A filosofia da religião tem como objectivo investigar por processos estritamente racionais as crenças religiosas fundamentais, com o fim de determinar o seu significado e de saber se são justificadas.
Embora sejam várias as crenças que interessam à filosofia da religião, a mais importante é a crença na existência de Deus. A respeito desta crença existem dois problemas principais:
Iremos falar destes dois problemas em seguida, embora a nossa atenção se vá centrar no segundo. De modo geral, entende-se que uma crença está justificada quando as provas a seu favor mostrem que essa crença é verdadeira ou bastante provável. Um exemplo ajudará a perceber a ideia. Imagine que um astrónomo comunica à comunidade científica que as suas investigações o levam a pensar que existe um planeta, até então desconhecido, entre Neptuno e Plutão. O astrónomo que faz esta afirmação pode ser muito reputado, mas é óbvio que nenhum outro astrónomo a vai considerar verdadeira a menos que ele a justifique. Os outros astrónomos vão querer saber que provas tem ele a favor dela e só a considerarão verdadeira se essas provas forem tais que mostrem que ela é verdadeira ou, pelo menos, bastante provável. Em princípio, as provas que o astrónomo pode utilizar são de dois tipos: argumentos e indícios empíricas. Neste caso, dado o conteúdo da afirmação, mesmo que os argumentos fossem muito fortes seria pouco provável que os astrónomos se contentassem apenas com argumentos. Eles só considerariam a afirmação provada quando tivessem acesso a dados empíricos favoráveis, por exemplo, imagens do planeta obtidas por telescópio.
A situação não é muito diferente em filosofia da religião. Para que uma afirmação seja aceite ela tem de passar por um processo de justificação semelhante. A diferença principal está em que a maior parte das crenças religiosas não podem, ao contrário das afirmações sobre planetas, ser justificadas por intermédio de indícios empíricas. Não é possível provar, devido à própria natureza de Deus, por meios empíricos a Sua existência. É por essa razão que a investigação dessa crença pertence à filosofia e não à ciência. Para percebermos melhor isto temos de abordar a questão da definição de Deus.
O problema da definição ou da natureza de Deus é um problema complexo e difícil. Por esse motivo, a nossa abordagem será forçosamente breve. Contudo, podemos dizer que envolve duas questões principais. Uma, a da definição propriamente dita, isto é, a questão de saber que propriedades devem ser atribuídas a Deus; e outra, a de saber se essas propriedades podem ser descritas de modo a serem combinadas numa definição coerente de Deus.
A primeira questão deu origem a duas doutrinas filosoficamente mais relevantes, o teísmo e o deísmo, que embora tenham elementos em comum diferem em certos aspectos de forma importante. O teísmo é a concepção da natureza de Deus segundo a qual Deus é um ser pessoal, espiritual, imutável, omnipresente, criador do universo, transcendente (que está fora do espaço e do tempo), omnipotente (que pode tudo), omnisciente (que sabe tudo), sumamente bom e necessário. Os teístas admitem a revelação, por intermédio, por exemplo, de um livro sagrado como a Bíblia ou o Corão, ou de milagres e profecias, e pensam que Deus intervém no mundo, assegurando a sua existência contínua. Os deístas, pelo contrário, recusam-se a aceitar qualquer forma de revelação como fonte de conhecimento de Deus. Para eles, os únicos conhecimentos legítimos da natureza de Deus são os que derivam de processos racionais de investigação. O deísmo, tal como o teísmo, afirma que existe um Deus pessoal e transcendente, que criou o mundo e que estabeleceu as leis que o regem, mas, ao contrário do teísmo, nega que Deus intervenha no curso dos acontecimentos do mundo seja de que maneira for e que responda às preces e necessidades humanas.
Estas não são, no entanto, as únicas concepções sobre a natureza de Deus. Outras formas de conceber a sua natureza são, por exemplo, o panteísmo, que identifica Deus com o universo físico, e o panenteísmo, a crença de que Deus está dentro de tudo e não apenas do universo físico. Além destas perspectivas sobre Deus, que diferem apenas na forma como concebem Deus, há também aquelas que, como o ateísmo, negam a existência de Deus, ou, como o agnosticismo, afirmam ser impossível saber se Deus existe.
De todas estas concepções, o teísmo é de longe a perspectiva mais comum, visto que subjaz às três grandes religiões monoteístas do mundo, o Cristianismo, o Islamismo e o Judaísmo. Por este motivo, sempre que daqui em diante nos referirmos a Deus, estamos implicitamente a assumir que se trata de Deus tal como entendido nessas religiões.
O segundo problema, o da coerência dos atributos divinos, é ainda mais difícil e intrincado que o primeiro. Por isso, iremos apenas indicar dois exemplos, o paradoxo da pedra e o problema do mal, para dar uma ideia da sua complexidade.
Se aceitarmos a concepção teísta da natureza de Deus, um dos seus atributos é a omnipotência. Deus é todo-poderoso, Deus pode tudo ou, pelo menos, tudo o que seja logicamente possível. Significa isso que Deus pode também criar uma pedra que não possa levantar? Se pode criar tal pedra, então há uma coisa que Deus não pode fazer, a saber, levantar a pedra. Se Deus não a pode criar, também há algo que Deus, apesar de sumamente poderoso, é incapaz de fazer. As soluções propostas para este paradoxo têm sido muito diferentes e nem todas elegantes, mas estudá-las está para além do que nos propusemos fazer, por isso, não temos de nos preocupar com elas.
O problema do mal representa ainda uma dificuldade maior. Ele tem constituído ao longo dos séculos uma das maiores dores de cabeça para os teístas e o principal argumento dos ateus contra a existência de Deus. O problema resulta directamente da combinação de várias propriedades que são atribuídas a Deus pela definição teísta. Como vimos, os teístas dizem que Deus é, entre outras coisas, criador do universo, omnipotente, omnisciente e sumamente bom. Mas, nesse caso, como é possível o mal que indiscutivelmente existe no mundo? Parece decorrer do facto de Deus ter estas propriedades que não deveria existir qualquer mal. Aparentemente, um criador que seja omnisciente, sumamente bom e omnipotente, tem forçosamente de saber que o mal existe, de não querer que haja mal e de poder impedi-lo. Então, como se explica o mal?
Sabemos agora como os crentes costumam definir Deus. Mas isso por si só não é uma garantia de que Deus exista. Para provar a existência de Deus, os filósofos e os teólogos formularam ao longo dos tempos um número considerável de argumentos. São alguns desses argumentos que vamos estudar em seguida. O primeiro destes argumentos procura provar que a existência de Deus se segue necessariamente da sua definição.
A primeira prova da existência de Deus que vamos ver é o argumento ontológico. Desde que foi apresentado pela primeira vez por Santo Anselmo, no século XI, este argumento tem deixado muitos filósofos perplexos. O argumento parece tudo menos convincente, mas não é fácil saber onde está o seu defeito.
O argumento ontológico é um argumento a priori. Na verdade, de todos os argumentos a favor da existência de Deus que vamos ver, o argumento ontológico é o único a priori. Todos os outros argumentos são a posteriori. Os termos a priori e a posteriori distinguem dois tipos de proposições. As proposições a priori são aquelas cuja verdade pode ser estabelecida a partir apenas do significado dos termos que entram nelas e das leis da lógica. Por exemplo, sabemos que a proposição “o quadrado é a figura geométrica com quatro lados e quatro ângulos iguais” é verdadeira sem recorrer à experiência. Bem entendido, precisamos sempre da experiência para saber o significado de algumas palavras usadas na frase, mas uma vez isso sabido podemos determinar o valor de verdade da proposição meramente a partir das leis da lógica. Por oposição, as proposições a posteriori são aquelas cuja verdade só pode ser estabelecida recorrendo à experiência. Uma proposição como “A Lua é redonda” é deste tipo. Portanto, dizer que um argumento é a priori equivale a dizer que é constituído apenas por proposições a priori e isto, por sua vez, equivale a dizer que a verdade das proposições que o constituem pode ser determinada sem recorrer à experiência.
