9 de Junho de 1943 por práticas abortivas) — dar-se-á com a introdução, na década de 70, do argumento que pugna pelo “direito das mulheres ao seu próprio corpo”. E, embora hoje em dia, este pareça ser um argumento em desvantagem na discussão, a sua consistente defesa pela filósofa Judith Jarvis Thomson em 1971 continua a ser uma referência inultrapassável (ver A Ética do Aborto, organização e tradução de Pedro Galvão, Dinalivro, 2005).

A grande viragem (mesmo se, já desde 1967, a legislação britânica fosse bastante tolerante na matéria) ocorre em 1970, quando, nos Estados Unidos, o Supremo Tribunal, no caso Roe versus Wade, decide a favor de a mulher poder escolher interromper a gravidez. Segundo Ronald Dworkin, especialista em filosofia do direito, o que estava então em causa não dizia respeito “ao problema metafísico da pessoa do feto ou teológico da sua alma, mas sim ao problema jurídico de o feto ser ou não uma pessoa do ponto de vista constitucional” (in História do Aborto). E se Jane Roe dá hoje voz aos chamados movimentos Pró-vida, a decisão continua a fazer lei, apesar da insistência de George W. Bush em atribuir personalidade jurídica ao feto. As palavras de Ronald Dworkin poderão, eventualmente, agradar a Paula Teixeira da Cruz. Afinal, colocar a questão do aborto em termos absolutos de vida ou de morte, não parece estar a levar a lugar nenhum, apresentando-se a própria comunidade científica dividida quanto ao assunto. Sendo, contudo, irrecusável, que no debate sobre a IVG, seja ela encarada sob o prisma do direito ou da saúde pública, se introduz um irrecusável problema moral, dificilmente a discussão ética poderá ser varrida para debaixo de tapete.

O caso ocorrido na Irlanda em 1992, que envolveu uma adolescente grávida que ameaçou suicidar-se se não lhe fosse permitido interromper a gravidez, talvez seja exemplo suficiente para percebermos os limites do que está em causa. Sendo a Irlanda, juntamente com Portugal, Polónia e Malta, dos países europeus com legislação mais repressiva na matéria, o Supremo Tribunal irlandês levantaria a interdição da jovem se deslocar ao estrangeiro, e esta pôde abortar em Inglaterra. Ora isto, independentemente da posição de cada um sobre a moralidade do aborto, deixa-nos perante a questão mais radical de todas: como obrigar uma mulher grávida que não quer ser mãe a sê-lo? O que nos conduz a uma segunda pergunta: até onde pode o estado interferir nas decisões individuais dos seus cidadãos? É que, independentemente de concordarmos ou não com o argumento do “direito ao corpo”, independentemente de aceitarmos ou não a existência de um conflito de interesses entre o estatuto da mulher e do feto, e, até independentemente de nos colocarmos de um lado ou de outro, o que é inegável é que a natureza atribuiu à mulher o poder da maternidade. Enquanto assim for, não há legislação que possa mudar esse facto.

Ana Cristina Leonardo

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ISSN 1749-8457