Se aplicarmos isto ao argumento ontológico, isso significa que esse argumento pretende estabelecer a existência de Deus a partir da mera análise do conceito de Deus, sem utilizar qualquer evidência com origem na experiência. A ideia é que própria noção de Deus implica que Deus existe, tal como a ideia de triângulo implica uma figura de três lados cujos ângulos somam 180 graus, pelo que falar de Deus e negar a sua existência é tão contraditório quanto falar de triângulos e recusar que a soma dos seus ângulos perfaçam 180 graus.
Santo Anselmo apresentou o argumento pela primeira vez no capítulo 2 do livro Proslogion. Aí, ele começou por definir Deus como “alguma coisa maior do que a qual nada se pode pensar” (aliquid quo nihil maius cogitari possit). É importante perceber bem o significado da palavra “maior” nesta definição. Anselmo não está a dizer que Deus é a coisa maior que existe. “Maior” não tem aqui o significado comum de “maior em tamanho”, mas de maior em valor ou maior em perfeição. Assim, ao dizer que Deus é “alguma coisa maior do que a qual nada se pode pensar”, Santo Anselmo está a dizer que Deus é “alguma coisa com mais valor (ou mais perfeição) que se pode pensar”. Esta é uma definição muito geral de Deus, que especificamente nada diz sobre os seus atributos. Podemos, no entanto, assumir que é outra maneira de expressar a definição teísta de Deus, embora, para os fins de Santo Anselmo, isso seja irrelevante. Tudo aquilo de que ele precisa para o seu argumento é desta definição geral, que afirma que quaisquer que sejam os atributos de Deus, ele possui-os em grau absoluto. Desta forma, Santo Anselmo não se limita a dizer que Deus tem certos atributos no grau mais elevado que podemos conceber, mas que ele tem todas as qualidades ou perfeições que podemos conceber em grau absoluto. É este o verdadeiro significado da definição de Santo Anselmo.
Estabelecida a definição de Deus, Santo Anselmo avança para a segunda fase do argumento. Algumas pessoas (como o incipiente do Salmo, 14, 1 da Bíblia), dizem que Deus não existe. As pessoas que fazem esta afirmação podem dessa forma estar a negar que Deus exista na realidade, mas não podem negar que ele exista na mente, uma vez que para negar a existência de qualquer coisa é necessário compreender aquilo de que se nega a existência, isto é, é preciso ter uma ideia disso na mente. Por exemplo, para negares que existam fantasmas tens de ter na tua mente uma ideia de fantasma. Sem uma ideia de fantasma ser-te-ia impossível negar a existência de fantasmas. Ora, isto também é verdadeiro para as pessoas que negam que Deus exista. Para o poderem fazer têm de ter na sua mente uma ideia de Deus. Assim, mesmo que o incipiente da Bíblia ou um ateu digam “Não há Deus”, para que o possam dizer, têm de ter nas suas mentes uma ideia de Deus.
Santo Anselmo está agora em condições de passar para a última fase do seu argumento. Será que Deus tem apenas esta existência mental que tanto o crente como o ateu lhe reconhecem? Não, porque se Deus existisse apenas na mente, seria possível conceber um Deus maior, que existisse não apenas na mente mas também na realidade, uma vez que o que quer que, para além de existir na mente, exista também na realidade é maior (no sentido explicado acima de ter mais valor ou maior perfeição) do que aquilo que exista apenas na mente. Mas isto é impossível, visto que, como Deus é, por definição, “aquilo maior do que o qual nada se pode pensar” nada pode ser maior que Deus. Portanto, Deus existe não apenas na mente mas também na realidade.
Nesta última fase do argumento ontológico, Santo Anselmo faz uma a redução ao absurdo. A redução ao absurdo que Santo Anselmo faz é a seguinte:
Primeira premissa: Se “aquilo maior do que o qual nada se pode pensar” existisse apenas na mente, seguir-se-ia que “aquilo maior do que o qual nada se pode pensar” seria aquilo mesmo maior do que o qual alguma coisa se pode pensar.
Segunda premissa: Mas, isto, em virtude da própria definição de Deus, é impossível.
Conclusão: Portanto, é forçoso concluir que “aquilo maior do que o qual nada se pode pensar” existe não só na mente como também na realidade.
O argumento ontológico completo é, em esquema, o seguinte:
Primeira premissa (definição de Deus): Deus é “alguma coisa maior do que a qual nada se pode pensar”.
Segunda premissa: Mesmo aqueles que negam a existência de Deus têm Deus na sua mente.
Terceira premissa: Aquilo que existe na mente e na realidade é maior do que aquilo que existe apenas na mente.
Quarta premissa (primeira premissa da redução ao absurdo): Se “aquilo maior do que o qual nada se pode pensar” existir apenas na mente, segue-se que “aquilo maior do que o qual nada se pode pensar” é aquilo mesmo maior do que o qual alguma coisa se pode pensar.
Quinta premissa (segunda premissa da redução ao absurdo): É autocontraditório que “aquilo maior do que o qual nada se pode pensar” seja aquilo maior do que o qual alguma coisa se pode pensar.
Conclusão (da redução ao absurdo): Portanto, “aquilo maior do que o qual nada se pode pensar” existe tanto na mente como na realidade.
Conclusão: Portanto, Deus existe necessariamente.
Uma das principais críticas ao argumento de Santo Anselmo veio de um monge seu contemporâneo, chamado Gaunilo de Marmoutier. Gaunilo defendeu que o argumento não pode ser bom, uma vez que tem consequências absurdas. Para o mostrar, ele socorreu-se da ideia de ilha perfeita. A sua estratégia consistiu em substituir o conceito de Deus no argumento de Santo Anselmo pelo de ilha perfeita e retirar daí a conclusão — obviamente absurda — de que a ilha perfeita existe. Eis como ele raciocina:
Ora, se uma pessoa me dissesse que uma tal ilha existe, eu perceberia facilmente as suas palavras, nas quais não há nenhuma dificuldade. Mas suponhamos que ela ia ao ponto de me dizer, como se isso resultasse de uma inferência lógica, “Não podes continuar a duvidar de que esta ilha, que é melhor do que todas as terras, existe algures, uma vez que não tens dúvidas de que ela está no teu entendimento. E visto que é melhor não existir apenas no entendimento, mas existir tanto no entendimento como na realidade, por esta razão ela tem de existir. Porque se não existisse, qualquer terra que existisse de facto seria melhor que ela; e assim a ilha que já compreendeste ser a melhor não seria a melhor.
Se um homem tentasse provar-me por um raciocínio destes que esta ilha existe de facto, e que não se devia continuar a duvidar da sua existência, eu, ou acreditava que ele estava a gracejar, ou não saberia quem deveria considerar como o maior tolo: eu, se tivesse aceite esta prova; ou ele, se ele supusesse que tinha estabelecido com alguma certeza a existência desta ilha. Pois ele deve mostrar primeiro que a hipotética excelência desta ilha existe enquanto um facto real e indubitável, e de forma alguma como um objecto irreal, ou um objecto cuja existência é incerta, no meu entendimento. (Gaunilo, “A Favor do Incipiente”)
Para Gaunilo, portanto, o facto de podermos definir um ser como o maior que se pode pensar não significa que esse ser exista. Se isso fosse verdade, o argumento ontológico provaria não apenas que a ilha perfeita existe, mas tudo o que quiséssemos provar que existe, bastando para tal que definíssemos essa coisa como perfeita. Poderíamos, assim, provar que a namorada perfeita existe, que o namorado perfeito existe, que a sogra perfeita existe e, até, que o Diabo perfeito existe!
Um outro crítico do argumento de Santo Anselmo foi Immanuel Kant. Na Crítica da Razão Pura, a sua obra mais importante, Kant atacou a ideia de que a existência é uma perfeição de Deus.
Esta ideia tem um papel importante no argumento ontológico, uma vez que é ela que permite a Santo Anselmo dizer que um ser que existe na mente e na realidade é maior do que um ser que existe apenas na mente e que, como Deus é, por definição, “alguma coisa maior do que a qual nada se pode pensar”, Deus tem de existir não apenas na mente, mas também na realidade. Isto significa que a existência é um atributo, propriedade ou predicado, que faz parte da definição de Deus.
O que é um predicado? Os predicados são termos que expressam propriedades das coisas. Por exemplo, numa frase como “o céu é azul”, “céu” é o sujeito e “é azul” é o predicado. É fácil ver que existem muitos outros predicados, como “é alto”, “é grande”, etc. Os predicados são geralmente usados para definir e caracterizar coisas. Quando, por exemplo, dizemos “o quadrado é a figura geométrica com quatro lados e quatro ângulos iguais” estamos a usar os predicados “figura geométrica”, “quatro lados iguais” e “quatro ângulos iguais” para definir quadrado. Do mesmo modo, quando dizemos que Deus é omnipotente, omnisciente, etc., estamos a usar os predicados “é omnipotente”, “é omnisciente”, etc. para definir Deus.
Ora, o que Kant contesta é que possamos usar a existência do mesmo modo. Para ele, a existência não é um predicado, porque ao dizermos que uma coisa existe não estamos a atribuir nenhuma propriedade ou qualidade particular a essa coisa. E se não estamos a atribuir nenhuma propriedade ou qualidade a uma coisa, a palavra “existência” não se refere a nada, pelo que não existe a qualidade da existência e, portanto, a existência não pode ser algo que Deus tenha de possuir para ser Deus. E se a existência não é algo que Deus tenha de possuir para ser Deus, não podemos concluir, com base na definição de Deus como “alguma coisa maior do que a qual nada se pode pensar”, que Deus tem de existir. De forma muito resumida, o argumento de Kant é o seguinte:
Primeira premissa: Aquilo que não acrescenta nada à definição de uma coisa não faz parte da definição dessa coisa.
Segunda premissa: Dizer que Deus existe não acrescenta nada à definição de Deus.
Conclusão: Logo, a existência não faz parte da definição de Deus (não é um predicado).
Conclusão: Logo, não podemos concluir a partir dessa definição que Deus existe.
O processo é, do seu ponto de vista, antes ao contrário. Temos de estabelecer a existência de algo para podermos dizer depois como é. Se existe um ser perfeito, então ele tem de existir, tal como se existe um triângulo, ele tem de ter três ângulos.
O argumento cosmológico, ao contrário do argumento ontológico, é um argumento a posteriori. Isto significa que procura provar a existência de Deus a partir das nossas observações do mundo e não, como o argumento ontológico, a partir da mera análise lógica da definição de Deus.
O argumento cosmológico é muito antigo. Entre os seus defensores encontram-se Platão, Aristóteles, Descartes, Locke, e muitos teólogos actuais, mas a versão mais famosa do argumento é a que São Tomás de Aquino apresenta nas suas ‘Cinco Vias’ para provar a existência de Deus. O argumento cosmológico, mais do que um argumento específico, é um tipo de argumento e, por isso, as três primeiras vias de São Tomás constituem outras tantas formas do argumento cosmológico. A ‘Primeira Via’ baseia-se na noção de movimento; a segunda na de causa; e a terceira, na de contingência. Das três, a versão mais comum e intuitiva é a segunda. Por esse motivo, é essa que vamos estudar.
O argumento da causa (ou da causa primeira, como às vezes também é designado) pode ser enunciado da seguinte forma:
Tudo o que acontece tem uma causa ou agente activo e esta causa ou agente também tem uma causa. Contudo, não pode haver uma regressão infinita nas cadeias de causas. Porque se não houvesse uma causa primeira, não existiriam causas subsequentes e, portanto, também não existiriam nenhuns dos efeitos actualmente existentes. Assim, as cadeias de causas e efeitos causados implicam uma causa primeira ou uma causa que não seja causada por nada, isto é, Deus.
Este argumento é muito simples e elegante e, por isso, muito persuasivo. Contudo, é conveniente que olhemos para ele com um pouco mais de atenção. A sua primeira premissa é a seguinte:
Tudo o que acontece tem uma causa ou agente activo e esta causa ou agente também tem uma causa.
Esta premissa limita-se a afirmar algo que é do conhecimento comum e que a observação nos revela no dia-a-dia vezes sem conta: tudo o que acontece tem uma causa. Isto é tão evidente que não levanta qualquer dificuldade. O mesmo não se pode dizer da segunda premissa:
Não pode haver uma regressão infinita nas cadeias de causas.
Esta premissa, ao contrário da primeira, faz uma afirmação para a qual não pode ser apresentada qualquer evidência empírica conclusiva. Conhecemos, claro, muitas cadeias causais completas e nesses casos não temos quaisquer dúvidas de que tiveram começo. Mas, há muitas cadeias das quais só conhecemos um pequeno fragmento ― aquele constituído pelas causas e efeitos que pudemos observar ―, e nestes casos é impossível ter a certeza, com base apenas na experiência, que a cadeia teve um começo. Por este motivo, a experiência é insuficiente para estabelecer a segunda premissa e São Tomás tem de recorrer a um argumento. Este argumento é uma redução ao absurdo com a seguinte forma:
Primeira premissa: Se não houvesse uma causa primeira (isto é, se houvesse uma regressão infinita nas causas), não existiriam causas subsequentes nem, por consequência, os efeitos que actualmente existem.
Segunda premissa (premissa subentendida): Existiram as causas subsequentes e os efeitos actuais existem.
Conclusão: Portanto, não pode haver uma regressão infinita de causas.
Estabelecida, desta forma, a segunda premissa, a conclusão segue-se naturalmente dela e da primeira. Assim, o argumento completo é o seguinte:
Primeira premissa: Tudo o que acontece tem uma causa ou agente activo e esta causa ou agente também tem uma causa.
Segunda premissa (primeira premissa da redução ao absurdo): Se não houvesse uma causa primeira (isto é, se houvesse uma regressão infinita nas causas), não existiriam causas subsequentes nem, portanto, os efeitos actualmente existentes.
Terceira premissa (segunda premissa da redução ao absurdo — premissa subentendida): Existiram as causas subsequentes e os efeitos actuais existem.
Conclusão (da redução ao absurdo): Não pode haver uma regressão infinita de causas.
Conclusão: Portanto, tem de existir uma “causa primeira”, isto é, Deus.
Se este argumento tem tido muitos defensores, tem tido também muitos críticos. Hume e Kant são dois dos seus mais importantes críticos.
Dissemos atrás que a primeira premissa do argumento cosmológico, que afirma que “Tudo o que acontece tem uma causa ou agente activo e esta causa ou agente também tem uma causa”, é aceite por toda a gente, mas isto não é correcto. A crença na causalidade foi desafiada por David Hume, no século XVIII. No seu primeiro livro, Um Tratado da Natureza Humana, Hume submeteu a relação de causa e efeito a uma análise rigorosa. É essa análise que constitui a objecção ao argumento cosmológico que vamos agora ver.
Hume pensa que aceitamos como evidente a crença de que “tudo tem uma causa” não porque ela seja evidente ou possa ser demonstrada, mas porque a nossa mente é constituída de forma a que pensemos que existe uma ligação entre o acontecimento a que chamamos causa e o acontecimento a que chamamos efeito.
Um exemplo ajudar-nos-á a perceber melhor a ideia. Imaginemos que alguém dá uma bola de borracha a um bebé. Como o bebé nunca brincou com uma bola desse tipo, não tem maneira de saber que se a deixar cair, ela vai saltar. A pessoa que ofereceu a bola ao bebé dirá, pelo contrário, que espera ver a bola saltar, porque o bebé, ao deixar cair a bola, fará com que (causará que) ela salte, ou porque existe uma conexão necessária entre a queda da bola de borracha e a bola saltar. Essa pessoa diz isto porque já viu muitas vezes bolas de borracha caírem e saltarem e nunca teve experiência de uma situação em que isso não tenha ocorrido.
Mas, o que na sua experiência está na origem dos conceitos de causa e de conexão necessária? Ela viu a bola cair muitas vezes e o bebé apenas uma. Mas isso significa apenas que viu muitas vezes uma bola de borracha cair e em seguida saltar. Não que tenha visto algo que o bebé, por ter visto uma bola cair e saltar apenas uma vez, não tenha visto. Portanto, tal como na experiência do bebé, nada há na experiência dessa pessoa que possa dar origem a estes conceitos. Mas, então, se a causa e a conexão necessária nunca foram directamente observadas, donde derivam as suas ideias?
A resposta de Hume é que, embora a experiência repetida de acontecimentos semelhantes não revele nenhuma ligação causal entre deixar a bola cair e a bola saltar, essa experiência, no entanto, leva a que a mente forme o hábito ou o costume de esperar ver a bola de borracha saltar quando cai. Assim, acreditar que A causa B, ou que existe uma conexão necessária entre A e B, é o mesmo que dizer que as nossas mentes são constituídas de maneira a que, tendo nós tido experiência de A e B sempre juntos, quando vemos A esperemos que se siga B e que, quando vemos B presumamos que foi antecedido por A. A nossa experiência gera, deste modo, o hábito de esperar, a expectativa de que a A se siga B, e a nossa consciência deste hábito é a ideia de conexão necessária. Contudo, em vez de percebermos que esta conexão é apenas uma determinação da nossa mente ― um mecanismo psicológico ―, atribuímo-lo ao mundo que nos rodeia e supomos que percebemos conexões necessárias que existem nas coisas de forma completamente independente de nós. Mas, claro, isto é um erro, porque não temos nenhuma justificação para afirmar que estas conexões existem na realidade e não apenas na nossa cabeça.
É fácil perceber o efeito devastador desta crítica para o argumento cosmológico. Como a esmagadora maioria de nós, São Tomás considera que a existência de causas é uma evidência constantemente confirmada pela nossa experiência e observação do mundo. Contudo, se Hume tem razão, nada há na observação e na experiência que possa dar origem à ideia de causa. Quando dizemos que existe uma conexão necessária entre A e B, de tal modo que A é a causa de B, isso é apenas o resultado de uma mera tendência psicológica para ligar os dois acontecimentos e, tanto quanto sabemos, pode não ter nenhuma correspondência na realidade. Portanto, ao dizer que “tudo tem uma causa”, São Tomás limitou-se a afirmar aquilo que, para ser aceite, precisava de ter provado. E na ausência de provas não há nenhuma razão para aceitar como verdadeira uma premissa que até pode ser falsa.
A maior parte das críticas de Hume directamente dirigidas à religião encontram-se nos seus Diálogos sobre a Religião Natural. Iremos ver com mais detalhe algumas dessas críticas quando estudarmos o argumento do desígnio, mas Hume também critica nessa obra a ideia de que Deus seja a causa de tudo o que existe.
Vamos pôr de lado a objecção anterior e assumir que o argumento cosmológico prova, de facto, que existe uma primeira causa. Como vimos, São Tomás afirma que essa causa é Deus. Por que razão é Deus a causa primeira? Porque, pensa ele, uma vez que é causa de si próprio, Deus cumpre o requisito, exigido pelo argumento, de ser uma causa que não tem uma causa. Mas será que só Deus cumpre este requisito? David Hume pensa que não. Ele sugere que o universo também pode ser causa de si próprio e, portanto, é completamente injustificado procurar fora do universo uma causa para o universo:
Mas se paramos e não avançamos mais, por que razão ir tão longe? Por que não parar no mundo material? Como podemos dar-nos por satisfeitos sem prosseguir in infinitum? E, no fim de contas, que satisfação existe nessa progressão infinita? (…) Se o mundo material se apoia num mundo ideal similar, este mundo ideal deve apoiar-se nalgum outro, e assim por diante, infinitamente. Seria melhor, portanto, nunca olhar para além do mundo material actual. Ao supor que contém em si mesmo o princípio da sua ordem, afirmamos que é de facto Deus e quanto mais cedo chegarmos a esse Ser divino tanto melhor. Quando ides um passo além do sistema mundano, apenas excitais uma disposição inquisitiva que será sempre impossível satisfazer. (David Hume, Diálogos sobre a Religião Natural, pp. 53–54)
São Tomás pensa que Deus é a causa primeira. Mas para Hume esta conclusão é arbitrária, uma vez que uma alternativa igualmente plausível é que o universo seja a sua própria causa. Esta alternativa tem ainda a vantagem de ser mais simples, visto que não pressupõe nenhuma entidade sobrenatural. Repare, no entanto, que Hume não está a afirmar que esta é a alternativa verdadeira. Para os seus propósitos ele não precisa de ir tão longe quanto, como veremos, irá Darwin. Tudo o que precisa fazer é mostrar que essa hipótese pode ser verdadeira e, portanto, que não podemos ter a certeza de que a causa do mundo seja Deus.
A crítica de Immanuel Kant é de natureza bastante diferente e baseia-se em conclusões a que ele chegou em outras partes da sua filosofia. Lembremo-nos de que o argumento cosmológico pretende passar da existência de causalidade no mundo para uma causa incausada. Kant, no entanto, pensa que este passo não é válido. O princípio da causalidade, a relação de causa e efeito, é aquilo a que ele chama na Crítica da Razão Pura, um conceito puro do entendimento. Uma das características destes conceitos é poderem apenas ser correctamente aplicados ao que nos é dado na experiência sensível. Sempre que os aplicamos fora deste domínio, deixamos de ter a garantia da verdade das conclusões a que chegamos por seu intermédio. Assim, podemos aplicar o princípio da causalidade ao movimento de duas bolas numa mesa de bilhar e dizer que o movimento da primeira bola é causa do movimento da segunda porque as duas bolas são entidades do mundo sensível, isto é, são coisas que conhecemos por intermédio dos sentidos. Mas não é isto que acontece no argumento cosmológico. No argumento cosmológico, uma vez que Deus está fora do mundo da experiência, o princípio da causalidade é usado para partindo da experiência sensível ir além dessa mesma experiência. Por este motivo, embora o argumento nos permita colocar a hipótese de que existe um ser não causado, não prova, como quer São Tomás de Aquino, que esse ser existe de facto.
Como o argumento cosmológico, o argumento do desígnio é um argumento a posteriori. Por essa razão, tal como o argumento cosmológico, o argumento do desígnio também pretende provar a existência de Deus a partir do mundo. Ainda assim, há dois importantes aspectos que distinguem estes dois argumentos. O primeiro é que o argumento cosmológico é um argumento dedutivo, ao passo que o argumento do desígnio é um argumento não-dedutivo. Isto significa que, mesmo que o argumento do desígnio seja um argumento não-dedutivo forte, não prova de forma definitiva que Deus existe e que o máximo que pode conseguir é mostrar que a probabilidade de ele existir é elevada. O segundo aspecto é que, embora ambos os argumentos pretendam provar a existência de Deus a partir do mundo, o argumento cosmológico parte de certos factos empíricos considerados evidentes ― como a existência de causalidade ― para concluir que Deus tem necessariamente de existir, ao passo que o argumento do desígnio se baseia na comparação do mundo com outras coisas que exibem desígnio, para concluir que, tal como essas coisas têm um autor, também o mundo tem um autor.
De todas as provas da existência de Deus, o argumento do desígnio é, histórica e filosoficamente, a mais importante. É a quinta via das “Cinco Vias” que S. Tomás expõe na Suma Teológica, mas já se encontra em Da Natureza dos Deuses, de Cícero ― que a atribui aos estóicos ―, praticamente nos termos em que a vamos estudar, e antes ainda em Aristóteles, Platão e mesmo Anaxágoras. Nos séculos XVIII e XIX, devido aos progressos de ciências como a astronomia e a biologia, que descobriram sistemas cuja complexidade parecia não poder ser o resultado das meras forças cegas da natureza, a prova tornou-se muito popular entre os cientistas e os filósofos, tendo, daí para cá, sido objecto de intenso interesse. É uma versão moderna desta prova que, nos Estados Unidos, está na base da recente pretensão de que a teoria do desígnio inteligente seja ensinada nas aulas de Biologia das escolas públicas.
É habitual distinguir duas versões do argumento do desígnio. Quando o argumento tem por base a ordem do mundo, por exemplo, a regularidade do sistema solar, diz-se que se trata de uma versão nomológica, da palavra grega nomos, que significa norma ou lei. Quando tem por base a adequação de algo aos fins, por exemplo, a adequação de um órgão dos seres vivos à função que desempenha, diz-se que se trata da versão teleológica, da palavra grega telos, que significa fim ou propósito. O argumento do desígnio pode, portanto, conforme os casos, ser uma tentativa de provar a existência de Deus a partir da ordem do mundo (versão nomológica do argumento) ou a partir da existência de um propósito ou fim (versão teleológica do argumento).
A versão mais famosa do argumento do desígnio é a de William Paley no livro Teologia Natural, publicado em 1802. Paley expõe o argumento mais ou menos nestes termos:
Supõe que ao atravessares um bosque vês uma pedra e te interrogas acerca da sua origem. Poderias explicá-la facilmente recorrendo a meras causas geológicas e meteorológicas, como os movimentos da crosta terrestre, o vento, o calor, a chuva. Mas, se em vez de uma pedra encontrasses um relógio, não poderias fazer o mesmo. A razão está em que o relógio é um objecto complexo, constituído por rodas dentadas, engrenagens, molas, etc. (o relógio de Paley era do começo do século XIX), que operam em conjunto para dar as horas, de tal modo que a mínima alteração na organização das suas partes afectaria os resultados obtidos. Seria absurdo supor que um objecto com este nível de complexidade e ajustamento pudesse ter origem nas meras forças da natureza. Por conseguinte, o relógio tem de ter por origem um ser inteligente: o relojoeiro. Paley estende depois este raciocínio ao universo e aos objectos naturais nele existentes. Chama a atenção para os indícios de desígnio nos organismos e nos órgãos naturais e, em particular no olho humano. Estas entidades naturais revelam um nível de organização, de ajustamento e de complexidade ainda maior que o do relógio, pelo que, tal como o relógio, devem a sua existência a um ser inteligente, Deus, que os criou.
Podemos resumir o argumento de Paley da seguinte forma:
Primeira premissa: O relógio tem as suas diversas partes organizadas e ajustadas de modo a atingir um dado fim ou propósito, revela, portanto, desígnio, pelo que tem de ter um criador inteligente, o relojoeiro que o fez.
Segunda premissa: O universo e os organismos vivos são muito semelhantes aos relógios, isto é, também revelam desígnio.
Conclusão: Portanto, também o universo e os organismos vivos têm um criador inteligente, que é Deus.
Na primeira premissa, Paley limita-se a afirmar algo que todos nós aceitamos sem dificuldade: o relógio, dada a sua complexidade e organização, revela desígnio e o desígnio, por sua vez, implica a existência de um autor inteligente. Na segunda premissa, Paley compara favoravelmente o universo com o relógio ou, de uma forma mais geral, os objectos naturais com os objectos fabricados pelos homens: os objectos naturais, tal como os objectos fabricados pelos homens, revelam desígnio. Uma vez isto estabelecido, a conclusão segue-se com naturalidade: tal como o desígnio dos objectos fabricados pelos homens exige um autor inteligente, também o desígnio dos objectos naturais exige um autor inteligente, que é Deus.
A premissa crucial deste argumento é a segunda. É ela que, ao comparar os objectos fabricados pelos seres humanos com os objectos naturais, permite concluir que também estes objectos têm um criador. Não é de admirar, portanto, que uma das críticas ao argumento se centre nesta premissa.
Por um capricho do destino, as principais críticas ao argumento do desígnio já tinham sido feitas vinte e três anos antes do livro de William Paley ter sido publicado, numa obra póstuma de David Hume, os Diálogos sobre a Religião Natural, que aparentemente Paley desconhecia. Nessa obra, Hume submete o argumento do desígnio a objecções que muitos especialistas ainda hoje consideram definitivas. São algumas dessas objecções que vamos agora ver.
Uma das críticas de Hume ao argumento do desígnio é dirigida à analogia entre os objectos produzidos pelos seres humanos e os objectos naturais. Segundo Hume, quanto maior for a semelhança entre os objectos que o argumento por analogia compara mais forte é a analogia. Quando a semelhança entre os objectos é total, a força do argumento é máxima e nesses casos é possível a partir daquilo que sabemos acerca de uns objectos concluir algo acerca dos outros com toda a certeza. Quando isso não acontece, a analogia é fraca e tão mais fraca quanto maiores as diferenças entre os objectos comparados. Diz Hume: “Observámos milhares e milhares de vezes que uma pedra cai, que o fogo queima, que a terra tem solidez; e quando uma nova instância desta natureza ocorre, tiramos sem hesitar a inferência habitual. A exacta semelhança dos casos dá-nos a certeza absoluta de um acontecimento semelhante e nunca desejamos nem procuramos uma evidência mais forte. Mas, sempre que vos afasteis, por pouco que seja, da similaridade dos casos, diminuís proporcionalmente a evidência e podeis por fim reduzi-la a uma analogia muito fraca, que está manifestamente sujeita ao erro e à incerteza”. (Diálogos, p. 30). O que Hume está aqui a fazer é a enunciar as condições que um argumento por analogia tem de cumprir para ser bom: 1) as semelhanças entre os objectos comparados têm de ser fortes; 2) quanto menos diferenças relevantes entre os objectos existirem melhor; 3) as semelhanças têm de ser relevantes para aquilo que se quer concluir com o argumento. Ora, pensa Hume, o argumento do desígnio não cumpre estas condições. O universo é muito diferente de qualquer objecto produzido pelo homem, pelo que a analogia é, assim, extremamente fraca e, embora existam semelhanças, as diferenças são tão gritantes que é impossível ter a certeza da verdade da conclusão. “A dissimilitude ― diz Hume ― é tão impressionante que o máximo a que podeis aspirar neste ponto é a uma suposição, uma conjectura, uma presunção a respeito duma causa similar”. (Diálogos, p. 31).
Admitamos por um momento para efeitos de argumentação que a analogia entre objectos naturais e artificiais é forte e o argumento do desígnio prova que os objectos naturais têm de ter um criador. Significa isso que esse criador é um ser com um pensamento e uma razão semelhantes ao pensamento e à razão dos seres humanos, isto é, Deus, como os pensadores teístas afirmam? Hume não está convencido disso. Uma vez que, tanto quanto sabemos, o pensamento e a razão são causa de apenas um pequeno número de acontecimentos no universo e que há outras causas na natureza que também dão origem a objectos com uma complexidade e uma organização idênticas às dos objectos produzidos pelos seres humanos, é possível que o desígnio que os objectos naturais revelam tenha origem numa causa com propriedades muito diferente das nossas.
Hume explora esta ideia em duas direcções diferentes, nenhuma delas implicando a existência de um ser sobrenatural.
Este é um ponto de grande importância e tem de ser explicado em detalhe. A questão da existência de Deus pode ser vista apropriadamente como o conflito entre duas concepções antagónicas acerca da origem do universo. Segundo uma dessas concepções, o universo é a obra de um ser espiritual com propriedades intelectuais do mesmo tipo mas imensamente superiores às dos seres humanos. Podemos chamar a este ponto de vista uma concepção espiritualista da origem do universo. De acordo com a outra concepção, o universo tal como o conhecemos é o resultado das forças da natureza, sem a intervenção de qualquer ser espiritual exterior e, por consequência, sem qualquer desígnio ou propósito. A este ponto de vista podemos chamar uma concepção naturalista do universo. O argumento do desígnio e, de uma maneira geral, todas as provas da existência de Deus são tentativas de provar a concepção espiritualista. Uma forma de pôr em causa esta concepção espiritualista, no que diz respeito ao argumento do desígnio, é mostrar que a analogia em que se apoia é fraca. A outra é mostrar que, tendo em conta os dados disponíveis, a hipótese naturalista é igualmente possível. É isso que Hume vai fazer agora, como dissemos, em duas direcções diferentes.
A primeira dá origem àquilo a que podemos chamar a hipótese da geração e da vegetação. Segundo essa hipótese, a ordem e o desígnio dos objectos naturais, embora se assemelhem aos produtos da actividade humana, assemelham-se também aos efeitos dos animais e das plantas, pelo que podem ter origem em causas desse tipo. O mundo pode ser o resultado de princípios como o instinto, a geração e a vegetação, que são princípios que operam no seu interior, e não de um agente inteligente sobrenatural semelhante a nós. De acordo com isto, o mundo pode ser, por exemplo, um grande vegetal, que produz em si mesmo certas sementes que ao serem disseminadas no caos circundante originam novos mundos, ou um animal, do qual os cometas são os ovos. Hume, claro, não está a dizer que é isto que acontece de facto. O que ele pretende dizer é que os dados de que dispomos não permitem determinar qual a origem do universo e nessa situação a hipótese da geração e da vegetação é igualmente possível e, por isso, o argumento do desígnio não prova que Deus existe.
A outra hipótese é mais interessante porque é ― sabemo-lo hoje ― não só possível mas, com as alterações que Hume introduz, plausível. Trata-se da hipótese epicurista. Esta hipótese foi sugerida pelo filósofo grego Epicuro e é uma hipótese estritamente materialista e mecanicista, isto é, que faz todas as mudanças no universo dependerem da matéria de que é constituído e das forças físicas que agem sobre essa matéria. De acordo com ela, o universo é infinito ― não tem princípio nem fim ― e é constituído por um grande número de partículas indivisíveis. O movimento ao acaso dessas partículas, num tempo infinito, produziu o universo ordenado e complexo em que vivemos. O mundo não foi, portanto, criado pelos deuses ou concebido por eles com um propósito. Os próprios deuses são o produto do universo material e são completamente indiferentes ao seu funcionamento e à vida humana.
Hume faz, como ele diz, reviver esta hipótese com ligeiras alterações, tornando o número de partículas que constituem o universo finito:
E se, por exemplo, eu fizesse reviver a velha hipótese EPICURISTA? Este sistema é geralmente considerado ― e creio que com inteira justiça ― o mais absurdo alguma vez proposto; apesar disso, não sei se, com algumas alterações, não se pode fazer com que apresente uma ténue aparência de probabilidade. Em vez de, como fez EPICURO, supor a matéria infinita suponhamo-la finita. Um número finito de partículas é apenas susceptível de transposições finitas e, numa duração eterna, tem de ocorrer que cada ordem ou posição possível seja tentada um número infinito de vezes. Por conseguinte, este mundo, com todos os seus acontecimentos, mesmo os mais insignificantes, foi antes produzido e destruído e será novamente produzido e destruído, sem quaisquer limites ou restrições. Ninguém que tenha uma concepção dos poderes do infinito em comparação com os do finito, duvidará alguma vez desta determinação. (Diálogos, pp. 83–84)
Uma vez mais, o objectivo de Hume não é afirmar que esta hipótese é verdadeira, mas realçar a impossibilidade, dado o estado actual do nosso conhecimento sobre o universo, de determinar qual das duas hipóteses rivais ― a que afirma que o universo é a criação de Deus e a que afirma que ele é produto das meras forças da natureza ― é verdadeira. Embora muitas pessoas, ao aperceberem-se da ordem e complexidade do universo, sejam tentadas a pensar que o universo tem origem numa entidade superior, num deus, a hipótese epicurista, tal como a hipótese da geração e da vegetação, é consistente com o que sabemos acerca do mundo e, portanto, tão possível quanto a hipótese teísta, que o argumento do desígnio pretende provar.
Em resumo, segundo Hume, não existe nenhuma boa razão para preferir a explicação teísta a qualquer uma destas explicações alternativas. Tanto a hipótese teísta como as outras explicam igualmente bem a ordem e o desígnio que o universo revela. É aqui que reside a força desta objecção de Hume.
Hume utilizou a hipótese materialista e mecanicista para produzir uma explicação alternativa para o desígnio que o mundo revela. Darwin foi mais longe e explicou os seres vivos segundo esta alternativa naturalista. É essa explicação e a razão pela qual constitui uma objecção ao argumento do desígnio que vamos agora ver.
Como Hume mostrou, uma forma de pôr em causa o argumento do desígnio, é fornecer uma explicação alternativa para a complexidade que o mundo por toda a parte revela. Foi isso que Darwin fez, embora ele não estivesse particularmente interessado no argumento do desígnio ou na questão da existência de Deus, mas sim naquilo a que chamou “o mistério dos mistérios”, o problema da origem dos seres vivos. Apesar disso, a solução que encontrou para este problema constitui por si só uma crítica ao argumento do desígnio tão poderosa que Richard Dawkins pôde escrever que “o que Hume fez foi criticar a lógica da utilização do desígnio aparente da natureza como evidência positiva para a existência de Deus. Não apresentou qualquer explicação alternativa para o desígnio aparente, antes deixou a questão em aberto. Um ateu, anteriormente a Darwin, poderia dizer, seguindo Hume: “Não tenho explicação para o complexo desígnio biológico. Tudo o que sei é que Deus não é uma boa explicação, portanto, temos de aguardar e ter esperança de que alguém apareça com uma melhor”. Não posso deixar de sentir que uma tal posição, embora logicamente válida, deixaria uma sensação de insatisfação e que, ainda que o ateísmo pudesse ser logicamente defensável antes de Darwin, só Darwin tornou possível ser-se um ateu intelectualmente realizado”. (Richard Dawkins, O Relojoeiro Cego, p. 24). Vejamos primeiro em que consiste a solução de Darwin e depois de que forma ela afecta esse argumento.
Até Darwin, a teoria aceite para explicar a diversidade dos organismos vivos era a da criação especial divina, isto é, a ideia de que Deus tinha criado os seres vivos tal como existem actualmente. No entanto, as descobertas geológicas e biológicas da época foram dando origem ao sentimento de que esta teoria era insatisfatória e, antes mesmo de Darwin, houve quem defendesse que as espécies não são fixas mas evoluem. Um dos primeiros a defender a evolução das espécies foi o próprio avô de Darwin, Erasmus Darwin (1731–1802). Ele pensava que as espécies actualmente existentes nem sempre tinham existido e que outras existentes no passado tinham entretanto deixado de existir e para explicar a mudança propôs uma teoria idêntica à proposta mais ou menos na mesma altura por Jean-Baptiste de Lamarck (1744–1829) e que ficou conhecida por lamarkismo. De acordo com essa teoria, os seres vivos adquirem durante a vida certas características que transmitem depois aos descendentes. O lamarkismo nunca foi suficientemente convincente para ter aceitação geral e, no tempo de Darwin, a maior parte dos biólogos, geólogos, etc., incluindo o próprio Darwin, pensavam que o criacionismo era verdadeiro. O primeiro acontecimento a contribuir para que tudo isto mudasse foi a viagem que Darwin efectuou, em 1831, a bordo do navio HMS Beagle. O Beagle tinha por missão estudar a costa sul-americana. Darwin foi convidado para participar na viagem na qualidade de naturalista de bordo e nos cinco anos que durou a expedição, teve a oportunidade de estudar atentamente espécies e habitats completamente desconhecidos na Europa. De tudo o que viu, nada intrigou mais Darwin do que os animais das ilhas Galápagos ― um conjunto de ilhas ao largo da costa sul-americana com uma fauna muito diferente da fauna desse continente e tão afastadas entre si que as espécies de uma ilha não podiam comunicar com as de outra. Os tentilhões, em particular, chamaram a atenção de Darwin. Estas aves diferiam de ilha para ilha, perfeitamente adaptadas ao habitat de cada ilha, com, por exemplo, bicos diferentes consoante o alimento dominante na ilha fosse sementes, frutos ou insectos. Para Darwin, a única explicação plausível para isto passava por admitir que os animais evoluíam de modo a adaptarem-se às condições do seu habitat.
No entanto, isto não resolvia completamente o problema, porque, tal como aconteceu com o seu avô, Darwin tinha ainda de encontrar um mecanismo que explicasse como é que a evolução se dá. E encontrou-o na obra de Thomas Malthus. Thomas Malthus (1766–1824) tinha publicado, em 1798, o Ensaio sobre as Populações, no qual afirmava que a população humana cresce numa proporção geométrica enquanto os meios de subsistência crescem numa proporção aritmética, resultando numa pressão sobre os recursos ambientais que origina a pobreza, a fome e a guerra. Darwin aplicou esta ideia não apenas aos seres humanos, mas a todos os seres vivos e fez dela o princípio que está por detrás do mecanismo da selecção natural: nascem mais seres vivos do que aqueles que o meio ambiente pode sustentar pelo que os seres vivos dotados de variações que favoreçam a sobrevivência sobrevivem e os outros não. Com o tempo, este processo faz as espécies evoluírem e produz novas espécies.
Vejamos um pouco mais em detalhe como a selecção natural funciona. Imaginemos que num grupo de zebras capazes de correr a cerca de 55 Km/h, surge uma zebra capaz de correr a 56 Km/h, uma pequena diferença, mas que representa uma vantagem adaptativa significativa para a zebra que a possui. Devido a ser capaz de correr um pouco mais depressa, essa zebra tem mais possibilidades de escapar aos predadores (que correm também a cerca de 55 Km/h) e de se reproduzir. Imaginemos agora que os descendentes desta zebra herdam esta característica da sua progenitora e correm também a 56 Km/h. Também eles vão usufruir das mesmas vantagens adaptativas. Os predadores, tendencialmente, capturarão as zebras menos velozes e as mais velozes terão mais possibilidades de se reproduzirem. A consequência última deste processo é que, com o tempo, todas as zebras do grupo correm a 56 Km/h.
Por que razão constitui a selecção natural, uma objecção ao argumento do desígnio? Porque explica a complexidade dos organismos vivos sem recorrer ao propósito ou ao desígnio e, portanto, sem uma causa inteligente sobrenatural que seja a origem deste desígnio. Por outras palavras, a teoria da selecção natural explica os organismos vivos por uma causalidade mecânica e não por uma causalidade pessoal e mental. O olho humano, que, segundo Paley, por si só seria prova de um desígnio e de um criador inteligente, é afinal explicado por um processo natural. O desígnio da natureza é, portanto, um desígnio aparente e não real.
O argumento moral, como o argumento cosmológico e o argumento teleológico, é um argumento a posteriori, o que significa que tal como esses argumentos visa provar a existência de Deus a partir da experiência. Mas, enquanto o argumento cosmológico parte da experiência de relações causais e o argumento teleológico da experiência da ordem e do propósito do mundo, o argumento moral parte da experiência da necessidade de tomar decisões de natureza moral. Esta necessidade pressupõe a existência de valores morais objectivos e estes, no dizer dos defensores do argumento moral, a existência de Deus.
Na sua forma mais simples, o argumento moral é o seguinte:
Primeira premissa: Se há valores morais objectivos, então Deus existe.
Segunda premissa: Há valores morais objectivos.
Conclusão: Portanto, Deus existe.
Este argumento é um modus ponens. Os argumentos deste tipo têm forma válida. Isso significa que saber se o argumento prova ou não a conclusão depende de saber se as premissas são ou não verdadeiras. Não vamos abordar a questão da verdade das premissas. Em vez disso, vamos tentar perceber melhor o que as premissas enunciam, ou melhor, o que enuncia a primeira premissa, uma vez que a segunda é apenas a repetição do antecedente da primeira. A primeira premissa afirma que “Se há valores morais objectivos, então Deus existe”. A questão de saber se há valores morais objectivos é uma questão interessante e difícil, mas também não a vamos abordar aqui agora. Aquilo em que nos vamos concentrar é no facto de a primeira premissa, como é uma condicional, estar a dizer que “haver valores morais absolutos” é uma condição suficiente para que “Deus exista” ou, se se preferir, que a “existência de Deus” é uma condição necessária para que “haja valores morais absolutos”. Dito de uma forma mais simples, a “existência de valores morais absolutos” implica a “existência de Deus” porque sem Deus não há valores morais absolutos. Isto é, a primeira premissa nada mais é que a afirmação de uma importante teoria tradicional da moral, conhecida como a teoria dos mandamentos divinos, segundo a qual a ética depende da religião.
Estas ideias remontam aos primórdios do Cristianismo e, por este motivo, o argumento moral insere-se numa tradição muito antiga. Aparece na obra de filósofos e teólogos medievais como Duns Escoto (c. 1266–1308) e Guilherme de Ockham (c. 1285–1347), e, mais tarde, na de teólogos como Lutero (1483–1546) e Calvino (1509–1564) e de filósofos como Descartes (1596–1650), Locke (1632–1704), Berkeley (1685–1753) e Kant. No nosso tempo, o argumento moral também teve vários defensores, o mais importante dos quais foi C. S. Lewis (1898–1963).
Se o argumento moral tem tido muitos defensores ao longo da história, também tem tido muitos críticos, mesmo dentro da tradição cristã. Um dos primeiros foi São Tomás de Aquino, que defendeu a existência de leis morais objectivas quer Deus exista quer não. Outros críticos são Leibniz (1646–1716), Hobbes (1588–1679), Hume e, nos nossos dias, Richard Swinburne.
Apesar destas origens antigas, de longe a versão mais famosa do argumento moral é a de Kant. É essa versão que vamos agora considerar.
A melhor forma de percebermos o argumento moral de Kant é partindo da seguinte questão: o que nos diz acerca das nossas crenças o facto de termos a obrigação de agir segundo a lei moral?
Kant afirma que esse facto mostra que postulamos ou pressupomos três coisas: que temos livre-arbítrio, que a nossa alma é imortal e que Deus existe.1
Quando agimos moralmente pressupomos que somos livres. Com efeito, a não ser assim, que sentido teria dizer que temos o dever de fazer algo? Para Kant, o facto de termos o dever de agir segundo a lei moral implica que podemos agir segundo essa lei e, portanto, que temos livre-arbítrio.
Em seguida, pressupomos que a alma é imortal. Os seres humanos aspiram ao soberano bem, no qual a virtude é recompensada com a felicidade. Como isso não é, pelo menos para a maior parte das pessoas, possível nesta vida, quando alguém age moralmente é porque tem o sentimento de que é possível alcançar o soberano bem, mesmo que isso não seja possível nesta vida. Pense-se, por exemplo, no caso de uma pessoa que aja por sentido do dever e que arrisque a sua vida para salvar outra pessoa. O seu comportamento sugere que ela de algum modo acredita na imortalidade, não porque ao agir assim procure conscientemente uma recompensa após a morte (isso faria o dever depender dos resultados e seria completamente contrário ao espírito da ética de Kant), mas porque revela ter o sentimento de que a verdadeira vida, o soberano bem, não é alcançado nesta vida terrena mas numa vida que se lhe segue.
Por fim, postulamos também que Deus existe. Nem sempre é possível alcançar a união da virtude e da felicidade nesta vida. Portanto, se uma pessoa tem o sentimento de que deve fazer algo, mesmo que não tenha a garantia de dessa forma alcançar a felicidade, isso, uma vez mais, sugere que essa pessoa acredita em que existe um Deus que ordenou o mundo de modo a tornar o soberano bem possível e em que a verdadeira felicidade está em ser virtuoso e em agir por sentido do dever.
Em resumo, Kant afirma que não podemos provar a existência de Deus, mas que ao agirmos moralmente, sem nos preocuparmos com a nossa felicidade imediata, mostramos que acreditamos num Deus que confere sentido à nossa moralidade. Por outras palavras, não começamos a fazer escolhas morais apenas depois de chegarmos à conclusão de que somos livres, de que somos imortais e de que existe um Deus que torna possível que a virtude resulte na felicidade. Em vez disso, estas coisas são implicadas pelo próprio acto de agir por dever. Agir por dever não faz sentido a menos que acreditemos nelas.
Assim, o livre-arbítrio, a imortalidade da alma e Deus não constituem, para Kant, objectos de conhecimento, não são algo que exista no mundo e que possamos descobrir e ainda menos provar. Por essa razão, o argumento moral de Kant é diferente do argumento moral tradicional, que, como as outras provas da existência de Deus que estudámos anteriormente, procura provar que Deus existe. Além disso, como, para Kant, a lei moral não resulta directamente de Deus, ele ao contrário da maior parte dos defensores da versão tradicional do argumento moral, recusa tanto a ligação da ética com a religião como a teoria dos mandamentos divinos.
Como vimos, Kant pensa que o homem tem o dever de aspirar ao soberano bem que, segundo ele, é o resultado da união da virtude e da felicidade. É isso que o leva a considerar que ao agirmos moralmente pressupomos a existência de Deus. No entanto, pressupor ou postular não é o mesmo que provar e, por isso, o argumento moral não demonstra que a aspiração à felicidade é necessária à moral. Na verdade, há muitas situações que parecem sugerir precisamente o contrário, isto é, que para agir de forma virtuosa temos de renunciar intencionalmente à felicidade. Pense-se, por exemplo, nos casos em que alguém sacrifica o seu bem-estar para tratar de um familiar idoso ou para socorrer outras pessoas num acidente. Casos como estes, que Kant afirma mostrarem que a pessoa pressupõe, mesmo que o ignore, que a felicidade é alcançável numa outra vida, podem ser vistos igualmente como sugerindo que não existe qualquer vínculo ― ainda que exclusivamente prático ― entre a moral e a felicidade. Nesse caso, mesmo que seja verdade que ao agirmos moralmente postulamos a existência de Deus, não se segue que o facto de o fazermos seja uma boa razão para acreditarmos que Deus existe. Há outras hipóteses igualmente plausíveis para explicar essa crença. Uma dessas hipóteses é, por exemplo, que a selecção natural nos tenha feito evoluir dessa forma porque isso favorece a nossa sobrevivência. E, se for este o caso, se esta crença for apenas o resultado de um mecanismo biológico que nos leva a relacionar a moral com Deus, então a crença na Sua existência não passa de um estratagema de que a natureza se serve para que trabalhemos para os seus propósitos e, por conseguinte, de uma, ainda que poderosa, ilusão.
O argumento moral de Kant baseia-se na ideia de que “deve implica pode”, isto é, que se alguém tem a obrigação de fazer algo, deve ser possível que o faça. Este princípio, no entanto, não é tão evidente como parece à primeira vista. Quando Kant diz que “deve implica pode”, não quer certamente dizer que o soberano bem deve ser logicamente possível, porque com isso ele estaria apenas a dizer que o conceito de soberano bem não é autocontraditório. O que Kant quer dizer é que o soberano bem deve ser possível na prática e que a obrigação de fazer o dever moral exige que o objecto desse dever possa de facto ser realizado. Ora, isto é falso. Tudo o que é necessário para que o homem cumpra a sua obrigação moral é que aja com base na intenção correcta, isto é, que procure alcançar o soberano bem, mesmo que não o alcance de facto. Portanto, o facto de sabermos que o soberano bem não pode ser alcançado por nós não significa que não possamos agir como se pudesse e que não possamos derivar valor moral da nossa busca daquilo que sabemos ser impossível. O desejo, por exemplo, de alcançar o pleno emprego pode ocasionar uma redução do número de desempregados e esta diminuição, assim como o esforço para a alcançar, podem ser vistos como moralmente louváveis embora o pleno emprego não tenha sido alcançado. Se, portanto, é perfeitamente possível agir moralmente embora o soberano bem não possa ser alcançado, então o facto de o homem não o poder alcançar não tem qualquer relevância para a questão da existência ou não de Deus, isto é, o facto de não podermos alcançar o soberano bem não constitui uma razão para postularmos a existência de Deus.
Uma outra crítica ao argumento moral é dirigida ao facto desse argumento partir da ideia de que as leis morais são objectivas. Algumas correntes filosóficas ― o subjectivismo e o relativismo ― negam a objectividade aos valores morais e clamam, conforme os casos, que esses valores dependem dos indivíduos ou das sociedades. Isto, claro, fornece uma base extremamente simples para uma objecção ao argumento moral, porque se não há leis morais, então também não há soberano bem e, portanto, qualquer necessidade de postular a existência de Deus.
Considerámos alguns dos principais argumentos a favor da existência de Deus assim como algumas das suas críticas mais importantes. ao fazê-lo o leitor pode ter ficado com a impressão de que essas críticas são obra de filósofos agnósticos ou ateus e que mostram sem margem para dúvidas que os argumentos com que os crentes pretendem provar a existência de Deus são maus. Essa impressão, no entanto, não corresponde à verdade.
Embora algumas das críticas sejam, de facto, de filósofos agnósticos ou ateus, outras, eventualmente a maior parte, têm origem em filósofos que crêem em Deus, mas que, no entanto, pensam que o argumento em causa, por uma razão ou por outra, tem algum defeito que o torna incapaz de provar a Sua existência. Lembremo-nos, por exemplo, de que Gaunilo não aceita o argumento ontológico de Santo Anselmo e Kant recusa o argumento cosmológico de São Tomás e, no entanto, ambos são crentes.
Mais grave é pensar-se que a possível incapacidade dos argumentos para resistir às críticas que apresentámos significa que esses argumentos são maus e que, por isso, Deus não existe. E isto por duas ordens de razões. Primeiro, porque, dada a natureza introdutória deste texto, limitámo-nos a expor a versão mais famosa de cada um dos argumentos e algumas das suas principais críticas. Seria, no entanto, errado pensar que o debate desses argumentos acabou aí. Em filosofia, as críticas geralmente suscitam respostas. Essas respostas podem ir no sentido de criticar as críticas, mostrando onde falham no ataque ao argumento, ou no de reformular o próprio argumento tornando-o imune às críticas. Tanto um caso como o outro pode suscitar, e normalmente suscita, novas críticas que, podem ser, e normalmente são, respondidas por processos idênticos. Foi isto que aconteceu tanto com os argumentos que vimos como com as críticas. O seu debate estende-se até hoje e tanto os argumentos como as críticas adquiriram um nível de sofisticação e de complexidade muito elevados.
Em segundo lugar, e muito mais importante, não é verdadeiro que do facto de um argumento ser mau e não provar a verdade da sua conclusão se siga que a conclusão é falsa. Se fosse esse o caso, como nenhum argumento é capaz de provar a existência do mundo, seguir-se-ia que o mundo não existe. Isso seria cometer a falácia do apelo à ignorância e concluir da nossa incapacidade de provar uma afirmação que a sua negação é verdadeira, o que, claro, é incorrecto. Fazemos argumentos com o objectivo de provar afirmações. Mas nem todos os argumentos são igualmente bem-sucedidos nesta intenção e, por isso, alguns provam e outros não. Os que não o fazem não fornecem por isso razões para pensarmos que essas afirmações são falsas e, eventualmente, as suas contraditórias, verdadeiras. É possível, apesar disso, que as suas conclusões sejam verdadeiras. Por este motivo, mesmo que eventualmente todas as provas da existência de Deus sejam más não podemos daí concluir que Deus não existe.
Álvaro Nunes
Postulado é uma afirmação avançada sem qualquer prova como uma presunção ou ponto de partida. No caso dos postulados da moral de Kant trata-se de crenças implicadas por aquilo que fazemos quando agimos de acordo com a lei moral e sem os quais essa acção seria impossível. Por esse motivo, estes postulados ― livre-arbítrio, imortalidade da alma e existência de Deus ― não são postulados teóricos mas práticos. ↩︎︎